17 Agosto 2022
Diálogo inter-religioso: a convivência entre as diversas culturas é menos idílica do que se crê. O fundamentalismo islâmico é um dos grandes obstáculos.
O comentário é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, publicado em Il Sole 24 Ore, 24-07-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Quando se pensa na Andaluzia, assoma-se à memória de todos o esplendor absoluto de cidades como Sevilha, Córdoba, Granada, que fascinam pelos seus monumentos, mas também pela sua extraordinária história.
No entanto, poucos sabem que o topônimo dessa região da Espanha meridional deriva de uma verdadeira raspagem daquela terra realizada pelos invasores vândalos: foi deles que nasceu o termo Vandalicia. Em 711, quando passou por aquela região a nova onda árabe, o vocábulo se transformou na atual “Andaluzia”, que os conquistadores muçulmanos atribuíram, porém, a toda a Espanha, até a “reconquista” cristã de 1492.
Agora, a conhecida experiência da convivência e de interculturalidade – mais complexa do que quer uma certa vulgata idílica – é assumida como emblema para uma reflexão sobre o nunca aplacado confronto-choque-encontro das várias fés entre si e com a própria modernidade. Quem a desenvolve é uma figura bastante original que já tivemos a oportunidade de apresentar nestas páginas, devido a um comentário livre sobre a nota que São Paulo dirigiu ao seu amigo Filemon, do qual havia fugido um escravo de nome Onésimo, que se refugiou justamente com o Apóstolo. O tema subjacente já era evidente no título daquele pequeno ensaio, “Sulla soglia della coscienza. La libertà del cristiano secondo Paolo” [No limiar da consciência. A liberdade do cristão segundo Paulo] (Emi, 2020).
Estamos falando do dominicano parisiense André Candiard, um homem de 40 anos que agora vive no Cairo, entrelaçando pesquisa e diálogo inter-religioso, mas tendo sobre os ombros uma carreira diferente de estudos (na Sciences Po) e um compromisso político. O seu novo escrito, que coloca em contraponto dialético a tolerância e o diálogo, vale-se da premissa de um renomado cientista político que muitos aprenderam a conhecer e a apreciar através da revista Reset, Giancarlo Bosetti.
Trata-se de um prefácio capaz de centrar e ilustrar com rigor e finesse o coração do ensaio de Candiard, que parte precisamente de um cruzamento entre o passado histórico acima referido e o presente.
Por um lado, de fato, existe o modelo “Andaluzia”, encarnado e testemunhado também por meio de personalidades de grande destaque como o poeta Ibn Hazm (século X) e Averróis (século XII) para a parte árabe e com um surpreendente Raimundo Llull (século XIII), autor cristão de um “debate religioso de grande classe”, como observa Candiard.
Por outro lado, há a incessante interrogação atual diante de um Islã degenerado, que é imerso por fanáticos na lama do fundamentalismo, gerando o desalento e a indignação do mundo ocidental secularizado contemporâneo. É para este último horizonte que o texto aponta o seu objetivo, mantendo sempre bem estendido o pano de fundo histórico a que aludíamos, usado justamente como emblema.
As coordenadas adotadas pela modernidade sociocultural, além dos dois extremos de um (raro) irenismo a todo custo e de um fundamentalismo bélico paralelo, optaram por uma mediana fluida e incolor que Candiard desenvolve na sua reflexão com acuidade, e que Bosetti resume de forma incisiva: “Fazer conviver as diferenças religiosas neutralizando-as do ponto de vista do Estado, privatizando-as, impondo-lhes, quando foi possível, que acendessem conflitos na esfera pública, quase afastando a busca racional da fé e, em certo sentido, enfraquecendo as pretensões de verdade de cada religião”.
Nessa atmosfera, na sociedade e na cultura de hoje, especialmente ocidentais, abre caminho uma espécie de uniformidade incolor e insípida que, sob o guarda-chuva de uma conclamada secularização (que não é a necessária “secularidade”, antídoto para todo cesaropapismo), se alimenta apenas de uma visão “fraca”. Ela se caracteriza por uma homogeneidade elaborada sobre um mínimo denominador comum e baseada em uma tolerância que exige a dissolução nebulosa das identidades religiosas legítimas com a sua bagagem cultural, espiritual e teológica.
Curiosamente Candiard, entre os muitos caminhos que sugere – durante a sua reflexão sobre um debate mais autêntico (e não vagamente ecumênico e “laico”) entre as fés –, há um detalhe menor destinado justamente a ilustrar aquele clima asséptico contemporâneo indicado acima. Ele escreve: “Na França, assim como na Itália, o fato é que os jornais não publicam mais, e não só hoje, intervenções de caráter teológico. Não é possível culpá-los: os leitores não entenderiam, provavelmente não mais do que os seus jornalistas, do que se trata”.
Na verdade, a página que o leitor tem agora entre as mãos é a negação dessa revelação. Porém, trata-se de um fato quase único, uma verdadeira mosca branca, em um contexto em que se confundem como religiosas e “teológicas” as notícias dos vaticanistas, embora importantes, sobre as escolhas eclesiais, sobre a Cúria Romana ou sobre os escândalos da pedofilia.
Por fim, deixemos a palavra a Candiard, que espreme o sumo genuíno e livre de resíduos da experiência da Andaluzia, superando aquele “culturalmente correto” que anula todo sinal e mensagem religiosa para uma neutralidade da sociedade: em vez disso, não devemos “renunciar nunca, entre as satisfações do conforto e da técnica, às nossas aspirações ao infinito e à verdade; e não devemos esquecer nunca que, nesse caminho, temos um único instrumento, imperfeito, mas indispensável: a nossa sede de compreensão”.
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Quando o cristão não fala mais árabe. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU