20 Junho 2024
"Um conhecido biólogo e psicanalista, M. Benasayag, querendo me fazer entender a plasticidade do cérebro, mas também a sua forma de se estruturar, usou o exemplo do fato de que os homens não conseguem realmente ver e compreender certas instâncias das mulheres. Não que seus cérebros nasçam 'naturalmente' diferentes, mas pela educação patriarcal que receberam, na qual foram criados e respiraram desde pequenos, 'endureceram' assim as suas redes neurais ao longo do tempo", escreve a teóloga italiana Selene Zorzi, professora do Instituto Teológico Marchigiano e ex-professora do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, da Pontifícia Universidade Lateranense e do Instituto Superior de Ciências Religiosas de Ancona, do qual foi vice-diretora. É membro da Coordenação das Teólogas Italianas (CTI).
O artigo foi publicado por Rocca, n. 5, 01-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O Papa reiterou o seu não à ordenação das mulheres no primeiro grau do ministério. A decisão é desconcertante, pois, como foi escrito sobretudo por teólogas em inúmeros textos, artigos, páginas impressas e virtuais e ditos e repetidos fora e dentro das instituições teológicas há várias décadas, não existem motivações bíblicas, históricas, teológicas, de tradição ou sistemáticas para tal exclusão.
Andrea Grillo, que iniciou com muita paixão um debate no Settimana News sobre essa questão, chamou as teólogas a intervir. Se o entusiasmo da nossa parte tem dificuldade para se acender certamente não é por medo ou falta de argumentos. Há mais a sensação de que tudo o que havia a ser dito já foi dito, escrito e reiterado repetidamente por todas nós no tempo oportuno e não oportuno. De minha parte, posso acrescentar que surge quase uma certa intolerância quando se é convidado a participar num debate que mesmo retomando os estudos e as argumentações denunciadas pelas teólogas, parece agora ser levado a sério apenas porque foi iniciado por teólogos.
De fato, sabemos que temos sido uma minoria tenaz, talvez até um pequeno nicho, e que a nossa reflexão foi ignorada pela reflexão masculina mais empolada, às vezes reduzida a questões sociológicas, certamente quase nunca lida, apesar da consistência e da capilaridade das publicações. Talvez se deva também admitir que no passado existiu um certo receio de falar sobre essas questões de parte dos teólogos de renome, por medo de perder o lugar ou de não fazer carreira.
Mas estou cada vez mais convencida de que o motivo também deve estar noutro lugar.
Se, de fato, o não à ordenação das mulheres parece desconcertante porque não pode basear-se em nenhuma argumentação racional e motivo teológico, mesmo assim um motivo deve ter e provavelmente deve ser buscado em alguma paixão ou medo, ou seja, em alguma reação instintiva e não racional.
As reações que chamamos de instintivas e que muitas vezes são confundidas com “naturais” têm a ver também com a biologia e com o nosso cérebro. As pesquisas científicas afirmam que a cultura molda o nosso cérebro e as redes neurais de uma maneira tão forte que se torna um arranjo quase permanente de nós mesmos, torna-se tão parte de nós que nos parece "natural". Isso acontece especialmente se as convicções e a educação que recebemos derivam de situações seculares e se a elas fomos "treinados" desde a infância.
Um conhecido biólogo e psicanalista, M. Benasayag, querendo me fazer entender a plasticidade do cérebro, mas também a sua forma de se estruturar, usou o exemplo do fato de que os homens não conseguem realmente ver e compreender certas instâncias das mulheres. Não que seus cérebros nasçam “naturalmente” diferentes, mas pela educação patriarcal que receberam, na qual foram criados e respiraram desde pequenos, "endureceram" assim as suas redes neurais ao longo do tempo. De fato, o cérebro é plástico e pode modificar-se mais facilmente na juventude do que na idade adulta, mais facilmente nas camadas mais recentes do que nas camadas ancestrais. Isso explicaria a dificuldade do cérebro de um idoso católico do sexo masculino de abrir mão da reserva masculina à ordenação e a velocidade de suas sinapses para associar homoafetividade a "anormalidade"... para a felicidade de Vannacci.
Portanto, parece-me haver algo em comum entre o “não” reiterado pelo Papa à ordenação diaconal das mulheres e a “viadagem” que saiu do desajeitado italiano do nosso Papa. Ambos, de fato, têm origem em um antigo sistema cultural de valores em que o homem heterossexual era considerado a versão perfeita da humanidade, a única a que caberia o poder. Tudo o que se afasta desse modelo originário, seja um outro masculino (de qualquer forma essa alteridade se manifeste) ou outro do homem (neste caso a mulher), é substancialmente desvalorizado.
