As plataformas digitais estão na ponta de lança do projeto da extrema-direita: a privatização de tudo. Entrevista especial com Letícia Cesarino

Pesquisadora e autora fala de como a intensificação dos extremos, com narrativas de causalidades simplificadas, nos leva a pontos de bifurcação em que a realidade se vê refletida no seu oposto

Foto: Canva

Por: Baleia Comunicação | 26 Junho 2024

Fake news, desinformação, pós-verdade. O léxico político da última década dá o tom das profundas transformações políticas que estamos vivendo, no qual mediadores da realidade como a ciência e a academia, com todas suas complexidades, passam a coabitar um espaço permeado por narrativas simplórias e conspiratórias. A extrema-direita está “disputando por fora, estão disputando o todo, através dessas novas formas de mediação de verdade, como o caso dos gurus da internet, os influenciadores, como no caso da pandemia, com os médicos do tratamento precoce. Eles usam mediações diferentes das mediações da ciência, eles correm por fora”, explica Letícia Cesarino em entrevista por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Nesse mundo ao avesso, atores sociais como professores e até mesmo a escola, uma conquista civilizatória ainda não totalmente concluída no Brasil, são mal vistos socialmente. “O caso extremo seria o homeschooling, onde nem na instituição da escola se confia mais – há uma série de teorias conspiratórias por trás, envolvendo Paulo Freire, globalismo etc. – e literalmente a criança será educada dentro do lugar mais privado que existe, que é dentro de casa. Com isso, nega-se à criança a participação no espaço público”, descreve. “A negação, esses ataques aos professores, é um ataque à escola como espaço público de convivência da diferença, de construção de uma subjetividade democrática, de uma subjetividade cidadã”, complementa.

Uma vez no mundo ao avesso, não há mais como desvirar, "é muito difícil", coloca a professora. Ao se conectar com esse universo, a pessoa passa por "uma trajetória extrema que realiza a dupla inversão, em que ela entra realmente nessa realidade paralela", e "é muito difícil desprogramar", enfatiza. A alternativa primeira, para Letícia, é a "regulação das plataformas, mas não é qualquer regulação, dessas de enxugar gelo, é uma regulação que de fato incida sobre a arquitetura algorítmica [...] não tem outro caminho, tem que continuar pressionando por uma recuperação da soberania digital por parte da sociedade e do poder público", conclui.


Letícia Cesarino (Foto: Divulgação)

Letícia Cesarino é professora adjunta no Departamento de Antropologia e no PPG em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (2004), mestrado em Antropologia pela Universidade de Brasília (2006) e doutorado em Antropologia pela Universidade da Califórnia em Berkeley (2013). É autora, entre outros livros, de Mundo ao avesso: verdade e política na era digital (UBU, 2022).

A entrevista foi originalmente publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU em 05-06-2024.

Confira a entrevista.

IHU – O que é o “Mundo ao avesso”, tema e título de seu livro lançado em 2022?

Letícia Cesarino – A ideia do Mundo ao avesso é uma imagem topológica que representa um extremo de diferença. É tipicamente uma topologia de guerra onde o inimigo é igual a mim, mas ao contrário. É aquela ideia de mundo invertido que não tem uma comensurabilidade, um reconhecimento possível entre os sujeitos. Um dos argumentos do livro é que os ambientes digitais algoritimizados estão empurrando e influenciando os processos sociopolíticos na direção de uma segmentação extrema, que se torna uma bifurcação entre mundo invertidos.

Reprodução da capa de Mundo ao avesso: verdade e política na era digital (Foto: Ubu Editora)

IHU – Temos de um lado a crise dos especialistas, como decorrente da ideologia cientificista da objetividade, e de outro os gurus da internet que oferecem soluções rasas (e não raro irracionais) para absolutamente tudo. Por que isso acontece? Como encarar esse paradoxo?

Letícia Cesarino – Não é só um espelho invertido. A ideia de virar do avesso sugere dois níveis de operação: um local e um global. Porque a extrema-direita está disputando o todo; ela disputa as mediações, não as partes. Então, na questão da ciência isso fica muito claro, porque a ciência e a academia são o centro do sistema pré-digital. Nessa disputa metapolítica, que é um termo que eles usam inclusive, eles não estão disputando dentro da ciência, através das mediações da ciência e da revisão por pares. Eles disputam por fora, disputam o todo com essas novas formas de mediação de verdade, como o caso dos gurus da internet, os influenciadores, como no caso da pandemia, com os médicos do tratamento precoce. Eles usam mediações diferentes das mediações da ciência, eles correm por fora.

No caso desses gurus, que são negacionistas, mas se veem como “ciência alternativa” – vamos colocar assim –, eles estão na periferia do sistema científico, que era o caso dos médicos do tratamento precoce, só que eles também realizam essa inversão margem/centro para se colocar no centro e a suas metodologias de casos anedóticos. No caso da ciência ocorre algo que acontece no caso da política, que são esses atores periféricos com um certo ressentimento de não ter conhecimento e de não ocupar o centro. Esses públicos da extrema-direita e das ciências alternativas, que são sempre públicos digitais – isso é importante –, realizam esse movimento de contestação do todo, porque eles se colocam como um novo centro. Claro, é um tipo de produção de verdade muito mais próximo daquilo que conhecemos como senso comum, em contraste com a produção de especialistas que seguem um ou outro rito, um ou outro procedimento metodológico, de revisão por pares; tudo isso que conhecemos.

IHU – Há pais que atacam as escolas e querem ter o direito absoluto sobre as ideias dos filhos, ideia sintetizada no conceito de homeschooling. Qual foi a volta no parafuso da história recente que transformou professores em doutrinadores?

Letícia Cesarino – Quanto à questão dos professores é bastante importante, porque também é um tipo de metapolítica. No fim das contas, o que esses atores querem, tanto do lado conservador quanto do lado neoliberal ou pós-neoliberal – que é mais uma volta do parafuso depois do neoliberalismo convencional? Eles querem privatizar o público. Tudo o que vem da extrema-direita acontece nesse sentido, tem uma inversão de novo, uma inversão do público para o privado, assim como no caso da democracia e da educação também.

Eles têm uma ideia de que as famílias, que é uma entidade privada, devem escolher a educação dos filhos; existe um movimento de segmentação nisso também. O caso extremo seria o homeschooling, onde nem na instituição da escola se confia mais – há uma série de teorias conspiratórias por trás, envolvendo Paulo Freire, globalismo etc. – e literalmente a criança será educada dentro do lugar mais privado que existe, que é dentro de casa. Com isso, nega-se à criança a participação no espaço público.

A negação, esses ataques aos professores, é um ataque à escola como espaço público de convivência da diferença, de construção de uma subjetividade democrática, de uma subjetividade cidadã. E se propõe no lugar disso que as famílias tenham o controle desse todo. Isso começa a misturar as famílias com outros entes privados também, que são os líderes religiosos, pastores, as escolas cívico-militares e, obviamente, o ensino privado, dos empresários e dos grupos empresariais. Isso está ligado à ideia da “escolha do consumidor levada ao extremo”.

Por exemplo, eu individualmente escolho a educação que o meu filho quer. O problema é que as pessoas não estão mais diferenciando o que é uma educação familiar/privada do que é uma educação no âmbito público; as duas precisam existir, a criança não pode ficar só na escola, porque a escola não vai educar a criança para a família, mas ela também não pode ficar só na família. Inclusive, o Estatuto da Criança e do Adolescente é bem claro: a criança precisa ter uma responsabilidade distribuída. Porque se a criança está sofrendo uma violação na família, ela precisa ter a quem recorrer; se ela está sofrendo uma violação na escola, ela precisa ter a quem recorrer. É necessário haver uma distribuição dessa responsabilidade. O homeschooling mata isso porque tira a criança do espaço público.

IHU – No Brasil, há uma produtora de filmes bastante famosa chamada “Brasil Paralelo”. Entre as suas produções, há uma que coloca Maria da Penha, que sofreu uma tentativa de assassinato com um tiro nas costas, como culpada pelo crime de que foi vítima e sopesa o gesto do marido. Que mecanismo de inversão da realidade está em jogo em produções deste tipo?

Letícia Cesarino – É interessante que a Brasil Paralelo é bastante explícita com relação a isso. Aqui temos o movimento de virada do avesso, de dupla inversão. Porque eles vão pegar a construção canônica, por exemplo, em torno da Lei Maria da Penha, da ditadura militar ou da colonização do Brasil, e aquilo que era ruído eles irão transformar em sinal. Eles fazem uma inversão do ponto de vista informacional. No caso da Maria da Penha, tem uma inversão do código vítima/perpetrador: se o ex-marido dela foi consolidado como perpetrador e ela como vítima, eles realizarão essa inversão. Como também é feito com relação aos Bandeirantes e os povos indígenas em algumas das produções do grupo, com relação à questão da ditadura, os ditadores, os militares e os guerrilheiros. Eles vão ver “o outro lado” e captar “evidências” que mostram que não era bem assim; eles irão desestabilizar aquela construção canônica. Todas as produções da Brasil Paralelo têm essa característica.

É uma inversão da realidade porque, literalmente, esse movimento de ver o outro lado, de pegar o que era menor e colocar para o centro, não necessariamente no sentido de inventar fatos, mas de pegar fatos que não foram importantes naquela trajetória, por exemplo, da agressão à Maria da Penha, e colocar no lugar de centralidade que ela não teve na realidade. É por isso que toda fake news e toda a teoria da conspiração tem um pezinho na realidade, porque é um pedacinho onde ela se conecta com a realidade, mas o problema não é aquele pedacinho de informação, mas o todo em que ela se insere.

A Brasil Paralelo e outros segmentos da extrema-direita sempre estarão colocando esse todo invertido. No caso da Brasil Paralelo, tem o agravante de eles não se colocarem como um movimento político de forma explícita; eles vêm com essa conversa de que são “neutros” e que só querem ver os dois lados e com isso vão recrutando pessoas para a extrema-direita.

IHU – A internet e as redes de comunicação on-line, como o WhatsApp, parecem ser um terreno fértil para narrativas conspiratórias. Como isso impacta na realidade concreta do mundo?

Letícia Cesarino – As teorias da conspiração e todo o ecossistema ou público extremista também é conspiratório e é, ao mesmo tempo, um sintoma e um meio pelo qual os indivíduos vão se desengajando da confiança social com relação ao centro do sistema pré-digital, que é a academia, a imprensa profissional, a ciência, o mainstream, mesmo os partidos políticos e as instituições democráticas. Porque a narrativa conspiratória substitui as explicações objetivas e invertem essas explicações. Tanto que toda a teoria da conspiração, no fim das contas, sempre recai sobre uma pessoa ou grupo de pessoas. Porque é George Soros, é o Bill Gates, é o Foro de São Paulo, isto é, uma narrativa de senso comum para explicar grandes causalidades.

Por exemplo, a educação brasileira vai mal porque o Paulo Freire é bancado pelos globalistas e eles fizeram a guerra cultural etc. Nunca é um fator objetivo estrutural, por exemplo, com relação a questões econômicas e a forma como a ciência explica. É sempre uma narrativa que vai facilmente ser absorvida pelo senso comum. A pessoa que cai num ambiente conspiratório – e é muito fácil para o senso comum cair nesse espaço – é porque ela já está perdendo a confiança nesses mediadores que são os mediadores do sistema pré-digital.

IHU – Em seu livro – Mundo ao avesso – a senhora afirma que a internet não criou a polarização política, pois nenhuma tecnologia é capaz de criar realidades. Mas quando vemos essas versões distorcidas da realidade, que circulam em grupos de WhatsApp, não estamos diante da construção de uma nova realidade capaz de mobilizar dezenas de milhões de pessoas?

Letícia Cesarino – "A tecnologia não é capaz de criar nada novo" é o argumento das plataformas. Ah, o ódio já existia, as mentiras já existiam, os rumores e a teoria da conspiração já existiam. Sim, existiam, no mundo pré-digital, mas na esfera pública pré-digital essas trajetórias extremas ocupavam um lugar muito mais periférico. A teoria da conspiração era uma coisa quase anedótica, no âmbito do lazer, do privado, dos rumores e das fofocas. O problema é que as plataformas fazem o que era periférico, o que era do domínio privado, caminhar para o centro da esfera pública.

O argumento do livro é que a tecnologia tem esse viés, porque é uma tecnologia – vários autores também apontam isso – que, ao colocar no centro o conteúdo gerado por usuário e os algoritmos com viés de segmentação e com uma temporalidade hiperacelerada, empurra o corpo social para essa topologia onde o público é englobado pelo privado. Claro, a tecnologia não está inventando nada, mas ela está dando uma escala e uma centralidade para fenômenos que em outros ambientes de mídia eram menores e periféricos. Por exemplo, as comunidades políticas extremas, pois o neonazismo e a extrema-direita sempre existiram; Bolsonaro era deputado há quase 30 anos quando foi eleito [Presidente da República], mas ele era periférico, quase anedótico e de repente uma figura como ele está no centro do sistema político. Foram as plataformas que permitiram esse movimento, sem dúvida.

IHU – Como tudo isso formou uma rede de ressentimento e conservadorismo e como isso reflete política e socialmente no Brasil?

Letícia Cesarino – A questão do ressentimento é absolutamente central, porque esses públicos da extrema-direita e da teoria da conspiração pegam as pessoas justamente pelo ressentimento, pelo sentido de que não está sendo reconhecido. A esquerda sempre quer que sejamos algo diferente do que somos, a extrema-direita é o contrário, ela diz que a pessoa está bem como ela é, não precisa aprender, nem mudar, nem ter uma relação mais horizontal com a sua mulher, o Brasil é isso etc. Eles são muito realistas nesse sentido do realismo capitalista do Mark Fisher, “a segurança pública é isso mesmo, os bandidos são maus e isso nunca vai mudar e tem que ir lá e matar mesmo”. E é muito fácil pegar as pessoas pelo ressentimento, porque viver no capitalismo é difícil, fica todo mundo frustrado com alguma coisa, daí se alguém aponta esses inimigos, é muito palatável para o senso comum.

Não tem problema eles serem inimigos imaginários, essas fantasias de banheiro unissex, porque eles estão cumprindo uma função afetiva, não é uma função objetiva de explicar a realidade, é uma função afetiva da pessoa se sentir bem, sentir que está tendo de volta o controle e ajudar ela a viver. Essas narrativas ajudam as pessoas a explicar a realidade, ainda que de forma errada, mas na prática não faz muita diferença. É uma espécie de autoajuda também, porque elas propõem uma cura, uma terapia, tem um aspecto terapêutico de que existem essas lideranças, como Bolsonaro e outros, que vão estar combatendo esses inimigos e muitas pessoas se sentem mobilizadas por estar encontrando nesses públicos uma forma de intervir na realidade, que elas não encontram no sistema anterior – e muitas vezes com razão, porque realmente não encontram.

IHU – Em que sentido os processos de digitalização da política e da verdade são e não são o mesmo fenômeno?

Letícia Cesarino – A transformação estrutural da esfera pública pela plataformização é a mesma da ciência e da política. Porque as plataformas são uma mediação holística, elas não fazem essa diferenciação, elas impactam absolutamente todos os domínios da vida, do mais privado ao mais público, e são as mediações que têm os vieses muito parecidos. Então, o movimento do virar do avesso ocorre basicamente em todos os domínios: justiça, educação, na própria religião observamos o mesmo movimento de inversão de margem/centro, de afastamento dos extremos, que é, segundo o argumento do livro, um comportamento de sistemas longe do equilíbrio, que vão se afastando do equilíbrio. Ou seja, sistemas em crise. Só que a crise é do ponto de vista do sistema anterior, do ponto de vista dos sistemas públicos emergentes da extrema-direita e esses outros, é a oportunidade de obter um reconhecimento, de se financeirizar – é muito sobre ganhar dinheiro.

Vemos também um movimento de reintermediação na política, nas ciências alternativas, na economia, nos coaches. Nas igrejas também um movimento bastante parecido onde esses novos intermediários se colocam no lugar dos intermediários antigos com um processo de produção de verdade também parecido, muito mais ligado à questão da experiência imediata, algum nível de causalidade oculta, inescrutável, que é algo que identifiquei com muita consistência, tanto nos públicos do tratamento precoce durante a pandemia quanto nos públicos políticos do bolsonarismo. Porque o centro do sistema foi retirado – a ciência e a objetividade do jornalismo profissional – e, com isso, o sistema é enfraquecido e os sistemas epistêmicos se inflam, isto é, o que a pessoa pode ver, ouvir, pesquisar na internet, as pessoas que são iguais, os vídeos que ela recebe no “zap”; é isso que tem valor de verdade hoje e é complementado por essa verdade mais oculta das teorias da conspiração e dos inimigos.

