24 Janeiro 2020
"A síntese da filosofia de Severino é expressa, em primeira instância, na conhecida forma de negação da contradição e, em seguida, de modo especular, em segunda instância, na forma da afirmação da identidade em que a contradição é resolvida", escreve Piero Coda, reitor do Instituto Universitário Sophia, de Loppiano, Itália, e membro da Comissão Teológica Internacional, em artigo publicado por L'Osservatore Romano, 23 e 24-01-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
A filosofia de Emanuele Severino e a teologia. Agora que sua aventura terrena terminou, gostaria de escrever algumas palavras sobre esse relacionamento certamente não marginal nem episódico no itinerário intelectual e na proposta teórica de um dos pensadores mais rigorosa e ousadamente especulativos de nosso tempo. E não apenas no panorama italiano. Faço-o com sincera emoção, porque, com isso, tenho oportunidade de prestar-lhe uma homenagem não formal prestando testemunho de um diálogo cordial e intenso experimentado ao longo dessas décadas.
Da relação entre filosofia e teologia é possível de fato falar, no pensamento de Severino, não apenas de maneira extrínseca, mas pelo próprio fato de que ele aspira a ser configurado como uma proposição, ou melhor, revelação da "estrutura originária". Por esse motivo, a teologia não pode deixar de se sentir diretamente questionada. Do meu ponto de vista, concordo com aqueles que, entre os teólogos italianos, afirmaram - cito as ponderadas palavras de Pierangelo Sequeri - que a filosofia de Severino “deve ser considerada um ponto de não retorno, também para toda revisão da ontologia clássica no âmbito do pensamento teológico". Aqui reside o ponto decisivo de um confronto e, podemos dizer, de uma provocação mútua entre a filosofia de Severino e a teologia. A crítica que ele fez ao longo dos anos, com rigor meticuloso e decisiva parrésia, à forma assumida pela teologia católica, especialmente em sua versão neo-escolástica - com o que essa opção comportou em termos de posicionamento do intellectus fidei dentro das coordenadas estabelecidas por aquele que Severinus gostava de definir o "tabuleiro de xadrez" da ontologia grega - mostra-se convergente, de certa forma, com a escavação atual da renovação ontológica que diz respeito a uma consistente e promissora vertente da teologia, não apenas católica. Mesmo permanecendo o ponto de partida e o ponto de chegada distintos e distantes.
O próprio Severino, no apaixonante debate que tive a oportunidade de desenvolver com ele, reconheceu que "se o tabuleiro de xadrez proposto pela teologia é um tipo de reflexão sobre o ser que não é aquele grego, então podemos estabelecer um diálogo".
Mas em que termos e segundo qual perspectiva ontológica? Eu gosto de buscar uma sugestão, e talvez mais do que uma sugestão, no último capítulo daquele agradabilíssimo livro de entrevistas chamado La Follia dell'Angelo (A Loucura do Anjo, em tradução livre, de 2006). Não é por acaso que suas últimas páginas expressam, por um lado, uma síntese eficaz da visão de Severino e, pelo outro, uma "possível consonância - assim fala o Autor - da palavra pronunciada por Jesus".
A síntese da filosofia de Severino é expressa, em primeira instância, na conhecida forma de negação da contradição e, em seguida, de modo especular, em segunda instância, na forma da afirmação da identidade em que a contradição é resolvida. O pensamento da verdade é assim reproposto por Severino em sua pureza e nudez, ultrapassando a deriva – aliás, a "loucura", para usar as suas palavras - do pensamento grego e ocidental. E isso, no final das contas, na forma da afirmação místico-especulativa da unidade/identidade/eternidade do ser que resolve em si, ontologicamente, a multiplicidade / diferença / temporalidade do aparecer.
Assim, Severino pretende trazer o pensamento filosófico de volta ao seu destino originário e universal. E o faz com extrema consciência das etapas e das figuras mais conspícuas que moldaram o caminho do pensamento ocidental: de Parmênides a Aristóteles, de Agostinho a Tomás, de Hegel a Heidegger. Também não falta, para aqueles que têm ouvidos atentos, consonâncias com a grande, inclusive variegada e metafisicamente significativa, tradição do pensamento oriental.
Seria possível se embrenhar em um confronto com a filosofia de Severino no próprio terreno do tabuleiro de xadrez ontológico assim proposto por ele. Intriga-me mais, como anunciado acima, seguir o caminho por ele mesmo indicado da "possível consonância da palavra pronunciada por Jesus".
Trata-se de João 8,54-58: “’Se glorifico a mim mesmo, a minha glória nada significa. Meu Pai, que vocês dizem ser o Deus de vocês, é quem me glorifica. Vocês não o conhecem, mas eu o conheço. Se eu dissesse que não o conheço, seria mentiroso como vocês, mas eu de fato o conheço e guardo a sua palavra. Abraão, pai de vocês, regozijou-se porque veria o meu dia; ele o viu e alegrou-se’. Disseram-lhe os judeus: ‘Você ainda não tem cinquenta anos, e viu Abraão?’ Respondeu Jesus: ‘Eu lhes afirmo que antes de Abraão nascer, Eu Sou. Então eles apanharam pedras para apedrejá-lo, mas Jesus escondeu-se e saiu do templo".
Severino chama a atenção para Cristo que, glorificando o Pai e não a si mesmo, glorifica o destino infinito que nós somos: glorificar o Pai, de fato, "é deixá-lo aparecer em seu subtrair-se, enquanto infinita riqueza do ser, ao que nós conseguimos ver de ele". Essa consonância é extremamente significativa, para o teólogo. Porque o remete não apenas ao coração da verdade cristológica, mas à especificidade da ontologia que ela desvenda. Isto é, ao pensar sobre a relação entre o Pai e o Filho, o Ser e sua Palavra, fundidos em um sendo eles mesmos, cada um, o Uno que é o Deus Trino na koinonía, aliás, na omoousía do Espírito Santo. O Cristo joanino, de fato, não apenas afirma - como na passagem citada - "antes de Abraão nascer, eu sou", mas também em outro lugar: "Eu e o Pai somos um" (João 10,30), e chega, inclusive, a rezar ao Pai "para que todos sejam um, Pai, como tu estás em mim e eu em ti. Que eles também estejam em nós" (João 17,21).
Justamente então - se o entendermos em uma perspectiva cristológica - Severino pode afirmar: "Em cada um de nós, a essência do homem pode dizer o que Jesus nesta passagem diz sobre si mesmo e o Pai". Este, na realidade, é o destino da graça, em Cristo, do ser humano. Mas o que aqui interessa é enfatizar que Severino captura no ápice da revelação cristológica o lugar da manifestação da verdade do Ser. Provocando uma teologia não negligente para continuar e intensificar o empenho especulativo de pensar a partir daí, daquele centro e naquele espaço de verdade já dado, a ontologia do ser-Uno e do ser-Outro na homoousía trinitária do Espírito.
A qual, se corretamente pensado, diz respeito não apenas à unidade-distinção do Pai, do Filho e do Espírito Santo, mas também a uma compreensão verdadeiramente especulativa do que deve ser entendido com o conceito de criação.
No diálogo a que me referi anteriormente, Severino me instigava, com relação ao último tema, enfatizando que a teologia não pode de forma simplista afirmar que "o ‘essente’ é eterno, sim, mas apenas em Deus: este ‘em Deus’ parece incompreensível, na medida em que o ‘essente’ é eterno justamente enquanto ‘essente’". Não por acaso, eu responderia, a grande teologia clássica, de Agostinho aos doutores escolásticos, ciente das implicações metafísicas da revelação, afirmava essa eternidade dos ‘essentes’ na unidade/eternidade originária do Ser divino, graças à doutrina das "ideias divinas". Com isso, dizia Agostinho, permanece ou cai a compreensão da verdade da revelação.
Na modernidade, mesmo teológica, tal doutrina acabou no esquecimento: também porque havia muitas contradições nas quais se corria o risco de tropeçar com sua simples reproposição sem o adicional esforço da iluminação ontológica. Antes de tudo, a contradição de pensar os ‘essentes’ criados como uma duplicação contingente dos ‘essentes’ eternos e necessários. Estes últimos, por sua vez, era contraditório pensá-los distintos e múltiplos em relação ao Ser uno e eterno. Apenas Antonio Rosmini e Sergej Bulgakov, com o vigor especulativo que os distingue, e ambos no espaço da ontologia trinitária revelada pela vinda de Cristo, tentaram, em tempos próximos a nós, reconferir a essa venerável doutrina a centralidade metafísica que lhe cabe, libertando-a de suas intrínsecas contradições.
Estou convencido de que a filosofia de Severino imponha à teologia, inevitavelmente, essa retomada: necessária para desenhar um novo tabuleiro de xadrez ontológico, nascido - diria Rosmini - "das próprias vísceras da revelação". E por isso, com convicção, agradeço-lhe mais uma vez, no respeito cordial de disciplinas e posições diferentes, que em um diálogo medido pela e sobre a verdade só podem no final se estimular e se enriquecer.
Termino com uma passagem sugestiva do livro-entrevista, cujas afirmações ofereceram o fio condutor para essa breve reflexão e que agora talvez adquira uma luz mais intensa e distinta. A Follia dell’Angelo - escreveu Severino - é, em última análise, aquela que “impede ao homem e às coisas de seu mundo de tomar posse daquela eternidade que, em vez disso, sempre e por necessidade pertence ao homem e a cada coisa: subtraída dos ‘essentes’, e reservada a um Deus, a eternidade é um tesouro inexistente. O Anjo está guardando um sepulcro”.
Eu me pergunto se a essa loucura do anjo evocada pelo filósofo, o teólogo não deva responder com a loucura do Crucificado (como o apóstolo Paulo a chama na primeira carta aos Coríntios): aquela de quem - ainda é Paulo, desta vez na carta para os Filipenses, ao falar - "não teve por usurpação ser igual a Deus, mas esvaziou a si mesmo" (Filipenses 2,7), para encher tudo o que é com o tesouro da eternidade. O sepulcro está vazio agora, porque Cristo ressuscitou: para ser no fim "tudo em todos". Em Deus. Nisso e em mais nada a teologia tem que pensar.
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O pensamento de Emanuele Severino, que morreu em 17 de janeiro de 2020, entre filosofia e teologia. Um novo tabuleiro de xadrez ontológico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU