O único verdadeiro teólogo guardião dos valores eclesiais até a renúncia. Artigo de Vito Mancuso

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04 Janeiro 2023

"As três peculiaridades do pensamento teológico de Ratzinger (eclesialidade, racionalidade, espiritualidade) inevitavelmente caracterizaram também o magistério papal que ele exerceu sob o nome de Bento XVI, constituindo sua grandeza e seus limites. Grandeza, graças à dimensão espiritual universalmente reconhecida, porque foi sem dúvida um homem de Deus que quis ininterruptamente conduzir a Deus. Limites, pela eclesialidade e racionalidade que o induziam a querer trazer para dentro da tradição as inovações desenvolvidas sobretudo no âmbito da moral sexual, da bioética e da luta contra as injustiças sociais pela teologia da libertação". 

A opinião é do teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Universidade San Raffaele de Milão e da Universidade de Pádua, em artigo publicado por La Stampa, 02-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo. 

“Luz intelectual de amor ardente”: são as palavras de Dante (Paraíso XXX, 40) que instintivamente vêm à minha mente pensando na pessoa e no pensamento de Joseph Ratzinger. Ele foi, em primeiro lugar e acima de tudo, um teólogo. Muito antes de ser bispo, cardeal, papa, papa emérito, ele foi, e nunca deixou de ser, um teólogo. O hábito mental teológico nunca o abandonou, e acho que foi justamente por isso que ele renunciou ao papado, porque ser teólogo é bem diferente de ser papa, e conciliar as duas condições é muito difícil, creio impossível, prova disso é que, entre todos os papas da história, não há um que tenha sido um verdadeiro teólogo. Exceto, justamente, ele.

Que tipo de teologia era a dele? Pode ser resumida com três adjetivos: eclesial, racional, espiritual.

Por "eclesial" entendo o fato de que a orientação teológica à qual Ratzinger pertencia (compartilhada entre os teólogos católicos contemporâneos Guardini, de Lubac, Congar, von Balthasar, Forte; e não compartilhada por Teilhard de Chardin, Rahner, Küng, Boff, Molari) faz da reflexão sobre a fé um ato eminentemente comunitário. Mesmo quando o teólogo está sozinho em seu escritório, ele não está lidando com pensamentos pessoais, mas com algo que lhe foi entregue, com um "depositum" que coube a ele, acima de tudo, cuidar e entregar incontaminado a outros, de acordo com a exortação de Paulo a Timóteo: "Guarda o depósito, tendo horror aos clamores vãos e profanos e às oposições da falsamente chamada ciência" (Timóteo 6,20).

Os teólogos dessa escola têm como caráter distintivo supremo o amor à Igreja, à qual vivem com intensidade a sua pertença. Santo Agostinho se expressava assim: “Eu não acreditaria no Evangelho se a autoridade da Igreja Católica não me levasse a acreditar”. O ponto de força aqui é que se experimenta um sentimento vital de pertencimento a uma tradição maior da qual somos gerados e carregados, uma cadeia ininterrupta de santidade seguindo a qual ao retornar para trás através dos séculos se chega diretamente ao Senhor.

O limite, a meu ver, é que a partir dessa sua orientação teológica nunca poderá surgir uma tentativa como a de São Tomás de Aquino de colocar um filósofo pagão (Aristóteles) como o fundamento da visão do mundo, ou como a de Teilhard de Chardin de fazer o mesmo com o dado científico da evolução. A dificuldade que Ratzinger confessou ter experimentado quando jovem no estudo de Tomás ("Tive dificuldade em aceder ao pensamento de Tomás de Aquino") não era certamente um problema de inteligência, mas sim a sensação de se encontrar em um mundo que lhe era estranho: “Sua lógica cristalina parecia-me muito fechada em si mesma, demasiado impessoal e pré-pronta”.

O segundo adjetivo para a teologia de Ratzinger é "racional". Cito amplamente as suas obras mais conhecidas: "Crer cristãmente significa compreender a existência como resposta à palavra, ao Logos que sustenta e conserva todas as coisas". E ainda: "A fé cristã em Deus comporta sobretudo uma decisão pela preeminência do Logos sobre a pura matéria". E finalmente: “A fé cristã em Deus é em primeiro lugar uma opção pelo primado do Logos”.

Essas afirmações levantam a questão decisiva de decidir de onde vem nossa razão: ela nasceu por acaso na escuridão do universo do que é sem razão? Ou vem de um princípio racional que é o fundamento de todas as coisas? Ratzinger não tem dúvidas: "A fé cristã é, hoje como ontem, a opção pela prioridade da razão e do racional". Assim chega a escrever: “No alfabeto da fé, o lugar de honra cabe à afirmação: ‘No princípio era o Logos’. A fé nos atesta que o fundamento de todas as coisas é a eterna Razão”. Disso deriva uma orientação tão lúcida que pode resultar até deslumbrante para alguns: "A fé não quer oferecer ao homem alguma forma de psicoterapia: a sua 'psicoterapia' é a verdade".

O terceiro adjetivo que conota a teologia de Ratzinger é "espiritual". Para ele, a expressão mais bela e concisa da fé dos primeiros cristãos vem da Primeira Epístola de João: "Nós acreditamos no amor" (Jo 4,16). E comenta: “Cristo tornou-se a descoberta do amor criador, a razão do universo revelou-se como amor”. Destas palavras transparece a harmonia entre a dimensão racional e a dimensão espiritual, da qual compreende-se que quando Ratzinger fala de "razão" não se refere ao instrumento analítico e calculador de nossa mente (precioso, claro, mas insuficiente para governar toda a existência, porque, como Tagore escreveu, "uma mente puramente lógica é como uma faca só com lâmina"), mas ele entende a lógica da harmonia e da relacionalidade que governa todas as coisas. Os filósofos gregos a denominavam de Logos e o cristianismo consiste em anunciar esse Logos feito homem. Para participar do Logos, porém, é preciso amá-lo com todas as forças. É por isso que Ratzinger afirma que "a conexão entre teologia e santidade não é um discurso sentimental ou pietista, mas tem seu fundamento na lógica das coisas". Ou seja: primeiro vem a santidade, depois a teologia, porque não se concebe nenhum verdadeiro teólogo sem uma intensa vida espiritual, como é impensável, por exemplo, Agostinho sem a paixão do seu caminho rumo à radicalidade cristã, aquele Agostinho que Ratzinger sentia tão próximo dele: “Quando leio os escritos de Santo Agostinho não tenho a impressão de que seja um homem que morreu há mais ou menos 1600 anos, mas sinto-o como um homem de hoje: um amigo, um contemporâneo que a fala a mim com a sua fé fresca e atual”.

As três peculiaridades do pensamento teológico de Ratzinger (eclesialidade, racionalidade, espiritualidade) inevitavelmente caracterizaram também o magistério papal que ele exerceu sob o nome de Bento XVI, constituindo sua grandeza e seus limites. Grandeza, graças à dimensão espiritual universalmente reconhecida, porque foi sem dúvida um homem de Deus que quis ininterruptamente conduzir a Deus. Limites, pela eclesialidade e racionalidade que o induziam a querer trazer para dentro da tradição as inovações desenvolvidas sobretudo no âmbito da moral sexual, da bioética e da luta contra as injustiças sociais pela teologia da libertação, correndo assim mais de uma vez o risco de fechar-se ao que o Evangelho chama de "vento do espírito", que, está escrito, "sopra onde quer" (João 3,8).

Um dia antes de ser eleito Papa, em 18 de abril de 2005, durante a homilia proferida na Basílica de São Pedro como decano do Colégio cardinalício, Ratzinger disse: “Todos os homens querem deixar uma marca duradoura. Mas o que resta? Não o dinheiro. Nem mesmo os edifícios permanecem; nem os livros. Depois de um certo tempo, mais ou menos longo, todas essas coisas desaparecem. A única coisa que permanece para sempre é a alma humana, o homem criado por Deus para a eternidade.

O fruto que resta é, portanto, o que semeamos nas almas humanas – o amor, o conhecimento; o gesto capaz de tocar o coração; a palavra que abre a alma à alegria do Senhor”. São belíssimas palavras nas quais ainda agora podemos entrever o palpitar do seu coração. E eu acredito que Joseph Ratzinger, com seu pensamento e sua vida, nos tenha indicado como um verdadeiro mestre o primado da alma e da espiritualidade. É por isso que o recordo como uma imagem fiel da “luz intelectual de amor ardente”.

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