02 Agosto 2017
Como discutido em artigo publicado no National Catholic Reporter dia 28 de julho [1], nada havia no documento de Land O’Lakes – prestes a completar 50 anos em 2017 – que exigia ou mesmo justificava uma perda de identidade católica. No entanto, muitas instituições de ensino sofreram exatamente uma tal perda nos anos subsequentes, gerando na cabeça de alguns uma relação de causa e efeito. A causalidade é algo notoriamente difícil de provar quando lidamos com instituições complexas como as universidades, porém esta dificuldade não pode nos impedir de analisar, até onde possível, o que de fato aconteceu à educação superior católica nos últimos 50 anos.
A reportagem é de Michael Sean Winters, publicada por National Catholic Reporter, 31-07-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
No importante estudo sobre a secularização da academia americana, intitulado “The Dying of the Light: The Disengagement of Colleges and Universities from their Christian Churches”, James Tunstead Burtchaell mostra que o fenômeno começou com as universidades protestantes históricas no século XIX. Se alguma vez você já se perguntou por que os campi da Ivy League [grupo formado por oito das universidades mais prestigiadas dos Estados Unidos] são tomados por capelas enormes e subutilizadas, a obra de Burtchaell explica os motivos detalhadamente. Eu já estive nas capelas de Harvard, Yale, Brown e Princeton, e as únicas pessoas com quem me deparei aí foram funcionários da limpeza e organistas.
O que mais gostei na obra de Burtchaell: originalmente, o lema da Universidade de Harvard era “Christo et ecclesiae” (por Cristo e sua Igreja) até ser alterado, em 1885, para “Veritas” (Verdade), este último tendo sido notado, na época, por sua “generalidade cintilante”. É claro que, na segunda metade do século XIX, o congregacionalismo já havia perdido todo o seu rigor calvinista. A maioria dos congregacionalistas trocou o cristianismo ortodoxo pelo unitarianismo. Dificilmente irá nos surpreender o fato de o primeiro seminário calvinista ter deixado de ser significativamente religioso na medida em que se transformou, primeiramente, num centro universitário e, depois, em universidade, num momento em que a sua denominação fundadora perdia as suas âncoras doutrinais.
Burtchaell exagera em seu debate, no entanto, quando volta o seu olhar para a educação superior católica, especialmente no tratamento dado ao Boston College. Ele também analisa a College of New Rochelle e a Saint Mary’s College, da Califórnia, sobre os quais nada sei. Descrevendo estas três instituições, o autor detalha o “grande trauma no final da década de 1960”, quando as ordens fundadoras dessas universidades “de repente mostram-se incapazes de gerar lideranças ou fornecer bolsas de estudo”. As três instituições “entraram em contato com a falência”, escreve. “O mais significativo e interessante são a falta de coragem, o desvirtuamento para com o propósito inicial e a degradação do discurso público que têm levado estas instituições, severamente, a abandonar o chamado a ser ministérios da Igreja Católica”, afirma. Trata-se de uma declaração que não soa verdadeira, pelo menos não em se tratando do Boston College.
É claro que o currículo clássico que modelava a educação jesuíta transformou-se: nos anos 1950, observa Burtchaell, um estudante de graduação no Boston College tinha de cursar “dez disciplinas obrigatórias para obter 28 créditos em filosofia”. Hoje, o Boston College exige de seus alunos 15 disciplinas obrigatórias, das quais apenas duas são da área da filosofia. Os alunos também cursam duas disciplinas de teologia, duas de ciências naturais, duas de ciências sociais e duas de história, e outras sobre diversidade cultural, artes, literatura, matemática e escrita. Este me parece um conjunto muito bem arredondado de disciplinas obrigatórias.
O autor nota que o número de professores jesuítas diminuiu nas décadas de 1960 e 1970, de 41% logo após a Segunda Guerra Mundial para apenas 21%, mas o campus de Chestnut Hill ainda conta com a concentração mais alta de jesuítas em todo o mundo. O pesquisador sustenta que a mudança para um conselho majoritariamente composto por leigos foi prejudicial para a identidade católica da universidade.
Lembro de ter perguntado ao meu velho amigo Alan Wolfe o que ele achava da identidade católica do Boston College. Wolfe fundou o Centro Boisi para a Religião e a Vida Pública Americana (Boisi Center for Religion and American Public Life), em 1999, e o presidiu até o ano passado. Wolfe não é católico, mas sempre deixou claro que sabia da identidade católica da instituição que abrigava o referido centro. Ele me convidou para ir ao campus em Boston quando publiquei o meu primeiro livro. Notei que todas as salas de aula tinham crucifixos, que a capela e a igreja pareciam bem usadas e que os alunos de graduação com quem conversei pareciam interessados em discutir a Igreja Católica e sua relevância pública.
Em visitas subsequentes, estas primeiras impressões não só se confirmaram como também se fortaleceram. Hosffman Ospino, do Boston College, produziu uma das mais importantes obras sobre o apostolado latino no país; Patricia Weitzel-O’Neill e Kristin Melley dirigem um programa de imersão dupla que tem ajudado as escolas paroquiais católicas dos EUA no trabalho junto a uma população cada vez mais diversa; e o seu departamento de teologia recentemente contratou uma das estudiosas mais destacadas da Igreja Católica, Cathleen Kaveny.
O encontro anual de jovens teólogos para o qual tenho a honra de ser convidado foi organizado e bancado pelo Boston College todos estes anos, exceto um, quando o Carroll College, em Helena, no estado de Montana, serviu de local para o evento.
Neste segundo semestre, o padre jesuíta Jim Keenan, professor de teologia que também dirige o Jesuit Institute, receberá o congresso acadêmico mais importante sobre Amoris Laetitia dentro os países de língua inglesa. Todos estes projetos e pessoas destacam a compatibilidade de se ser uma universidade moderna, de primeira classe, e uma universidade católica – conforme previsto e proposto no documento de Land O’Lakes.
Sim, há instituições de ensino superior que perderam, mais ou menos, a sua identidade católica desde a publicação do referido documento, muito embora eu não veja uma ligação direta entre as duas coisas. A Universidade de Notre Dame, assim como o Boston College, adotou um conselho majoritariamente composto por leigos, porém não perdeu a identidade católica. Por outro lado, não se consegue distinguir o Centro de Direito da Universidade de Georgetown de suas contrapartes seculares, exceto por sua capela. E, por toda a academia, houve uma separação do conhecimento e uma fragmentação das áreas de saber que, num nível extremamente profundo, contradiz o que nós católicos acreditamos: que tudo foi criado nele e para ele, e que tudo irá se reconciliar nele no fim dos tempos. Em grande medida, a visão interdisciplinar proposta no documento de Land O’Lakes não aconteceu devido a correntes mais fortes dentro da educação superior.
Mas algo mais aconteceu desde o documento de Land O’Lakes: o surgimento daquilo que podemos chamar de instituições de ensino católico sectárias. Em 1974, o Pe. Michael Scanlan, da Terceira Ordem Regular de São Francisco, virou presidente do College of Steubenville e se pôs a criar um conjunto diferente de identidade católica para ela. Três anos depois, o Christendom College passou a existir e, acessando o seu endereço eletrônico na internet, somos recebidos com uma foto que inclui Dom Salvatore Cordileone, de San Francisco, o ex-senador Rick Santorum, o doutor Scott Hahn, Mary Beth Bonacci e outros. Que pena que os editores da Civiltà Cattolica não tiveram a ideia de colocar esta imagem na capa de seu recente – e polêmico – editorial. E, em 2003, a Ave Maria University emergiu dos pântanos da Flórida.
Tenho certeza de que podemos encontrar bons professores em todas estas três instituições. E, ainda que não venha a sugerir aos pais que mandem seus filhos para estas universidades, porque o modelo educacional é engarrafado, sujeito a uma agenda ideológica da qual não compartilho, irei concordar que elas representam uma expressão legítima, conquanto infeliz, da identidade católica.
Mesmo assim, tenho de dizer que me surpreendi quando estive em Gaming, na Áustria, onde o College of Steubenville realiza o seu programa de estudos internacionais. Geralmente, eu achava, programas como este eram ligados a uma instituição local e se situariam na área urbana, a partir da qual os alunos poderiam, de fato, vivenciar e assimilar uma rica variedade de experiências culturais. Gaming é um pequeno município no meio das montanhas. Não há chance de contaminação aí! E este é exatamente o aspecto questionável destas instituições, e questionáveis dentro do âmbito católico: elas veem a modernidade como uma fonte de contaminação e buscam um sistema isolado, imunizado de pensamento para se protegerem. Podemos encontrar esta disposição em quase todos os séculos de história católica, porém não consigo ver como algo assim serve adequadamente como base para a educação católica.
Uma variedade de fatores sociais e econômicos complexos esteve também em jogo nestes últimos 50 anos. Desde 1967, a obrigatoriedade do grau de bacharel para certos empregos profissionais e a proliferação destes empregos foram notáveis. O custo da educação superior igualmente se elevou, necessitando do envolvimento federal na forma de programas de auxílio estudantil. A degradação começou na década de 1950, mas se tornou profunda nas de 1970 e 1980. O declínio acentuado no número de religiosos e religiosas afetou aquelas instituições universitárias confessionais. Como costumo dizer, a causalidade é algo difícil de se pontuar.
Burtchaell dedica uma grande atenção à transferência da autoridade institucional de um conselho clerical para um conselho formado por leigos, ponto que abordarei no próximo ensaio a ser publicado e sobre o qual penso que ele está equivocado. O autor está certo em que, para muitas universidades católicas, a perda da identidade católica teve a ver com a diminuição da porcentagem de católicos no corpo docente e entre os discentes. Não se pode ter uma universidade católica sem católicos. Mas no período desde que o seu livro fora publicado, 19 anos atrás, muitas instituições de ensino superior católicas passaram a “contratar para a missão” na busca de resolver o problema.
Na quarta-feira, 2 de agosto, concluirei esta série rebatendo algumas das críticas ao documento de Land O’Lakes, que parecem particularmente infelizes, e formulando uma questão que já feita antes: Por que uma “identidade católica” é quase sempre pensada como algo conservador?
[1] Sob o título “For 50 years, Catholic higher ed has followed Land O’Lakes roadmap”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A identidade católica das universidades católicas é complicada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU