16 Outubro 2024
"A partir do recente debate, aprendemos não apenas algumas dolorosas “imoralidades” na história dos Dicastérios romanos, mas também uma imoralidade atual da normativa canônica vigente. A tentativa de produzir uma teologia em forma de “capacho” conheceu muitas exceções, graças a Deus", escreve o teólogo italiano Andrea Grillo, publicado no blog Come Se Non, 15-10-2024.
As discussões em torno do “silêncio dos teólogos” - desencadeadas pelo belo texto de Severino Dianich e pelas réplicas que se seguiram - não estão simplesmente enraizadas em hábitos ou práticas tradicionais, nem podem ser explicadas apenas pela boa ou má vontade. A atitude de censura por parte dos escritórios e de autocensura por parte dos teólogos é fruto de uma longa história, que encontrou uma aceleração surpreendente nos últimos 120 anos, e hoje impõe uma tarefa de repensamento da relação entre Magistério e Teologia (ou entre magistério pastoral e magistério acadêmico) com uma pesada propensão pelo viés jurídico.
Antes de abordar essa questão, gostaria apenas de lembrar que a luta contra o estado liberal e o pensamento liberal marcou profundamente a história da teologia católica, fazendo com que se inclinasse fortemente, entre o Vaticano I e o Vaticano II, para uma “teologia de autoridade”. Essa opção foi fortemente favorecida pela mudança antimodernista, que, a partir da primeira década do século XX, convenceu grande parte da teologia católica da irrelevância de um debate sério com o pensamento moderno, muitas vezes reduzindo-o a uma série de “erros”, dos quais se manter distante.
Apesar disso, poderá ser uma surpresa descobrir que, após o Concílio Vaticano II, que certamente introduziu profundos motivos de repensamento do antimodernismo católico dos primeiros 60 anos do século XX, se tenha podido chegar, institucionalmente, a uma formulação da relação entre teologia e magistério que, no novo código de 1983, encontra um arranjo muito mais fechado e rígido do que o previsto no código de 1917. Talvez possamos entender melhor, examinando essa normativa preocupante, uma das raízes do nosso debate atual: para uma interpretação burocrática e estritamente ligada ao código, as proposições de um teólogo, se não oferecerem um “religioso obséquio do intelecto e da vontade” ao magistério autêntico da igreja, ficam fora do que é permitido a um teólogo “obediente”. Para entender a gravidade desse arranjo normativo, retomo o que um grande canonista, W. A. Boeckenfoerde, escreveu há alguns anos, quando apontava com grande perspicácia uma das raízes da atual crise na relação entre magistério e teologia.
E.W. Boekenfoerde questionou não apenas um certo modo de entender a “doutrina eclesial” em relação à “liberdade da teologia”, mas também levantou dúvidas sobre a legitimidade de uma normativa como a que define os deveres do teólogo em relação ao magistério eclesial. Refiro-me aqui ao estudo: E.-W. Boeckenfoerde, Roma ha parlato, la discussione è aperta. Struttura comunionale della Chiesa e parresia del cristiano, “Il Regno-attualità”, 50(2005), 739-744. Na mudança de estilo predominante entre “negar o erro” (magistério negativo) e “afirmar a verdade” (magistério positivo), podemos detectar uma mudança da normativa que rege os “deveres profissionais” do teólogo. Esse me parece um aspecto muito significativo da evolução que o Concílio Vaticano II determinou nas relações entre magistério e teologia, e que hoje mostra toda a sua natureza contraditória.
Basta considerar a “mens” dos dois artigos, muito diferentes, com os quais o CDC de 1917 e o de 1983 regulamentam os “deveres” do teólogo:
a) o código de 1917 (cân. 1324) “Satis non est haereticam pravitatem devitare, sed oportet illos quoque errores diligenter fugere, qui ad illam plus minusve accedunt; quare omnes debent etiam contitutiones et decreta servare quibus pravae huiusmodi opinones a Sancta Sede proscriptae et prohibitae sunt”.