Entre esses dois níveis epistêmicos há esses “novos peritos”, novos intermediários que vão ganhando a confiança social das pessoas, mas que operam de forma fundamentalmente diferente dos peritos e dos intermediários antigos. Porque não operam de forma institucional, nem na ciência, nem na política e nem na democracia, mas operam de acordo com a mediação das plataformas, da digitalização, que é a lógica da economia da tensão, do capitalismo pós-neoliberal. Não tem rigorosamente nada a ver com a democracia, embora eles achem que tenha. De novo, eles têm uma versão invertida da democracia, quase que espontaneísta da democracia.

É o que estamos vendo agora no Rio Grande do Sul: é o “povo pelo povo”, não precisa de Estado, democracia não tem nada a ver com Estado, com direitos; democracia é o Estado sair da frente para o povo poder prosperar e os bilionários são as pessoas que são o “farol” do povo, que vão inspirar eles a prosperar, a melhor a vida deles e das suas famílias. Esse tipo de visão é muito consistente na base da extrema-direita, é espontaneísta.

As famílias, o mercado e Deus são coisas que sempre existiram e sempre vão existir, então é quase uma ilusão na crença de um nível autorregulado da vida social, portanto, não precisa dessas mediações da ciência e do Estado na cabeça deles. O que sabemos se tratar de um erro tremendo, porque tampouco essas outras instâncias são espontâneas e o que o Estado Democrático de Direito faz é dar um centro para o sistema, porque tanto a lógica de mercado, como a lógica religiosa em um sentido mais sectário, e das famílias também, é a segmentação, a bifurcação, a faccionalização, é a intensificação dos extremos até pontos de bifurcação.

Então, precisamos do Estado Democrático de Direito para que a sociedade tenha um centro organizador para evitar rupturas como aliás aconteceu – falo disso no meu livro também – no século XV para o XVI, onde uma tecnologia de mídia, que foi prensa mecânica, tensionou tão fortemente o tecido social que ele não aguentou. Houve uma ruptura gigantesca, a Europa se afundou em guerras civis, as chamadas “guerras de religião”, e só cem anos depois que a sociedade foi se reorganizar em um outro modelo de Estado, em outro modelo de relação entre religião e Estado.

IHU – Conservadores da extrema-direita descrevem-se como “antissistema”, o próprio Bolsonaro se colocou nessa posição inúmeras vezes. A rigor, eles se comportam mais como contrários às estruturas da democracia, se servindo da crise da representatividade. Como essa estratégia tem por consequência a virada do sistema ao avesso?

Letícia Cesarino – É antissistema no sentido de ser antidemocracia institucional, antissopesos e contrapesos da democracia, porque para ele, democracia, é a vontade do povo que deve ser expressa por esse líder, que, no caso, era o Bolsonaro. E se o Bolsonaro não está conseguindo é porque o sistema não deixa, então é as Forças Armadas, que é essa força metapolítica porque estaria, supostamente, acima de todos os outros três poderes. Então, toda aquela história do “eu autorizo” tem esse sentido. É o elemento antissistema, só que é uma democracia virada do avesso, porque democracia tem o componente da soberania popular, mas tem que estar equilibrado com o componente liberal dos pesos e contrapesos, defesa dos direitos das minorias.

Vira do avesso por isso, porque o elemento da soberania passa a englobar o elemento institucional, que deve ser o elemento englobante, por isso que existe essa inversão público/privado também, pois é uma noção privada de democracia, que é o presidente fazer a “minha vontade”, porque “eu sou o povo”. Enquanto no modelo democrático correto a vontade individual está submetida à norma, à instituição e à regra e o privado está submetido ao público; por isso é um caso de virada do avesso também.

IHU – Vivemos mais que em um mundo bifurcado, onde parece não haver espaço para todos e onde o que está em jogo é, claramente, a civilização contra a barbárie. Como restaurar o mundo como um espaço compartilhado de diferenças? Em suma, como desvirar o mundo ao avesso?

