06 Novembro 2024
"A transdisciplinaridade deve ser pensada “como colocação e fermentação de todos os saberes dentro do espaço de Luz e Vida oferecido pela Sabedoria que emana da Revelação de Deus” (Constituição Apostólica Veritatis gaudium, Proêmio, 4c). Deriva disso a árdua tarefa para a teologia de ter condições de se valer de novas categorias elaboradas por outros saberes, a fim de penetrar e comunicar as verdades da fé e transmitir o ensinamento de Jesus nas linguagens de hoje, com originalidade e consciência crítica" , escreve Papa Francisco, em Carta apostólica sob forma de Motu Proprio, publicada pelo Vaticano, 01-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo o papa, "sem opor teoria e prática, a reflexão teológica é instada a desenvolver-se com um método indutivo, que parte dos diversos contextos e das situações concretas em que os povos estão inseridos, deixando-se interpelar seriamente pela realidade, para tornar-se discernimento dos “sinais dos tempos” no anúncio do evento salvífico do Deus-agape, comunicado em Jesus Cristo. Portanto, deve-se privilegiar, antes de tudo, o saber do senso comum das pessoas, que é, de fato, o lugar teológico onde habitam tantas imagens de Deus, muitas vezes não correspondentes ao rosto cristão de Deus, que é somente e sempre amor".
1. Para promover a teologia no futuro não podemos nos limitar a repropor abstratamente fórmulas e esquemas do passado. Chamada a interpretar profeticamente o presente e a procurar novos itinerários para o futuro, à luz da Revelação, a teologia terá que se confrontar com as profundas transformações culturais, consciente de que: “O que estamos vivendo não é simplesmente uma época de mudança, mas uma mudança de época” (Discurso à Cúria Romana, 21 de dezembro de 2019).
2. A Pontifícia Academia de Teologia, fundada no início do século XVIII sob os auspícios de Clemente XI, meu Predecessor, e por ele canonicamente instituída com o breve Inscrutabili em 23 de abril de 1718, ao longo de sua existência secular, constantemente encarnou a exigência de colocar a teologia a serviço da Igreja e do mundo, modificando sua estrutura e ampliando suas finalidades quando necessário: de local inicial de formação teológica dos clérigos em um contexto em que outras instituições resultavam carentes e inadequadas para esse fim, a grupo de estudiosos chamados a investigar e aprofundar temas teológicos de particular relevância. A atualização dos Estatutos, realizada por meus Predecessores, marcou e promoveu esse processo: basta pensar nos Estatutos aprovados por Gregório XVI em 26 de agosto de 1838 e naqueles aprovados por São João Paulo II com a Carta Apostólica Inter munera Academiarum em 28 de janeiro de 1999.
3. Depois de quase vinte e cinco anos, chegou o momento de revisar essas normas, para torná-las mais adequadas à missão que o nosso tempo impõe à teologia. A uma Igreja sinodal, missionária e “em saída” só pode corresponder uma teologia “em saída”. Como escrevi em minha Carta ao Grão-Chanceler da Universidade Católica da Argentina, dirigindo-me a professores e estudantes de teologia: “Não se contentem com uma teologia abstrata. Que seu lugar de reflexão sejam as fronteiras. [...] Os bons teólogos, como os bons pastores, têm o cheiro de povo e de rua e, com sua reflexão, derramam óleo e vinho sobre as feridas dos homens”. No entanto, a abertura ao mundo, ao homem na concretude de sua situação existencial, com suas problemáticas, suas feridas, seus desafios e suas potencialidades, não pode se reduzir a uma atitude “tática”, adaptando extrinsecamente conteúdos já cristalizados a novas situações, mas deve impelir a teologia a um repensamento epistemológico e metodológico, como indica o Proêmio da Constituição Apostólica Veritatis gaudium.
4. A reflexão teológica é, portanto, chamada a uma virada, a uma mudança de paradigma, a uma “corajosa revolução cultural” (Carta Encíclica Laudato si', 114) que a comprometa, em primeiro lugar, a ser uma teologia fundamentalmente contextual, capaz de ler e interpretar o Evangelho nas condições em que os homens e as mulheres vivem cotidianamente, nos diversos ambientes geográficos, sociais e culturais, e tendo como arquétipo a Encarnação do Logos eterno, a sua entrada na cultura, na visão do mundo e na tradição religiosa de um povo. A partir disso, a teologia só pode se desenvolver em uma cultura de diálogo e de encontro entre diferentes tradições e diferentes saberes, entre diferentes confissões cristãs e diferentes religiões, confrontando-se abertamente com todos, crentes e não crentes. A exigência de diálogo é, de fato, intrínseca ao ser humano e a toda a criação, e é tarefa particular da teologia descobrir “a marca trinitária que faz do cosmos onde vivemos ‘uma trama de relações’ na qual é próprio de cada ser vivo tender, por sua vez, para outra realidade” (Constituição Apostólica Veritatis gaudium, Proêmio, 4a).
5. Essa dimensão relacional conota e define, do ponto de vista epistêmico, o status da teologia, que é impelida a não se fechar na autorreferencialidade, que conduz ao isolamento e à insignificância, mas a se ver inserida em uma trama de relações, primeiramente com as outras disciplinas e os outros saberes. Essa é a abordagem da transdisciplinaridade, ou seja, uma interdisciplinaridade em sentido forte, distinto da multidisciplinaridade, entendida como interdisciplinaridade em sentido fraco. Esta última certamente favorece uma melhor compreensão do objeto de estudo ao considerá-lo sob vários pontos de vista, que, no entanto, permanecem complementares e separados. Em vez disso, a transdisciplinaridade deve ser pensada “como colocação e fermentação de todos os saberes dentro do espaço de Luz e Vida oferecido pela Sabedoria que emana da Revelação de Deus” (Constituição Apostólica Veritatis gaudium, Proêmio, 4c). Deriva disso a árdua tarefa para a teologia de ter condições de se valer de novas categorias elaboradas por outros saberes, a fim de penetrar e comunicar as verdades da fé e transmitir o ensinamento de Jesus nas linguagens de hoje, com originalidade e consciência crítica.
