21 Fevereiro 2018
“Nós ainda não assimilamos a grande novidade cultural do Concílio Ecumênico Vaticano II. Poucos se dão conta do fato que a modernidade vive uma crise dramática, e a Igreja tem a tarefa hoje de salvar a modernidade ou até de indicar o caminho para outra modernidade. ”E as universidades católicas, que têm um grande potencial, correm um “grande” risco, o da “autorreferencialidade”. É o que afirma o professor Rocco Buttiglione nesta entrevista, comentando a constituição apostólica Veritatis gaudium, o recente documento do Papa Francisco.
A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada no sítio Vatican Insider, 19-02-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Com o novo documento, o papa pede uma revolução cultural nas universidades da Igreja. Em que consiste, de acordo com o senhor?
Em primeiro lugar, gostaria de propor uma reflexão sobre o título desse documento: Veritatis Gaudium. Ele une estreitamente o tema do pontificado de São João Paulo II (a verdade) com o do pontificado do Papa Francisco (a alegria). A verdade, acima de tudo, não tem a função de condenar quem está no erro, mas sim a de levar a alegria ao coração de quem vive na verdade, e o argumento humanamente mais convincente em favor da verdade é a alegria que transborda da vida de seus fiéis.
Pense em como o mundo seria diferente se as pessoas, olhando para a vida da Igreja, dissessem: “Vejam como se amam! Eu também gostaria de ser capaz de amar assim! Eu também gostaria de ser amado assim!”. O amor, é bom especificar, deve ser verdadeiro. Amar é ajudar o amigo em seu caminho rumo à verdade, não é agradá-lo nas ilusões que ele cria ao seu redor. Não há amor sem verdade. Mas também não há verdade sem amor.
É por isso que o papa também propõe, entre os critérios fundamentais, o diálogo sem reservas, como “exigência intrínseca para fazer experiência comunitária da alegria da verdade e aprofundar o seu significado e implicações práticas”?
Parece-me que a primeira revolução que o Santo Padre propõe é precisamente esta: colocar no centro da pesquisa e do ensino a unidade da verdade e do amor. Essa unidade não é, primeiramente, uma teoria, mas sim a pessoa de Jesus Cristo que une em si a lei e a misericórdia. A cultura em geral é uma reflexão sistemática e crítica sobre a experiência. A tarefa das universidades pontifícias é a de desenvolver uma reflexão sistemática e crítica sobre o evento de Cristo que se faz experiência para o ser humano através da vida da Igreja. Não se trata de interpretar de forma diferente o mundo, a experiência humana comum. Trata-se de interpretar outro mundo, um mundo transformado pela presença da graça. Mas esse “outro mundo” não é apenas outro mundo. É também a verdade “deste mundo”, o objeto de seu desejo mais profundo e mais secreto, o cumprimento a que ele aspira. Isso gera uma multiplicidade de tensões.
Pode dar alguns exemplos? A que “tensões” se refere?
Nomeio algumas. A tensão entre uma teologia que elabora a memória viva da origem e uma teologia que reflete sobre o evento presente da fé. O evento de Cristo ocorre uma única vez na história do mundo. No entanto, ele se repete continuamente na vida da Igreja através dos sacramentos e dos santos (os discípulos) que o fazem reviver. A Igreja das origens vive na tensão entre Tiago (que conserva a memória do evento único e irrepetível) e Paulo (que traz o testemunho do evento presente, daquilo que o Espírito está operando entre os gentios). Não há teologia viva sem o diálogo constante entre teologia sistemática e teologia pastoral, a tensão entre a teologia como tal e o conjunto das ciências através das quais este mundo interpreta a si mesmo. Acredito que há aqui duas grandes rupturas sobre as quais ainda não houve uma reflexão suficiente.
Quais são, em sua opinião, essas fraturas?
Uma é a ruptura que diz respeito à própria essência da ciência moderna. O positivismo nos acostumara a pensar que a ciência nos oferecia uma verdade definitiva, alternativa à verdade religiosa. Hoje, sabemos que a ciência nos apresenta um modelo de compreensão da realidade que é cada vez mais pobre em determinações do que a própria realidade e que, além disso, é mutável ao longo do tempo. Ela nos introduz no mistério da criação, mas não revela seu segredo.