“Não basta evitar a heresia, mas é preciso fugir dos erros que a ela dão acesso; portanto, todos devem também observar as constituições e os decretos com os quais a Santa Sé proscreve e proíbe as opiniões erradas.”
Fica claro como a tarefa do teólogo é relida dentro de uma relação com um magistério assumido na sua versão predominantemente negativa, que se expressa em termos de proposições errôneas, doutrinas heréticas, opiniões rejeitadas...
b) O Código de 1983 (cân. 752) “Non quidem fidei assensus, religiosum tamen intellectus et voluntatis obsequium praestandum est doctrinae, quam sive Summus Pontifex sive Collegium Episcoporum de fide vel de moribus enuntiant, cum magisterium authenticum exercent, etsi definitivo actu eandem proclamare non intendant; christifideles ergo devitare curent quae cum eadem non congruant”.
“Ainda que não se tenha de prestar assentimento de fé, deve, contudo, prestar-se obséquio religioso da inteligência e da vontade àquela doutrina que quer o Sumo Pontífice quer o Colégio dos Bispos enunciam ao exercerem o magistério autêntico, apesar de não terem intenção de a proclamar com um ato definitivo; façam, portanto, os fiéis por evitar o que não se harmonize com essa doutrina.”
Nessa segunda perspectiva, é evidente o que aconteceu: passou-se de uma leitura negativa para uma leitura positiva do magistério. Assim, a obediência a todas as “proscrições e proibições” se tornou “obediência religiosa da inteligência e da vontade” a todo o “magistério autêntico”.
2 - Uma reforma necessária do CDC
Foi W. Boekenfoerde que abriu uma discussão extremamente franca e cheia de parresia sobre a compatibilidade desse cânone com a função de “liberdade crítica” que o teólogo exerce dentro do magistério eclesial. Se, de fato, se estende a obediência devida a todo o magistério (irreformável e reformável), cabe se perguntar como teria sido possível, com essas regras de 1983, sair das posições do magistério “autêntico”, mas “reformável”, dos papas oitocentistas em relação ao tema da “liberdade de consciência”.
Disso decorre, necessariamente, uma tomada de distância crítica necessária para o exercício de uma teologia pudica e crítica. Acompanhemos brevemente W. Beokenfoerde em seu raciocínio:
“Esse tipo de legislação documenta uma clara tendência voltada a reforçar o máximo possível a autoridade e a obrigatoriedade das intervenções do magistério pontifício ordinário: embora sejam formalmente distintas das do magistério infalível, estas são de fato fortemente equiparadas a ele. A normativa em vigor busca presumivelmente o objetivo de defender o magistério pontifício ordinário de toda objeção e crítica publicamente exposta. Disso decorre um manifesto fortalecimento disciplinar da autoridade pontifícia; porém, isso ocorre em contradição com o intrínseco princípio vital da Igreja, certamente não favorecido pela imposição de tal tendência.
Ou será que realmente se espera que o fiel e o teólogo tenham que aceitar o fato consumado e esperem, sem poder se comprometer de forma alguma, que o magistério finalmente chegue a uma posição melhor? Esperar tudo do Espírito Santo e confiar-lhe a solução de todos os problemas sem se comprometer e agir autonomamente é uma atitude que pode ser definida no mínimo como presunçosa. Como poderia ter se chegado ao reconhecimento da liberdade religiosa se não tivesse havido teólogos e leigos comprometidos e dispostos a questionar em termos críticos e publicamente os ensinamentos então em vigor? Basta pensar nos expoentes do personalismo ativos no início do século XX” (“Roma ha parlato...”, p. 743).
Eis um belo exemplo de audácia e de modéstia do trabalho teológico, do qual a Igreja continua precisando, apesar de todas as formas de amor à “vida tranquila” que a atravessam. A partir desse equívoco canônico, despontam também as tentações de censura e as propensões à autocensura, que são justificadas até “por lei”. Assim, seguindo a lei, renuncio a ser teólogo: sobra-me um único caminho, a teologia da corte!
Esse problema institucional indica uma série de tarefas, que aguardam um grande desenvolvimento futuro, para que a tentação ao “silêncio” seja pelo menos redimensionada. Eis os três principais pontos a enfrentar:
a) O silêncio se impõe com base na aplicação “rigorosa” do cânone 752, que não deixa ao teólogo nenhum espaço de diferenciação em relação a todo o quadro do “magistério autêntico”. Na intenção do cânone, o teólogo é reduzido a funcionário do magistério: se não repetir o magistério, resta-lhe apenas a alternativa do silêncio.
b) Para sair dessa perspectiva, é necessária uma primeira condição essencial: a reforma do cânone 752, a fim de salvaguardar eclesialmente uma esfera legítima de pesquisa do teólogo, que lhe permita “institucionalmente” dizer também algo diferente em relação ao magistério autêntico. Para que o religioso obséquio seja dirigido não apenas ao Magistério, mas também à Palavra de Deus e à experiência humana.
c) Obviamente, também o modo de orientar a “promoção da teologia” pelo Dicastério para a Doutrina da Fé pode afetar profundamente a relação entre magistério e teologia. Mas não podemos nos iludir: uma reforma do Dicastério que não toque na formulação jurídica do cânone 752 estaria muito próxima de uma encenação, na qual o roteiro básico não muda.
A partir do recente debate, aprendemos não apenas algumas dolorosas “imoralidades” na história dos Dicastérios romanos, mas também uma imoralidade atual da normativa canônica vigente. A tentativa de produzir uma teologia em forma de “capacho” conheceu muitas exceções, graças a Deus. Desde que o Código de 1983 entrou em vigor, não faltou a coragem de muitos teólogos e teólogas, mas isso pôde ocorrer sempre pelo menos “praeter legem”, senão mesmo “contra legem”! A norma atesta da forma mais clara a tentativa de impor a toda a Igreja um “dispositivo de bloqueio” em seu caminho de reflexão e de amadurecimento. Não pode haver nem inquietação, nem incompletude, nem imaginação no trabalho do teólogo burocraticamente confiável. Poderíamos referir também a essa formulação do cânone 752 aquilo que se lê na Amoris laetitia (n. 303) a propósito a tentativa de blindar em uma lei positiva todas as potencialidades santas de vida familiar e matrimonial.
Da mesma forma, “pusilli animi est” pensar que a teologia só possa trabalhar dentro do recinto protegido da expressão magisterial autêntica. Esse ideal “mesquinho” de uma teologia posta sob tutela que nos diz respeito oficialmente há 41 anos (1983-2024) é um produto envenenado do pós-Concílio, e chegou a hora do pôr fim a ele, reformulando de modo diferente a relação entre magistério e teologia também no plano jurídico.
A “vocação eclesial do teólogo” precisa sempre também de paciência, ai de quem negar isso, mas exige igualmente audácia e respeitosa parresia. O Cânone 752 gostaria de teólogos apenas pacientes e sem audácia. A Igreja Católica deve entender que esse desequilíbrio sobre o silêncio no imediato pode tranquilizá-la, mas, a longo prazo, será muito prejudicial, alterando a própria ideia de “tradição”.
Para concluir com uma feliz expressão de Marcello Neri, em seu livro Fuori di sé. La Chiesa nello spazio pubblico (EDB 2021), podemos afirmar: “A ideia neointegralista de tradição... não tem nada a ver com a fidelidade ao ensinamento (considerado imutável) da Igreja, mas é o passo obrigatório para criar ex nihilo o futuro hipermoderno do catolicismo como seita global; o que não significa outra coisa senão a saída da Igreja Católica do sentido da catolicidade da Igreja” (p.73)
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O silêncio imposto pelo Código e a teologia: uma questão que não pode ser contornada. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU