O discurso radical da suposta direita antissistema se apoia na produção de discursos cada vez mais radicais e extremos produzindo uma polarização que torna cada vez mais narcísicos ambos os espectros políticos
Quando Tom Jobim cunhou a célebre frase “O Brasil não é para principiantes”, ele foi capaz de sintetizar a complexidade que significa viver em um país continental e com contradições e potencialidades igualmente colossais. A afirmação cai como uma luva para pensarmos os nossos desafios políticos, sobretudo quando no cenário político recente e atual surgem figuras que ganham notoriedade dobrando a aposta do absurdo e investindo em afetos intensos como estratégia de visibilidade.
“É isso o que eles querem performatizando esses papéis: eles querem gerar afetos intensos nos quais sempre serão falados. Aquela máxima ‘falem mal, mas falem de mim’ nunca foi tão atual como na política hoje, porque conseguem mais visibilidade, engajamento nas redes sociais e de certa forma povoam o imaginário popular”, descreve o professor e pesquisador Domenico Hur, em entrevista por videoconferência ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
“Por que será que há uma propaganda política tão baixa, primitiva, beligerante? Talvez seja porque a promessa do sonho americano de que a pessoa vai trabalhar, ficar rica e feliz se esvaziou e as pessoas viram que não é possível. É um pouco do que o Byung-Chul Han fala: o capitalismo nos promete riqueza e felicidade, mas só nos trouxe cansaço e esgotamento”, complementa.
Em meio a esse cenário, a esquerda oscila entre um certo tradicionalismo narcisista dos homens de cabeça branca, símbolo máximo da falta de renovação política, e a ruptura encarnada na candidatura, por exemplo, de mulheres, pessoas negras e periféricas. “Então veremos que as propostas de esquerda são muito tradicionais, tirando as mulheres negras, que trazem um fator novo – mulheres feministas, negras da periferia como a Marielle [Franco]. Por isso que foi um choque o assassinato da Marielle, não só pela figura do que ela era, mas também como um extermínio da nova proposta da esquerda brasileira: feminina, da periferia e a associada à pauta da diversidade sexual”, analisa.
Em que pese nas votações e avaliações dos parlamentares mais destacados no Congresso, as deputadas e deputados de esquerda figuram nas primeiras posições da lista, a máquina estatal, de certa forma, domestica e engessa a efervescência das bases. “Como que o movimento social consegue viver no Estado por mais que o Estado seja governado por um partido de esquerda, centro-esquerda, visto que o Estado é uma máquina de moer carne? Aquilo que o Deleuze falava: o movimento social é de esquerda, mas o Estado sempre será de direita, conservador. As pessoas colocavam essa pergunta. Mas como conseguir fazer uma política de esquerda em uma entidade hierarquizada e vertical? Essa é uma das grandes questões da esquerda”, destaca.
Domenico Hur (Foto: Reprodução | YouTube)
Domenico Hur é pesquisador em Esquizoanálise, Esquizodrama e Psicologia Política. Professor de graduação e pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Goiás. Graduado em Psicologia pela Universidade de São Paulo – USP, mestre (2005) e doutor (2009) em Psicologia Social pela USP, estágio doutoral na Universitat Autònoma de Barcelona (2008/2009). Tem pós-doutorado na Universidad de Santiago de Compostela (2017/2018). É professor visitante do programa de mestrado em Psicologia Social e de doutorado em Ciências Sociais da Universidad Pontifícia Bolivariana, em Medellín. Ex-diretor da Associação Ibero-Latino-americana de Psicologia Política (AILPP), gestão 2016-2020. Colaborador do Instituto Gregorio Baremblitt. É autor, entre outros, de Esquizoanálise e esquizodrama: clínica e política (Alínea, 2023, 2. ed.)
IHU – Permita-me começar com uma menção a um dos maiores livros de Dostoievski: O idiota. Nele, um homem puro se torna uma espécie de idiota, um sujeito inadaptado para uma sociedade de valores corrompidos. Olhando comparativamente, o que é o idiota e que tipo de idiota a nossa sociedade tem produzido?
Domenico Hur – O idiota vai ter várias configurações e visões. Mas, de forma geral, quando ele aparece na política, vai ter uma expressão de protesto: o idiota é o que subverte a ordem. Então, ele gera regimes de crise, de questionamento e gozação ao que está ocorrendo. O idiota sempre vai trazer essa ideia de um protesto, uma mudança, uma alteração e por isso acaba sendo muito sedutor. Portanto teremos várias figuras. O filósofo Gilles Deleuze cita o personagem Bartleby, criado pelo escritor Herman Melville (Bartleby, o escrevente: uma história de Wall Street. Autêntica, 2015), que é o idiota no escritório. E que tem uma frase clássica: I would prefer not to (eu preferiria não fazer). O chefe, por sua vez, sempre vai pedir para ele executar uma tarefa e ele sempre vai dizer: eu preferiria não fazer. Qual é a sacada do Deleuze? Essa recusa, a partir de uma figura como o idiota, instaura regimes de incomunicabilidade que trazem ruído na comunicação e fissuras que podem levar a transformações. Então, o Bartleby aparece como um protótipo de revolucionário porque traz regimes de desordem nos quais podem gerar alguma transformação no atual estado de coisas.
Na política, a figura do idiota é muito explorável. Na França, tinha o palhaço Coluche [Michel Gérard Joseph Colucci], que tentou se candidatar a presidente e teve muita adesão, principalmente da intelectualidade de esquerda. O Coluche também foi um pouco dessa figura do idiota para trazer essa irreverência, subversão, porém a candidatura dele foi indeferida. Mas, naquele momento, era o idiota como um candidato da esquerda – isso que era o interessante.
IHU – O idiota é um revolucionário ou um oportunista?
Domenico Hur – O idiota pode ser usado de várias formas. Creio que o principal é essa figura de insurgência, da irreverência, da gozação e do humor. Ele pode ter vários lugares. Mas na política brasileira, como coloquei no artigo, o idiota foi muito bem utilizado pelo palhaço Tiririca, que tinha o lema: “Você sabe o que o Congresso faz? Também não sei, mas vote em mim”. O chocante é que ele foi o mais votado naquelas eleições como Deputado Federal e, em seguida, foi o segundo mais votado, sempre explorando essa figura.
No Brasil, o grande problema é que a esquerda política não se reinventou. Ela ficou com uma certa superioridade moral, certa seriedade e certo ressentimento. Então veremos que as propostas de esquerda são muito tradicionais, tirando as mulheres negras, que trazem um fator novo – mulheres feministas, negras da periferia como a Marielle [Franco]. Por isso que foi um choque o assassinato da Marielle, não só pela figura do que ela era, mas também como um extermínio da nova proposta da esquerda brasileira: feminina, da periferia e associada à pauta da diversidade sexual.
A esquerda não se reinventa. Infelizmente veremos que muitos candidatos de esquerda, ou em convenções de partidos como o PT, são formados pelas “cabeças brancas”. Isso é muito triste porque não traz atrativos para a juventude. Estou falando isso porque se a esquerda ficar muito séria, sisuda e com uma superioridade moral – porque sabem o que é melhor para as pessoas – acaba o humor e a alegria. A política pode ser alegre e ter humor e a esquerda acabou esquecendo disso. A direita utiliza o humor não de uma forma revolucionária, mas de forma oportunista de veicular a comunicação com público para atraí-lo. Também como forma de protesto, nesse sentido de que, se para grande parte da população todos os políticos são iguais, mentirosos e corruptos, o palhaço ou um idiota acaba sendo essa figura que vai alterar as coisas.
A extrema-direita vem utilizando essas figuras – e de modo muito bem pensado. Como o Bolsonaro, que já em 2017 e 2018 fazia esse papel com um comportamento destemperado (somado à produção dos marqueteiros), uma pessoa aparentemente ensandecida, falando um monte de besteiras para atrair mais atenção e agenciar a raiva da população contra a corrupção e o PT. Queira ou não, houve corrupção no governo do PT, como também nos outros governos de direita.
Foi construída essa figura de idiota como forma de capturar o pensamento das pessoas. Não só o Bolsonaro, como o próprio [Javier] Milei, que também veremos esse oportunismo da extrema-direita. Podemos pensar em outros políticos, como o Nikolas Ferreira, que foi o mais votado no Brasil, que consegue polarizar muito bem, tem uma grande atração de uma parcela e consegue muito ódio da outra parte. É isso o que eles querem performatizando esses papéis: gerar afetos intensos nos quais sempre serão falados. Aquela máxima “falem mal, mas falem de mim” nunca foi tão atual como na política hoje, porque conseguem mais visibilidade, engajamento nas redes sociais e de certa forma povoam o imaginário popular.
O oportunismo, ampliando um pouco mais o escopo da nossa discussão, nos ajuda a pensar a sensação política, que é o Pablo Marçal. Na entrevista do Flow Podcast, ele fala claramente: “Eu estou fazendo papel de idiota porque as pessoas gostam de ver coisas grosseiras, não é que eu curta isso, eu faço para aparecer”. Ele maneja as provocações e esse personagem espalhafatoso para gerar a atenção do público.
É uma gestão da heurística de acessibilidade com determinadas imagens de pensamento, com determinadas formas discursivas que vão tendo mais atenção do público. Quando o Marçal provoca repetidamente o Datena, que no dia 1º de setembro vai lá e finge bater no concorrente, ele está preparando o terreno para o que ocorreria no dia 15 de setembro, quando tomou uma cadeirada, o que foi perfeito para sua estratégia, pois o Brasil inteiro falou do Marçal, precisamente no momento em que [a pesquisa] DataFolha mostrou que ele estava caindo. Em várias pesquisas o Marçal está liderando entre os três, mas na [pesquisa] DataFolha da sexta [13-09-2024] ele caiu significativamente. Com isso, a campanha quis fazer algo mais agressivo para que no domingo eles conseguissem ter essa maior heurística de acessibilidade fazendo algo muito pungente que tivesse provocação ao Datena e ele caiu feito um pato. De forma que o Marçal conseguiu capitalizar e ele fala claramente que ele ocupa esse lugar de idiota.
Estou falando um pouco do Marçal porque as atenções estão indo para ele, por mais que o Marçal ocupe o lugar de idiota também, ele ocupa o lugar de pessoa muito bem-sucedida. Ele é o hipercoach que vai dar as palestras e escrever muitos livros, vai nos ensinar o caminho do sucesso. Então, os políticos sempre vão jogando com diferentes papéis. Isso que é interessante.
IHU – A rigor, esse não é um fenômeno só nosso, tampouco original. Há uma variedade de sujeitos ligados a esse tipo de arquétipo. Javier Milei, Boris Johnson, Donald Trump, Jair Bolsonaro. De qual caldo de cultura surgem esses personagens?
Domenico Hur – Na política parece que houve algum momento em que se rompeu o pacto da civilidade. Tinha um certo momento em que ainda se discutiam propostas, havia certo respeito, embora sempre tenha havido conflitos e atentados, mas parece que esse espaço ainda tinha um certo decoro. Mas ainda precisamos estudar melhor se a hipótese da intensificação do neoliberalismo – eu não duvido – ou a explosão das redes sociais digitais. Maurizio Lazzarato fala na existência de uma transição do povo, da população, para o público. Portanto, hoje, na sociedade de controle, o povo virou público. Se hipotetizarmos que o povo vira público com a explosão das redes sociais digitais, com aumento tecnológico e com a intensificação do neoliberalismo, isso na década de 1990, podemos hipotetizar que há um declínio do espaço democrático de decisão e negociação para que haja o desenvolvimento de tecnologias e performances para manejar os afetos desse público.
Vão manejar os afetos desse público por meio de tecnologias emocionais e psicológicas, psicopolítica, as mais sofisticadas possíveis para conseguir determinadas condutas. Não é apenas o voto, mas principalmente consumir determinados produtos. O que vemos com o Instagram e o TikTok é essa captura da atenção. Ficando mais tempo conectado à tela em que aparecem coisas que gostamos de assistir, como gatinhos bonitinhos, cachorros ou mulheres de biquíni, de modo que as pessoas ficam horas e horas e no meio disso aparece uma propaganda outra.
O desenvolvimento de tecnologias psicopolíticas para capturar a atenção e gerar determinadas condutas de forma espalhafatosa, grosseira e polarizada, sugerindo e incitando ódio às minorias e aos migrantes, afirmando que eles próprios são o povo oprimido e outros a elite corrupta. Isso pode ser feito tanto para o populismo de esquerda quanto para o populismo de direita.
Por que será que há uma propaganda política tão baixa, primitiva, beligerante? Talvez seja porque a promessa do sonho americano de que a pessoa vai trabalhar, ficar rica e feliz se esvaziou e as pessoas viram que não é possível. É um pouco do que o Byung-Chul Han fala: o capitalismo nos promete riqueza e felicidade, mas só nos trouxe cansaço e esgotamento. Talvez, uma promessa política pelo crescimento, felicidade ou pela igualdade, como a esquerda coloca, valores mais abstratos, como “vamos amar à cidade”, não tem muita eficácia.