Letícia Cesarino – Desvirar não tem como. Tem uma questão de irreversibilidade que eu trabalho no livro, através da termodinâmica de não reequilíbrio, que uma vez que a virada antiestrutural acontece, é muito difícil desacontecer. O exemplo das seitas é o mais canônico: é uma trajetória extrema que realiza a dupla inversão, que entra realmente nessa realidade paralela, é muito difícil desprogramar; não é impossível, mas é muito difícil trazer a pessoa de volta.

O que acredito ser possível fazer, que coloco no livro também, é tornar esse processo mais lento, para que haja salvaguardas a essas trajetórias de recrutamento das pessoas numa direção extrema e conspiratória e, com isso, a probabilidade de ela acontecer diminua. O primeiro ponto é a regulação de plataforma, mas não é qualquer regulação, dessas de enxugar gelo, é uma regulação que de fato incida sobre a arquitetura algorítmica, o que é muito difícil de fazer, porque a arquitetura algorítmica é igual a modelo de negócios. Mas, não tem outro caminho, tem que continuar pressionando por uma recuperação da soberania digital por parte da sociedade, do poder público etc.

Ou seja, é necessário que as plataformas tenham vieses que venham mais ao encontro dos vieses institucionais da democracia e não a esses vieses opostos, que são de segmentação, de aceleração, de economia da tensão, que vão na direção oposta das mediações da democracia.

Tem um segundo nível, que é o nível do usuário comum, que é o seguidor, que é aquele que segue e não o que é seguido – essa diferenciação é extremamente importante – de educação mediática, entender como as plataformas funcionam, porque esses mundos invertidos existem, é um processo difícil, mas é um processo de conscientização e desalienação técnica das pessoas, dos usuários. É bastante importante.

No meio disso, entre algoritmo e usuário comuns, temos esses intermediários que são aqueles que são seguidos, que segmentam redes: influenciadores, pastores, políticos, comunicadores, líderes religiosos. Para mim, esse é o nível principal, porque é ele quem faz a mediação entre algoritmo e usuário comum, ainda mais considerando que uma regulação significativa de plataformas é muito difícil de acontecer em um país como o Brasil, como vimos no caso do Projeto de Lei 2.630/2020 [conhecido como PL das Fake News] em 2023, que nem é uma regulação no sentido que estou falando aqui. Porque nem era um projeto que incidia sobre a arquitetura algorítmica e mesmo assim teve toda aquela dificuldade.

Esse nível dos intermediários é muito importante porque é ali que a extrema-direita praticamente joga sozinha, até relativamente pouco tempo atrás, pois a extrema-direita não compete com a Globo, com a escola ou com o partido político pelo recrutamento. A camada de recrutamento é em outro lugar: está nas igrejas, em cidades do interior, em comunidades on-line do entretenimento, das músicas, dos filmes e dos jogos. É uma camada nova para as lideranças democráticas e para as lideranças políticas convencionais. Então, é preciso fomentar o empreendedorismo de agentes privados mesmo dentro dessa camada.

Temos alguns exemplos, como o Instituto Conhecimento Liberta – ICL, do Eduardo Moreira, que é um canal que faz essa competição pelo recrutamento de forma muito consciente, pois sabem onde a extrema-direita pega as pessoas: a questão do dinheiro, do empreendedorismo, do antissistema, da espiritualidade, e eles, claro, dentro de uma gramática democrática, acenam para esse caldo de senso comum também, de forma muito consciente. Mas teríamos que ter cerca de 200 comunicadores grandes fazendo isso, fora os pequenos, porque na arquitetura fractalizada da rede não estão só os grandes, os pequenos também têm muita influência para seu público pequeno e formam um grande caleidoscópio antidemocracia e antiesquerda.

Cadê nosso caleidoscópio nas mesmas camadas que eles recrutam? É muito frágil, fraco ainda. Se conseguirmos fazer uma diferença, ainda que mínima nessa camada, teremos efeitos não lineares positivos no ambiente político eleitoral como um todo. O melhor exemplo disso são as igrejas. Se ganharmos terreno no recrutamento que a extrema-direita faz através das igrejas, um passo dado lá, é reverberado em dez passos em termos de diferença no sistema político como um todo, porque existe uma simetria e uma hegemonia muito grande da extrema-direita nesse espaço. Então, qualquer ganho de terreno ali terá um impacto exponencial.

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