Chamaremos isso de sexismo porque atribui a um dos dois sexos, neste caso ao masculino heterossexual, valor e poder, chegando a semantizar tudo o que não pertence à masculinidade machista e fálica com reprovação ("afeminado", "histérica", mulíebre derivaria de mollitia enquanto vir de força). Olhando bem, de fato, apenas a sexualidade masculina conecta prazer sexual e fecundidade com a consequência que num sistema “machista” todo prazer infecundo é considerado anormal e/ou pecaminoso.
“Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo” (Wittgenstein). De fato, a cultura está profundamente impressa nas palavras que usamos porque a linguagem expressa a nossa visão do mundo. A linguagem é a chave para a maneira como vemos, percebemos e habitamos o mundo. Mais ainda: a palavra é um dispositivo capaz de moldar a realidade nomeada, pois ao nomear damos forma à realidade, como afirma Gênesis 2,19. Linguagem, escrevia Silvia D'Adda comentando as inapropriadas palavras papais, “inerva o tecido da sociabilidade que habitamos, o estilo da nossa interação”.
A linguagem molda o mundo e tem um valor performativo porque falar também é um ato de poder sobre a realidade, a determina. Assim, o poder que o Papa exerceu ao dizer três pequenas letras em relação às mulheres, como o “não” à sua ordenação, é um poder excludente, que manda de volta mulheres (quando é que saíram?) para posições marginais da igreja. Como mencionado, deriva de convicções ancestrais e profundas, duras de morrer, mas que se consolidaram profundamente na estrutura mental (e cerebral) do idoso patriarca. Assim, também a linguagem usada para falar dos gays é o indicador do (des)valor que efetivamente é atribuído à homossexualidade, um desvalor encistado na estrutura mental antiga e mais profunda das redes neurais. Assim temos que pensar que as palavras de desculpas aos gays após seu inconveniente deslize ou as brilhantes garantias sobre a importância das mulheres na Igreja depois do não às diáconas, pertencem no fundo à estrutura rígida ou enrijecida do cérebro de quem, criado e envelhecido numa instituição patriarcal e sexista, tem dificuldade para considerar “saudável” um homoafetivo, e sedimentou uma introjeção de valor do feminino como funcional e secundária.
Sabemos que Bergoglio não domina perfeitamente o italiano e que a palavra sobre os gays poderia até lhe ter sido sugerida por ambientes acostumados a tal termo e por ele usado talvez de forma inconsciente (o que certamente não elimina o problema de querer excluir os homoafetivos dos seminários). Certamente vale se perguntar quem e por que quis que saísse daquela sala tal expressão (causando uma indiscutível queda de estilo). Mas como sabemos, os venenos nos palácios vaticanos não faltam e envenenam, em primeiro lugar, as suas próprias vidas, além das vidas alheias. No entanto, se de um Ministério ordenado (da Palavra) querem manter o privilégio é preciso que escolham com mais cuidado as palavras que dizem, porque há tempo que as suas palavras envenenam mundos e consciências. O próprio Papa tinha começado a falar de modo menos problemático sobre os gays, de modo que hoje, no mundo eclesial católico, o tema é tratado com menos reação do que há apenas uma década.
Quem conhece o mundo eclesial por dentro sabe que é verdade: mosteiros e seminários têm um elevado percentual de pessoas homoafetivas. Os bispos deveriam primeiro perguntar-se o porquê, e descobririam que o motivo está ligado à própria demonização da homoafetividade feita por parte da Igreja católica, que assim obriga a si mesma a adotar, por um lado, uma dupla moral e, pelo outro, os indivíduos a divisões internas dolorosíssimas que causam sofrimentos e até levam a doenças.
A evidência da difusão da homoafetividade nos ambientes religiosos coloca os bispos diante de um outro fato indubitável: aquele de perder o controle dos corpos e da sexualidade. No passado, de fato, numa sociedade que escondia a homossexualidade dos olhos e das mentes de todos, uma rígida separação entre homens e mulheres (com o confinamento “enclausurado” das mulheres) garantia mais ou menos um certo controle sobre a vida sexual. Hoje não é mais assim: é difícil aceitá-lo e explicá-lo ao mundo quando se continua a pensar na sexualidade em termos eminentemente procriativos.
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Mulheres e gays dos meus países. Artigo de Selene Zorzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU