06 Janeiro 2023
"Se os equívocos de Regensburg tiveram, em todo caso, uma dimensão histórica, está na indicação de como é importante distinguir - como mais tarde Francisco conseguiu fazer - a questão euro-árabe da questão islâmico-cristã, traduzindo na prática o que Bento afirmou na exortação pós-sinodal lembrando que os cristãos foram os pioneiros do renascimento árabe confirmando sua pertença à cultura árabe, não a outra", escreve Riccardo Cristiano, jornalista italiano e presidente da Associação “Jornalistas Amigos do Padre Dall’Oglio”, em artigo publicado por Settimana News, 05-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Na base da Lectio Magistralis proferida por Bento XVI em Regensburg em 2006 (aqui) houve dois equívocos - um comunicativo e outro receptivo -, mas estes não impediram ao pontificado de Francisco de contribuir para a superação de ambos, realizando a verdadeira intenção de Bento: superar o confessionalismo de Estado na perspectiva de uma cidadania comum e igualitária.
O próprio Papa Bento XVI afirmou que essa era a verdadeira intenção com o sínodo que convocou sobre o Oriente Médio.
De fato, no ponto 25 da exortação apostólica pós-sinodal, escreveu: “Os católicos do Médio Oriente, na sua maioria cidadãos originários do seu país, têm o dever e o direito de participar plenamente da vida da nação, trabalhando na construção de sua pátria. Eles devem desfrutar de plena cidadania e não ser tratados como cidadãos ou crentes inferiores. Tal como no passado, quando, pioneiros do renascimento árabe, eram parte integrante da vida cultural, económica e científica das várias civilizações da região, desejam hoje, ainda e sempre, partilhar as suas experiências com os muçulmanos, propiciando sua contribuição específica".
O "método de Regensburg" – que eu definiria como um método tipicamente europeu – tornou mais difícil a implementação da exortação. Resultado diferente foi obtido com o "método de Francisco" que eu defino como "fraterno" ou de "hospital de campanha", segundo suas próprias repetidas palavras.
Dito isso, tento aqui explicar por que Regensburg gerou equívocos. Para isso, devemos partir de 650 d.C. na época em que o patriarca nestoriano Iso'yahb afirma: “Os árabes, a quem Deus concedeu o governo do mundo neste tempo, não perseguem a religião cristã, pelo contrário eles a favorecem. Honram nossos sacerdotes e os santos do Senhor e conferem benefícios às igrejas e aos mosteiros”.
Philp Jenkins explica isso em seu excelente livro La storia perduta del cristianesimo, comentando: "Não importa quantos defeitos os árabes pudessem ter, pelo menos eles não eram cristãos bizantinos." Jenkins está entre os estudiosos mais apreciados e estimados dos chamados "cristianismos perdidos" que certamente têm seu fulcro naquelas Igrejas do Oriente que não aderiram às conclusões dos Grandes Concílios Ecumênicos de Niceia de 325 d.C. e de Éfeso de 431.
Também no livro de Jenkins pode-se ler o que escreveu outro bispo oriental, Miguel o Sírio: “O Deus da vingança, vendo a maldade dos romanos que, onde quer que eles governassem, despojavam barbaramente as nossas igrejas e mosteiros e nos condenavam sem piedade, fez surgir da região do sul os filhos de Ismael, para nos livrar através deles das mãos dos romanos. Não foi apenas uma pequena vantagem para nós sermos libertados da crueldade dos romanos”.
São Moisés, o Abissínio, venerado na Síria, é um desses mártires dos bizantinos. Quando essas sumas testemunhas apresentam os romanos como seus perseguidores, entendem se referir aos bizantinos, por quem eram considerados hereges a serem perseguidos.
Mas os cristãos daquelas Igrejas não sofreram apenas as perseguições bizantinas: o próprio Jenkins relata as dolorosas perseguições que sofreram também dos muçulmanos.
A relação decisiva é sempre aquela entre a fé interpretada pelas religiões e o poder – nó não resolvido em todas as partes do mundo – estreitado no Oriente até os nossos dias, até a asfixia. O que, em nossa linguagem chamamos de "cesaropapismo", diz respeito tanto ao Islã quanto à Ortodoxia, sobretudo à russa, como vemos claramente, e, basicamente, a uma grande parte do cristianismo árabe atual.
A questão permanece a mesma: como diferentes comunidades religiosas podem viver na mesma nação ou estado com os mesmos direitos, sem serem forçadas à conversão forçada, ou seja, ao desaparecimento.
Bem, na Lectio Magistralis sobre a relação entre fé e razão – dirigida, a meu ver, principalmente à Europa e apenas secundariamente ao Islã – do total de 25.000 caracteres, apenas 3.800 são dedicados à questão da “razão” no Islã.
O agora famoso incidente originou-se da citação feita pelo papa do imperador bizantino Manuel II Paleólogo, que expressava raiva pelos muçulmanos aos quais estava prestes a sucumbir. Não ter distinguido claramente o citado do citante desencadeou a irritação islâmica.
Por que então não lembrar – muitos disseram – dos conquistadores católicos ou dos cossacos ortodoxos, com o pior que fizeram como manifestação histórica do cristianismo? Porém, francamente, reação imerecida pelo papa que, depois daquela citação, denunciou claramente as conversões forçadas, obtidas em todas as partes.
O argumento fundamental de Bento XVI foi mais ou menos este: não agir segundo razão é contrário à natureza de Deus. Para dizer isso, o papa se valeu de um texto de Theodore Khoury, que comentava: “para o imperador, bizantino que cresceu na filosofia grega, essa afirmação era evidente. Para a doutrina muçulmana, entretanto, Deus é absolutamente transcendente. Sua vontade não está ligada a nenhuma das nossas categorias, nem mesmo a da razoabilidade”.
Em tal contexto, Khoury por sua vez citava uma obra do conhecido islâmico francês Roger Arnaldez, que ressaltava que ibn Hazm (994-1064) chegou a declarar que Deus não está ligado nem mesmo à sua própria palavra e nada o obriga para nos revelar a verdade. Se fosse da vontade de Deus, o homem também deveria até mesmo praticar a idolatria.
Um aprofundamento do Islã requer muito mais espaço. Aqui simplesmente recordo que nas suras do Alcorão da "Meca" está claramente afirmado que não pode haver constrição na fé, enquanto nas de "Medina" parece ocorrer o contrário. Sobre esse ponto, teria sido útil um esclarecimento que não ocorreu em Regensburg, ou seja, que tanta teologia islâmica fundamentalista tenha considerado revogado o anterior pelo sucessivo.
Mas a irracionalidade, por assim dizer, não é de forma alguma um dado islâmico indiscutível, tanto que muitos têm afirmado exatamente o contrário: apenas a primeira afirmação do Alcorão tem valor universal, enquanto a segunda é contingente.
Mas aqui é importante insistir na originalidade do teólogo citado pelo Bento, ibn Hazm - poeta dos apaixonados - que, por fidelidade aos califas omíadas da Andaluzia, acabou na prisão e correu o risco de ser condenado à morte. Seu texto mais famoso, O Colar da Pomba, é dedicado ao amor humano e aos amantes.
No prefácio da tradução italiana, o professor Paolo Branca explicou o mistério desse imã que não pertencia a nenhuma das quatro grandes escolas jurisprudenciais e cujo pensamento jurídico, ao contrário de sua poesia, não teve grande influência.
Branca escreveu: “É um paradoxo: ele, que soube penetrar além do céu das aparências de forma tão única, justamente ele que abraçou na religião a doutrina zahirita, ou seja, o fetichismo da letra, da evidência escritural (de Zaher que em árabe significa dizer o que aparece, o exterior). Uma concepção extrema condenada no Islã por todos os sábios doutores devidamente barbudos. Uma doutrina acusada de tasbih, ou seja, de antropomorfismo, de atribuição de qualidades humanas a Deus. Mas um profundo estudioso notou que o zahirismo foi para ele, como ele o entendia, a expressão de sua absoluta sinceridade e o meio de submeter as afirmações dos eruditos e dos sábios a um teste implacável”.
O trecho em itálico vem do próprio Roger Arnaldez citado por Bento XVI, o que confirma tanto a autenticidade da frase citada pelo papa quanto o juízo de Paolo Branca, que acrescenta: “Porque na realidade – mesmo limitando-se a uma análise muito cuidadosa o Colar da Pomba, uma obra que em todo caso foi escrita antes de sua adesão à doutrina zahirita - em ibn Hazm é impossível encontrar uma única frase ou palavra minimamente suspeita dessa obtusidade que se imagina inseparável de todas as formas de fanatismo da letra”.
A conversão forçada é um problema fundamental para qualquer pessoa, e a observação decisiva, para mim, é a do sírio não crente Yassin al-Haj Saleh: “A pena de morte por ter mudado de religião destrói a própria ideia de religião entendida como casa espiritual. Por outro lado, qualquer casa transformar-se-ia numa prisão se fosse proibido se afastar dela”.
Os muçulmanos tiveram, portanto, motivos para se ressentir de um aspecto que hoje não teria mais fundamento: bastava que se fosse demonstrado a eles, colocando, por exemplo, fora dos sistemas jurídicos de muitos países, a obrigação da conversão de um homem que queira se casar com uma mulher muçulmana, assim como excluir qualquer outra forma de conversão forçada.
Naquelas horas dramáticas do discurso de Regensburg, os piores transcenderam. O próprio Philip Jenkins recorda: “Quando Bento XVI proferiu sua controversa palestra, os leões do Islã se vingaram decapitando um sacerdote de Mosul, Paulos Iskander. Padre Paulos pertencia à Igreja Siro-Ortodoxa, antigamente conhecida como Jacobita, uma das antigas Igrejas Orientais que mencionei inicialmente, prensada entre bizantinos e islâmicos.
A relação entre fé e razão no Islão situa-se, mais apropriadamente, no caminho do diálogo entre Maomé e o seu enviado no Iêmen: portanto, num caminho claramente interpretativo. De fato, dirigindo-se a ele – Muadh – Maomé disse: “Pelo que julgarás? Ele respondeu: "Eu julgarei de acordo com o Livro de Deus. E se você não encontrar respostas no Livro de Deus?" Muadh respondeu: de acordo com tua Suna (conduta). E o Profeta respondeu: E se você também não encontrar em minha suna? Muadh respondeu: Usarei meu juízo pessoal e não pouparei esforços para encontrar a solução correta. O Mensageiro de Alá agradeceu."
É um fio tênue, mas muito longo, que parte da conversa entre Maomé e Muadh e chega até Mohammad Abed al-Jabri, um dos mais conhecidos docentes marroquinos de filosofia e pensamento islâmicos, que ao termo "laicidade", de seu cátedra, preferia a expressão “democracia e racionalidade”, muito semelhante à razão: aquela que está no centro da Lectio de Regensburg
Por isso, precisamente de Regensburg, nasceu a iniciativa dos "cem teólogos muçulmanos" que - compreendendo corretamente o espírito da lição de Ratzinger - se comprometeram a dar vida ao novo fórum islâmico-cristão, "One World": certamente um passo importante do lado islâmico.
As reações prevalecentes revelaram as dificuldades relacionais entre o homem europeu e o homem árabe: o primeiro se apresenta como docente, o segundo se recusa a ser aluno por orgulho. É por isso que o "método de Regensburg" foi percebido como tipicamente "europeu", enquanto o método de Francisco foi percebido pelos árabes muçulmanos como mais "fraternal", atencioso, amigável.
O resultado mais importante de anos de pontificado franciscano está justamente no "sim" da primeira autoridade islâmica - o imã de al-Azhar - à proposta de cidadania comum: precisamente aquela desejada por Bento.
Na Declaração conjunta rumo à fraternidade universal assinada por Francisco e al-Tayyeb – o próprio reitor de al-Azhar com quem as relações haviam se interrompido em 2011 – está escrito: “O conceito de cidadania baseia-se na igualdade de direitos e deveres sob cujo sombra todos desfrutam de justiça. Por isso, é necessário empenhar-se para estabelecer o conceito de plena cidadania em nossas sociedades e renunciar ao uso discriminatório do termo minorias, que traz consigo as sementes do sentimento de isolamento e de inferioridade; prepara o terreno para hostilidades e discórdias e retira conquistas e direitos religiosos e civis de alguns cidadãos discriminando-os”.
Se os equívocos de Regensburg tiveram, em todo caso, uma dimensão histórica, está na indicação de como é importante distinguir - como mais tarde Francisco conseguiu fazer - a questão euro-árabe da questão islâmico-cristã, traduzindo na prática o que Bento afirmou na exortação pós-sinodal lembrando que os cristãos foram os pioneiros do renascimento árabe confirmando sua pertença à cultura árabe, não a outra.
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Os equívocos de Regensburg - Instituto Humanitas Unisinos - IHU