A segunda diz respeito ao fato de que a ciência (especialmente as ciências humanas) não é neutra. Ela é acompanhada inevitavelmente por uma ideologia dos cientistas (de alguns deles) que tenta transformar a ciência (por sua natureza aberta) em uma interpretação completa da realidade, em uma concepção do mundo. É tarefa da filosofia e da teologia recompor os resultados das ciências, organizando-os em torno de um fim prático que é o bem do ser humano. Isso é mais do que a simples interdisciplinaridade. As ciências dialogam entre si na linguagem da filosofia humana, da antropologia. De modo particular, a doutrina social cristã tem a tarefa de construir uma teoria crítica da sociedade que, por um lado, purifique os resultados das ciências humanas de seus pressupostos ideológicos e, por outro, chame todas eles a colaborarem na busca concreta do bem verdadeiro para o ser humano.
A teologia e as ciências eclesiásticas em geral devem usar os resultados e os métodos das ciências, mas devem retificá-los continuamente para libertá-los de pressupostos ideológicos. Para fazer isso, elas devem partir da experiência da fé viva. Para conduzir esse diálogo sobre o ser humano com as ciências naturais e humanas, as ciências eclesiásticas também devem estar cientes da própria fragilidade. A nossa fé vive misturada com a pobreza da nossa humanidade submetida às consequências do pecado original, e devemos aplicar também a nós mesmos a retificação metodológica a que devemos e queremos submeter as ciências.
O papa nos fala muitas vezes de uma “teologia de joelhos” ou de uma “teologia rezada”. O que protege a fé do risco de se transformar em uma ideologia é a consciência de que todos os conceitos com os quais tentamos expressar a experiência de “Deus no meio de nós” são infinitamente superados pela realidade de Sua presença. Não por acaso, São Tomás, no fim de sua vida, disse a Reginaldo que toda a sua obra nada mais era do que palha diante da presença do rosto de Deus. Mas o Crucificado disse: “Bene scripsisti de me Thoma” (“Escreveste bem de mim, Tomás”).
No proêmio do documento, Francisco afirma que “não dispomos ainda da cultura necessária para enfrentar” a crise que estamos vivendo. O que isso significa?
Ainda não assimilamos a grande novidade cultural do Concílio Ecumênico Vaticano II e continuamos nos dilacerando entre falsas alternativas. Alguns pensam que ainda devem combater uma batalha contra a modernidade que sentem como uma ameaça. Outros pensam que a Igreja deve se adequar a uma modernidade vivida como esperança e solução de todos os problemas. Poucos se dão conta de que a modernidade vive uma crise dramática, e a Igreja tem a tarefa hoje de salvar a modernidade ou até mesmo de indicar o caminho para outra modernidade.
Todos os valores da modernidade, afirmados sem Deus ou contra Deus, se invertem no seu contrário. É preciso corrigir a modernidade para salvá-la e é preciso falar com uma pessoa pós-moderna que ameaça cair em uma nova barbárie tecnológica. Ainda não nos demos conta plenamente de que o mundo de amanhã é um mundo em que o peso da Europa (e dos Estados Unidos) diminui; o da Ásia, da África e da América Latina aumenta. Diminui seu peso demográfico, diminui seu peso econômico e diminui seu peso cultural; quase a metade dos católicos vivem na América Latina. A Igreja registra uma expansão missionária sem precedentes na África e na Ásia. Esses continentes não estão mais convencidos de que a Europa é a vanguarda da cultura mundial. A incredulidade cresce na Europa. No restante do mundo, cresce a religião (e cresce a Igreja Católica).
Nisso, há coisas boas e há riscos. Como transmitir aos povos novos a herança positiva da cultura (e da teologia) europeia, encorajando, ao mesmo tempo, a repensar a fé de forma missionária, a partir da cultura e da experiência de vida de seus povos? E como nós, europeus, podemos aprender com a fé viva desses povos para reavivar a nossa, às vezes um pouco apagada na secularização obtusa de nossas sociedades?
O senhor acha que as universidades ligadas à Igreja são um “laboratório cultural”?
Potencialmente são, certamente. Cerca de 3.000 circunscrições eclesiásticas (tantas quantas há no mundo) enviam a Roma, todos os anos, seus melhores jovens, muitas vezes jovens sacerdotes que já tiveram responsabilidades pastorais relevantes. Entre eles, estão os futuros bispos, os futuros cardeais, os futuros papas. Nos anos de estudo, criam-se amizades que, depois, duram toda a vida. Educa-se uma classe dirigente mundial tão necessária na época da globalização. Existe a possibilidade de um ensino que leve em conta tantas perspectivas diferentes e as ponha em debate. Esse é um caldeirão privilegiado em que pode nascer a cultura à altura da crise que o mundo está vivendo.
Só na Itália temos pelo menos cerca de 30 universidades pontifícias e instituições similares que representam todas as grandes tradições culturais e espirituais que alimentaram a vida da Igreja e os carismas que a nutriram. O nível médio do ensino é bom, e há picos de excelência nada raros. Em suma, os talentos existem. Podemos dizer que estamos lidando com eles com a necessária decisão e a necessária coragem? Sobre isso, ao contrário, é lícito ter dúvidas.
Para que possam nascer as grandes hipóteses culturais de que precisamos, é necessário um diálogo muito mais intenso entre as diversas instituições, uma colaboração mais fraterna para pôr em comum, na salvaguarda e no respeito dos diversos carismas, as riquezas de que cada um dispõe, um esforço para se pôr em rede com outras instituições educacionais similares em todo o mundo e para aumentar o intercâmbio de resultados e hipóteses de pesquisa com as instituições acadêmicas “leigas”. Depois, há todo o enorme campo da relação a ser construída com a pastoral nas universidades “leigas” para apoiar a experiência de fé daqueles que estudam e ensinam nessas universidades, além de aprender com eles o quanto aprenderam e elaboraram nessa experiência.
O senhor não acredita que as universidades da Igreja correm o risco de se conformar aos “vícios” do mundo universitário? Como é possível voltar a ser uma forja de lideranças capaz de imaginar o futuro?
O risco existe e é grande. No fundo, é o da autorreferencialidade. É claro: temos o dever de assegurar aos estudantes o mais alto nível científico. No entanto, nossa tarefa não se esgota nisso. O que salva da autorreferencialidade é uma experiência de Igreja viva que tem três pilares. O primeiro é a fidelidade ao magistério. Hoje, todos colocam seu critério de verdade em si mesmos, naquilo que cada um pensa, na própria opinião. O primeiro critério do pensar cristão, em vez disso, é se deixar pôr em crise pela palavra de Alguém que me conhece mais profundamente do que eu mesmo e que me ama mais do que eu mesmo. O magistério não é um elemento externo e estranho à minha consciência, que lhe é imposto de fora. Ao contrário, é um elemento interno à minha consciência. O julgamento nasce no diálogo com o magistério. O segundo é a imanência à vida de uma comunidade cristã concreta, na qual existe a possibilidade de ensinar e de aprender, e também a de ser corrigido. A ciência não é tudo. Ela é inevitável e necessariamente abstrata. Ela precisa se encontrar com a sabedoria que lê o caso particular e o modo como o Espírito opera concretamente nas situações da vida. Scientia e sapientia devem se iluminar continuamente. O terceiro é a própria universidade como comunidade de vida, o diálogo amigável e fraterno com os outros professores e com os estudantes.
O documento papal diz respeito às universidades eclesiásticas e, portanto, a rigor, a nem todas as universidades católicas. Esse preâmbulo, em princípio e como sugestão, também vale para as universidades que, embora não sendo diretamente provenientes da autoridade eclesiástica, estão ligadas à tradição católica?
Parece-me que, em certo sentido, o preâmbulo diz respeito a todas as universidades, e não só as católicas. É preciso colocar o estudante no centro. Qual é o fim da universidade? Educar pessoas que saibam pensar e, portanto, educar o método do pensamento. Ensinar a ler no próprio coração as evidências lógicas e éticas com as quais Deus nos põe no mundo. Aprender a confrontar tudo que nos acontece, tudo o que nos é dito, toda a informação acessível com essas evidências e ordená-la em relação às exigências profundas do nosso coração que nos são dadas juntamente com as evidências éticas e morais. Qual é a diferença específica de uma universidade “católica”? O encontro com Cristo nos sacramentos e na vida da Igreja ilumina as nossas certezas e as nossas exigências originais, e torna-se a hipótese fundamental de sentido com a ajuda da qual enfrentamos a prova da vida. A vida torna-se, assim, um processo infinito de verificação e de aprendizagem em que a fé amadurece junto com a vida.
Nota da IHU-Online – A íntegra do documento Veritatis gaudium, em português, pode ser lida aqui
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Universidades católicas: ''O risco é a autorreferencialidade''. Entrevista com Rocco Buttiglione - Instituto Humanitas Unisinos - IHU