Já se percebeu que uma eficácia maior é a polarização, incitação de ódio ao inimigo – qualquer que seja, esquerda, mulheres, imigrantes, minorias, pessoas pró-aborto. Isso gera uma raiva, uma ira e um sentimento de injustiça na população de uma forma mais rápida e eficaz. Por isso, talvez, com a transição do povo para o público, para ter respostas mais rápidas, é necessário gerir os afetos de ira e injustiça nas pessoas. Então a polarização acaba sendo muito eficaz e a pessoa parecendo com essa figura meio caricata, desmazelada, o que chama mais a atenção no público e força a identificação: ele é uma pessoa igual a mim, ele fala o que pensa. Por isso o Bolsonaro sempre tentava criar situações em que parecia uma pessoa simples, comendo no [restaurante] a quilo ou aquela imagem patética dele comendo frango assado e farofa no ponto de ônibus em Brasília, em que ele está todo babado. Eu gosto muito desta imagem, porque além de ser patética, ela mostra o preconceito que ele tem com o povo e principalmente porque tem o staff dele –umas 20 pessoas em volta dele filmando e fazendo a segurança – mostrando que é algo fake.
Aparecer desmazelado é uma forma de gerar a identificação dessa heurística da acessibilidade, que é a fixação do pensamento das pessoas. Quando escrevi esse artigo também fiz slides e peguei uma foto do Hitler, sabendo que a campanha, o nazifascismo, era (e é) muito psicopolítico, foi possível constatar que o bigode dele é praticamente igual ao do Chaplin, além de todos aqueles trejeitos no Hitler. Claro que não é um tema que eu estudei a fundo, mas creio que para a constituição da figura do Hitler também há uma criação meio caricata como forma de capturar a atenção do povo. Nós gostamos dessas coisas meio diferentes.
Bolsonaro e seu staff na gravação da cena em que ele come frango com farofa (Foto: Reprodução/X)
IHU – A esquerda se leva a sério demais? Qual pacto narcísico organiza a escolha de seus candidatos?
Domenico Hur – A esquerda tem um grande desafio, porque para a direita se congregar e aliar é muito mais fácil, porque eles fazem os cálculos dos lucros e da divisão. Já a esquerda tem todo esse trabalho da democracia, da participação, da decisão colegiada em plenários, assembleias, então é muito mais demorado e mais difícil. A esquerda se organiza de diversas formas, seja uma esquerda mais intelectual, que discute mais, seja a esquerda com alguns profissionais que estão nos seus sindicatos – já teve um grande declínio – e alguns movimentos sociais, sejam mais autogestionários ou institucionalizados e os partidos políticos. Os partidos são mais burocratizados, são “miniestados”. Como os partidos são mais burocratizados, hierarquizados e há um pouco mais de personalismo, o que afasta muito os ativistas de esquerda mais bem-intencionados. As pessoas acabam indo fazer movimentos sociais em outros lugares ou mesmo movimentos digitais porque não querem ficar submissos a outras pessoas nos partidos. Os partidos estão afastando as pessoas infelizmente.
Quando eu falo que nos partidos de esquerda há muita cabeça branca, não é nada contra, não estou sendo etarista, mas falo pela falta de renovação. Os partidos, infelizmente, estão muito ligados ainda a lugares de poder históricos, institucionalizados, não que não deva ter, mas isso gera o afastamento das pessoas e, com isso, há o afastamento também das bases. É por isso que se critica: o PT perdeu a relação com os religiosos, não tem relação com os neopentecostais. Mas no fim da década de 1970 o PT tinha uma relação muito boa com as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs. Geralmente quem se profissionaliza, principalmente em cargos de lideranças e no Estado, normalmente se afasta da base. Com isso, quem está no Estado se identifica mais com as classes dominantes, com a burguesia, do que com a própria base.
Na sexta passada, 13-09-2023, eu estava em Brasília em uma atividade com a secretaria de educação popular e tinham vários outros ativistas que estão no Estado, como feministas e movimento negro, e eles colocavam essa questão: como que o movimento social consegue viver no Estado por mais que o Estado seja governado por um partido de esquerda, centro-esquerda, visto que o Estado é uma máquina de moer carne? Aquilo que o Deleuze falava: o movimento social é de esquerda, mas o Estado sempre será de direita, conservador. As pessoas colocavam essa pergunta. E são pessoas com mais experiência do que eu. Mas como conseguir fazer uma política de esquerda em uma entidade hierarquizada e vertical? Essa é uma das grandes questões da esquerda. Um militante que era da base e vira um político institucionalizado do Estado, tem um afastamento e muitas vezes se autoinveste de um poder meio imperial, estatal, soberano. Quando esse político de esquerda que era da base se investe nesse poder soberano, é que o círculo acaba, porque ele vai representar mais o Estado do que a base.
Entrando em uma seara um pouco mais difícil, que não está bem dentro do nosso tema, essa hipótese nos ajuda a pensar porquê o nosso ex-ministro de Direitos Humanos [Silvio Almeida], que é um grande representante e tem uma luta antirracista incontestável, um grande teórico, referência para muitas políticas afirmativas e para muita gente, supostamente cometeu tais infrações ao estar investido nesse poder de Estado. Por mais que falem que esse é histórico meio antigo, o que quero colocar é que, no âmbito psicopolítico, essa simbiose entre sujeito e lugar de poder faz muitas vezes com que haja um abuso do corpo dos outros. Onde quero chegar é que há, historicamente, essa questão dos déspotas das sociedades imperais há uma questão do incesto. Déspota é o Imperador que vai transar com a irmã porque para eles é como se não houvesse leis, eles poderiam fazer tudo. A pessoa vem de esquerda, mas o próprio investimento do poder vertical – Estado –, produz uma supressão da lei, como se ela não valesse para determinadas pessoas. Às vezes acontece isso com a esquerda no poder.
IHU – Olhando para a esquerda que atualmente chega ao poder, percebemos que seus circuitos de fala são sempre muito moderados, condescendentes e com o desejo de agradar o mercado. Por outro lado, à direita, os oponentes costumam ter falas mais disruptivas que buscam sempre criar um curto-circuito, uma zona radical de não diálogo, com as minorias, mas também com mediadores sociais como as instâncias políticas e jurídicas. Os radicais de direita costumam ser mais eficientes em fugir do controle? Que consequências políticas isso tem?
Domenico Hur – Essa pergunta é muito boa. A esquerda tem que reinventar as práticas e é difícil. Eu vejo muito isso, até mais na academia: a esquerda acaba sendo muito discursiva. Temos aquele discurso perfeito da equidade, igualdade, vamos criar comunas e autogestão, mas na prática é onde as coisas não funcionam. Por quê? Alguns militantes falam que a esquerda tem um discurso revolucionário e uma prática conservadora. O que ocorre no âmbito eleitoral da plataforma política é que as campanhas são um pouco abstratas para o público. As pessoas até podem concordar com os princípios, mas vão se perguntar o que isso vai mudar na minha vida.
Já a direita é mais pragmática, tenta colocar mais ações de mudança, mesmo que sejam ações que não serão realizadas. O Bolsonaro colocava “vamos fechar o STF” e o Milei “vamos fechar o Banco Central”. O Bolsonaro tomou o poder, infelizmente, e se houve um presidente revolucionário – no sentido de trazer uma transformação – é ele. Estava fazendo essa revolução, a revolução da privatização, da terceirização, as reformas trabalhista e da previdência que foram aprovadas nos governos Temer e Bolsonaro. Além disso, Bolsonaro estava fazendo uma revolução molecular, não era só do mercado em acabar com o Estado, que é armar sua população, bem no modelo chavista. No caso chavista ele estava armando as classes pobres, as pessoas residentes nas favelas, já o Bolsonaro a classe média e a classe média alta, o “tiozão do pavê”. Já estava fazendo essa revolução molecular no sentido de que cada um deve se armar, ir para rua e fazer a mudança.
Quando chegamos no Natal de 2022 e tem aqueles dois senhores que estão com um caminhão de gasolina no aeroporto de Brasília, querendo explodir o lugar, e muito armados – existiam mais de dez armas pesadas. Eu estudei as guerrilhas de esquerda no meu doutorado. Se compararmos esses dois indivíduos com mais de dez armas cada um, entre metralhadoras e fuzis e um caminhão que queriam explodir, com a década de 1960 e os guerrilheiros que tinham uma pistola e poucas armas, quem estava próximo de fazer a revolução? Até uma das ações da expropriação de armas que foi muito exitosa na guerrilha de esquerda, com o Carlos Lamarca, foi quando ele roubou cerca de 15 fuzis do quartel de Itaúna, em Osasco, São Paulo. Comentava-se: o Lamarca roubou 15 fuzis. E se olharmos para esses caras [classe média e média alta bolsonarista] eles têm dezenas e dezenas de armas, muito dinheiro. Os acampamentos nos quartéis era superfinanciado. E com isso nos questionamos: quem está próximo da revolução? A guerrilha armada da década de 1960 ou os bolsonaristas de agora? Esse discurso da ação, do armar-se para a direita acaba sendo muito eficaz porque trabalha o próprio ressentimento das pessoas de meia idade e ocorreu o que ocorreu. Por isso que houve aquela invasão dos Três Poderes, mas ainda bem não teve a explosão do aeroporto de Brasília no Natal, porque isso seria catastrófico. Não acho que geraria um golpe, mas levaria dezenas de vidas, seria algo muito traumático.
Mas, infelizmente, essa gestão noopolítica essa política sobre o pensamento e sobre os afetos, que a extrema-direita vem trazendo, que é calcada na ira, no ódio, leva a essas possíveis disruptividades.
IHU – O que é a noopolítica?
Domenico Hur – A noopolítica é um termo que visa substituir biopolítica. Se a biopolítica era uma política sobre o corpo, noopolítica é a política sobre o pensamento em que noo está associado etimologicamente a pensar. O Maurizio Lazzarato cunhou esse termo, noopolítica, para pensar esse governo sobre o pensamento, os afetos e a memória. Essa questão da figura do idiota, os extremismos têm uma alta eficácia política no governo sobre essa subjetividade, por isso podemos falar que hoje estamos mais em tempo de noopolítica, de política sobre o pensamento, os afetos e a subjetividade, do que aquelas políticas sobre o corpo, que o [Michel] Foucault escrevia muito bem no período disciplinar.
IHU – Até que ponto “fazer o idiota” é, concretamente, uma alternativa para as forças políticas realmente progressistas?
Domenico Hur – Pensando no contexto atual, se temos a extrema-direita fazendo o idiota, será que um idiota de esquerda poderia ser uma boa alternativa? Eu não pensaria em um idiota, mas pensaria um pouco na figura do Lula. É claro que ele está um pouco mais velhinho, mas ele é o “homem forte”, que é uma alternativa boa para o idiota. Mas o homem forte meio autoritário, como o Lula mesmo – temos o “Lulinha paz e amor”, mas sabemos que ele é um líder autoritário. Porque no cenário político, no campo eleitoral, o grande diferencial é o manejo das paixões, dos afetos. Então, quanto mais em crise estamos, mais os afetos são importantes para a escolha eleitoral. Em 2018, o candidato do mercado era o Alckmin, só que ele sempre foi muito anticarismático, e o Bolsonaro subiu feito um foguete. O pior equívoco do PT foi colocar o Fernando Haddad como candidato – isso eu sempre falo nas minhas aulas, palestras e para os petistas – porque ele é um gentleman, é a pessoa comedida, gentil, é um cara bacana, que gosto (eu votei nele), mas não funciona em períodos de crise. Por isso que ele perdeu e teve uma derrota homérica. O Haddad não deu em 2018, mas talvez em 2026 se a economia estiver melhor e tudo estiver mais apaziguado o Haddad possa funcionar sendo essa pessoa mais conciliadora. Mas me parece que não, o Haddad não será uma boa oferta da política.
Mas em tempo de idiotas, colocar um idiota de esquerda não funcionaria. Se for um Stálin de direita e colocarmos um idiota como forma de provocação, pode ser possível, mas o que funciona mais é essa história do “homem forte”. Por outro lado, temos essa transição dos perfis, porque o homem forte é essa política antiga. O Bolsonaro se colocou como política nova, mas ele é a política antiga.
Quando vemos Nikolas Ferreira tendo muitos votos, percebemos que esse é o novo perfil: influencer, jovem, que não tem papas na língua. E quando vemos o Marçal, mesmo que ele não ganhe e não vá para o segundo turno, ele consegue monopolizar os holofotes, com um outro perfil: o influencer, coach, o cara que é bem-sucedido.
Eu estava pesquisando para escrever um artigo sobre o Marçal e ele tem mais de 20 livros escritos. Na Wikipédia aparecem só 12 livros, mas esses são de 2022 e 2024, e esse ano não acabou, então ele publica quatro livros por ano [risos]. Todo esse discurso que ele tem sobre a venda do sucesso é paradigmático, até eu estava brincando com meus amigos e dizendo que a eleição de 2026 será Marçal contra Felipe Neto, os influencers.
Eu não vejo o idiota de esquerda como uma saída para 2026. Talvez o “homem forte”, se vão querer manter o Lula até os 90 anos, 100 anos, até quando ele puder respirar. Mas o Brasil tem essa tradição de manter políticos muito velhos na disputa. Aqui em Goiás o Iris Rezende foi colocado em todas as eleições até falecer [2021] e ele já tinha sido prefeito na década de 1960. Mas é uma grande questão: o que fazer na esquerda?
A Kamala Harris, as pessoas estão um pouco pessimistas com ela como alternativa ao Biden, está tendo uma ótima performance, pois ela é muito inteligente e hábil. Talvez um perfil como este possa ser bom: mulher, negra, com uma boa formação e muito segura de si, mas tem que ter essa questão da persuasão e do carisma, isso é indispensável. A Manuela [D'avila] é ótima, mas não sei se por questões pessoais ela deu um “bode” [Manuela afastou-se da política, entre outras razões, após as inúmeras ameaças a sua família]. Ela ainda seria uma boa alternativa, muito melhor que o Haddad e a [Gleisi] Hoffmann.
IHU – Até que ponto figuras como Felipe Neto são interessantes ou viáveis para uma política de esquerda?
Domenico Hur – O Felipe Neto é um personagem muito interessante porque ele é um jovem que foi muito anti-Dilma e anti-PT, mas fez a curva, estudou, pensou e reavaliou e hoje é bem de esquerda e se comunica muito bem com o público jovem. Por isso eu brinquei falando que em 2026 ou 2030 podemos ter Marçal contra Felipe Neto. Por um lado, ele é uma alternativa e, por outro, é essa expressão de que somos governados hoje pelas redes sociais digitais. Quem é grande influencer acaba tendo visibilidade, likes e votos, quem não é, não tem. Talvez seja esse o nosso futuro. Ao menos é melhor influencer do que esses bonecos criados por Inteligência Artificial, que não sabemos quem são ou o que serão [risos]. Mas, no âmbito da influência e da razão, a capilaridade do Felipe Neto é uma possibilidade.
Não sei se para essas pessoas que já têm muito dinheiro com o trabalho é interessante. Ir para a política é muitas vezes um desgaste, um estresse. O próprio Luciano Huck, não sei se ele seria um semi-idiota com o jeito dele, mas ele ficou pensando se seria o candidato do mercado mais responsável e preferiu continuar com os honorários da Globo. O próprio artista que não tem formação política é muito complicado quando entra no espaço político, porque muitos não entendem como é a lógica, padecem e até falecem de ataque cardíaco. O próprio Clodovil [Hernandes] durou cerca de oito meses no Congresso, ficava muito nervoso, estressado e teve um ataque cardíaco.
Essa é uma grande questão: que perfil a esquerda pode emplacar? Por enquanto são as mulheres negras, Erika Hilton, por exemplo, mas ela dificilmente teria grande aceitação das classes médias brancas masculinas. Estamos criticando um pouco a esquerda, mas temos parlamentares de esquerda muito bons. Inclusive, no Prêmio Congresso em Foco muitos deles são premiados e premiadas, e são possíveis alternativas. Mas a questão é como conseguir massificar para o público não de esquerda esses atores e essas atrizes políticas. Porque o Brasil é muito complicado, em qualquer país da Europa, que são países pequenos ou mesmo na Espanha, que tem cerca de 50 milhões de habitantes, conseguir emplacar um político de nome nacional é muito difícil. Se formos para Lituânia, que tem menos de 3 milhões, é muito mais fácil.
IHU – Voltando à questão dos discursos e seus curtos-circuitos. Quais são as principais imagens capturantes do pensamento que os idiotas utilizam?
Domenico Hur – As imagens são as mais descabidas possíveis. O que é mais exagerado e grotesco tem grande eficácia, coisas que saem do limite da civilidade ou quando político vai enunciar isso. Quando o Bolsonaro fala “Se você tomar a vacina da Covid-19 e virar jacaré, a culpa não é minha”. Nós nunca imaginaríamos que um Presidente faria uma fala dessas. Isso viralizou mundialmente, todos falavam mal do Bolsonaro, até o vocalista do Kiss [Gene Simmons], isso foi muito concertado. Quando a capitã cloroquina [Mayra Pinheiro] critica a Fiocruz, ela diz: “Vocês viram o símbolo da Fiocruz? Parece um pênis” [risos]. Algo descabido. E ela está sendo investigada e processada, isso tomou a opinião pública. Quando o Milei fala “Resolvi me tornar presidente porque meu cachorro morto me aconselhou” [risos], são essas coisas mais descabidas que todo mundo vai falar. O problema é que as pessoas simpatizam por esse desvario. Quando o Milei fala “Meu governo será tão liberal que as pessoas vão poder vender órgãos” e mesmo que isso não seja aplicável, todo mundo vai falar, porque é uma imagem de pensamento muito forte. Quanto mais descabido melhor para propagar para um público de 40, 50, 100 milhões de pessoas.
O que é louco é isso: eles querem o afeto intenso, a aceitação e a rejeição. O Pablo Marçal é o mais rejeitado atualmente no segundo turno, porque essa polarização vai remeter a isso e a chance de conseguir ir para o segundo turno. Eu assisto lutas de MMA/UFC e tem alguns lutadores escrotíssimos e que os amigos dizem que eles agem dessa forma para aparecer. É a mesma prática política, na luta é mais ainda, as pessoas são odiadas e o público fica com raiva e quer ver a luta da aquela pessoa para vê-la perder. Esse tipo de discurso aumenta o número de espectadores e se ganha mais porcentagem do pay-per-view. Trata-se de uma estratégia que é muito utilizada na política e no entretenimento e a pessoa acaba ganhando muita visibilidade.
IHU – Qual o papel do humor fatalista no circuito dos afetos da política radical da extrema-direita? Por que humilhar e fazer escárnio de adversários é capaz de angariar tantos votos?
Domenico Hur – O humor fatalista agencia o que Deleuze chama de “alegrias do ódio”, “alegrias da depreciação do outro”, “alegrias da autodepreciação”. Muito no sentido de que essa depreciação, esse ódio e escárnio vai ter uma função de descarga energética do mal-estar. Por exemplo, tinha a jornalista Cristina Rocha no SBT, que tinha aquele programa Casos de família, que sempre eram “tretas”, brigas de família que eram um “horror”, um escárnio, com uma audiência grande em que as pessoas gostavam de deplorar a família do outro. Da mesma forma, tinha aquela série americana dos anos 1990, Married... with Children (Um amor de família), em que a família só passava por desgraças e fez muito sucesso essa deploração do escárnio, e os atores falavam que o público que mandava cartas e mais gostava era o público de presidiários, que falava “Eu gosto muito de ver a série de vocês, porque acho que estou mais ferrado na vida, mas o personagem principal é mais ferrado do que eu. Rio demais”. Era tudo escárnio: com a vizinha feia, com o filho baixinho que não cresceu, era alegria do ódio total.
Temos essa função desse humor de escárnio como descarga energética. Por outro lado, ele não muda, não traz transformação social, não nos tira do lugar e cria uma certa catarse, mas os mantém no mesmo lugar. Então, está todo mundo ferrado, então vamos seguir juntos no fundo do poço. A lógica da extrema-direita é essa: camadas pobres sintam raiva, mas ficaremos todos no fundo do poço, porque quem vai lucrar muito são as grandes corporações de empresários, enquanto os pobres vão perder cada vez mais direitos. A ideia em síntese é essa: o idiota fazendo suas traquinagens e a população rindo, mas nutrindo essas alegrias do ódio.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Domenico Hur – A macropolítica está mudando tão rápido as estratégias, que é vertiginoso. Estamos falando do Bolsonaro e do Milei cumprindo o papel do idiota, mas isso já é velho, já tem novos personagens, novas práticas e outra lógica – no caso, o Marçal. É uma mudança que nunca vimos no cenário político e talvez essa produção de personagens será como Hollywood mesmo: novos produtos para captar a atenção das pessoas, novos modelos, mesmo que tenham a carne parecida, sempre serão oferecidos novos produtos para capturar a atenção.