6. O diálogo com outros saberes pressupõe evidentemente o diálogo dentro da comunidade eclesial e a consciência da essencial dimensão sinodal e comunial do fazer teologia: o teólogo só pode viver a fraternidade e a comunhão em primeira pessoa, a serviço da evangelização e para chegar ao coração de todos. Como eu disse aos teólogos no Discurso aos Membros da Comissão Teológica Internacional, em 24 de novembro de 2022: “A sinodalidade eclesial empenha, portanto, os teólogos a fazer teologia de forma sinodal, promovendo entre si a capacidade de escutar, dialogar, discernir e integrar a multiplicidade e variedade das instâncias e das contribuições”. Portanto, é importante que existam lugares, inclusive institucionais, nos quais se possa viver e experimentar a colegialidade e a fraternidade teológicas.
7. Por fim, a necessária atenção ao status científico da teologia não deve obscurecer a sua dimensão sapiencial, como já foi claramente afirmado por São Tomás de Aquino (cf. Summa theologiae I, q. 1, a. 6). Por isso, o Beato Antônio Rosmini considerava a teologia como uma expressão sublime de “caridade intelectual”, enquanto pedia que a razão crítica de todos os saberes fosse orientada para a Ideia de Sabedoria. Ora, a Ideia de Sabedoria mantém interiormente unidas em um “círculo sólido” a Verdade e a Caridade, de modo que é impossível conhecer a verdade sem praticar a caridade: “porque uma está na outra e nenhuma das duas se encontra fora da outra. Portanto, aquele que tem essa Verdade tem consigo a Caridade que a realiza, e aquele que tem essa Caridade tem a Verdade cumprida” (cf. Degli studi dell’Autore, nr. 100-111). A razão científica deve expandir seus limites na direção da sabedoria, para que não se desumanize e empobreça. Desse modo, a teologia pode contribuir para o atual debate de “repensar o pensamento”, mostrando-se como um verdadeiro saber crítico na medida em que é um saber sapiencial, não abstrato e ideológico, mas espiritual, elaborado de joelhos, prenhe de adoração e oração; um saber transcendente e, ao mesmo tempo, atento à voz dos povos, portanto, teologia “popular”, que se dirige misericordiosamente às feridas abertas da humanidade e da criação e dentro das dobras da história humana, para a qual profetiza a esperança de um cumprimento final.
8. Trata-se do “selo” pastoral que a teologia como um todo, e não apenas em um seu âmbito particular, deve assumir: sem opor teoria e prática, a reflexão teológica é instada a desenvolver-se com um método indutivo, que parte dos diversos contextos e das situações concretas em que os povos estão inseridos, deixando-se interpelar seriamente pela realidade, para tornar-se discernimento dos “sinais dos tempos” no anúncio do evento salvífico do Deus-agape, comunicado em Jesus Cristo. Portanto, deve-se privilegiar, antes de tudo, o saber do senso comum das pessoas, que é, de fato, o lugar teológico onde habitam tantas imagens de Deus, muitas vezes não correspondentes ao rosto cristão de Deus, que é somente e sempre amor. A teologia se coloca a serviço da evangelização da Igreja e da transmissão da fé, para que a fé se torne cultura, ou seja, ethos sapiencial do povo de Deus, proposta de beleza humana e humanizadora para todos.
9. Diante dessa renovada missão da teologia, a Pontifícia Academia de Teologia é chamada a desenvolver, em constante atenção ao caráter científico da reflexão teológica, o diálogo transdisciplinar com outros saberes científicos, filosóficos, humanísticos e artísticos, com crentes e não crentes, com homens e mulheres de diferentes confissões cristãs e diferentes religiões. Isso poderá ser alcançado através da criação de uma comunidade acadêmica de compartilhamento de fé e de estudo, que possa tecer uma rede de relações com outras instituições formativas, educacionais e culturais e que saiba penetrar, com originalidade e espírito de imaginação, nos lugares existenciais da elaboração do conhecimento, das profissões e das comunidades cristãs.
10. Graças aos novos Estatutos, a Pontifícia Academia de Teologia poderá, assim, perseguir mais facilmente as finalidades que o tempo presente exige. Acolhendo favoravelmente os votos que me foram dirigidos para que eu aprovasse estas novas normas, e atendendo-os, desejo que esta egrégia sede de estudos cresça em qualidade, e por isso aprovo, em virtude desta Carta Apostólica, e perpetuamente, os Estatutos da Pontifícia Academia de Teologia, legitimamente elaborados e recentemente revistos, e confiro a eles a força da Apostólica aprovação.
Tudo o que decretei nesta Carta Apostólica, motu proprio data, ordeno que tenha valor estável e duradouro, não obstante qualquer coisa em contrário.
Dado em Roma, junto a São Pedro, no primeiro dia de novembro do ano 2023, Solenidade de Todos os Santos, décimo primeiro do meu Pontificado.
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Carta Apostólica sob forma de Motu Proprio "Ad theologiam promovendam" do Sumo Pontífice Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU