15 Mai 2024
"Por que o ritual do anel, que durante 350 anos foi apenas um, aquele em que o marido o colocava no dedo da esposa, virou 'troca dos anéis' em 1969? Por uma deriva antropocêntrica? Ou porque com muito esforço entendemos que também marido e mulher, e não apenas homem e mulher, têm direitos iguais na família? Por que você não se exaspera por essa perda da tradição? Por que não reage tão duramente ao fato de João XXIII, na Pacem in terris, é o primeiro papa a dizer que a fonte dessa evolução não é a Escritura ou a Tradição eclesial, mas a Declaração dos Direitos Humanos Fundamentais? Por que você não se junta a Lefbvre na denúncia disso como 'caída antropocêntrica'?", escreve o teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, em artigo publicado por Come Se Non, 10-05-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Prezado Massimo,
quando li o texto da sua última postagem em SettimanaNews, com o título O diaconato feminino, duas precauções, não queria acreditar no que estava lendo e por isso decidi escrever-lhe abertamente, para expressar-lhe toda a minha divergência. Não é sobre o que você diz, mas como você o diz. E não se trata apenas do tema específico, mas da forma mais geral de compreender a tradição. É inteiramente razoável que se possa ter opiniões diversas sobre coisas que não envolvem as verdades últimas. No entanto, para apoiar a sua tese, você não hesita em “demonizar” e julgar severamente toda perspectiva de verdadeira mudança. O problema é que você faz com que seja decisivo e definitivo o que não o é, e isso não apenas me impressiona, mas me leva a lhe dizer com mais clareza o que penso sobre o que você escreveu.
Em primeiro lugar, sobre a "precaução". Você até a coloca no título e constrói o seu artigo como dois momentos de exercício da precaução. Mas a precaução é um componente da prudência. O que li, em vez disso, sob o nome de precaução, não é precaução, mas medo, um medo louco, que não levou você à prudência, mas à imprudência, a julgamentos sumários e até a julgamentos toscos. Uso este termo porque o que me leva a escrever é a reação a um ato de injustiça, do qual talvez você nem tenha se apercebido. Um ato de injustiça para com a tradição e sobretudo para com as mulheres. Gostaria de explicar melhor o motivo desta minha reação.
A sua primeira precaução/medo, de fato, diz respeito a nada menos que, justamente, a tradição. Você acredita que a tradição deva ser imposta mesmo que não a compreendamos mais. E acima de tudo que a tradição é autônoma em relação à interpretação que dela podemos dar. Principalmente pelo fato de que cada instância que nasce do “mundo” aparece para você e você a julga como uma forma de traição à tradição. Como você também escreveu muitas coisas sobre o Concílio Vaticano II, isso me surpreende bastante: você já ouviu falar de “sinais dos tempos”? Talvez você pense que tenha sido uma forma de “antropocentrismo” que levou João XXIII a falar de “entrada da mulher no espaço público”? Talvez você pense que a Igreja não tem nada a aprender com a história? Talvez também seja antropocentrismo o conteúdo da Dignidatis humanae e a admissão da liberdade religiosa como princípio geral?
O que lhe falta para abraçar, pouco a pouco, as posições de Lefebvre logo após o Concílio? Acredito que na primeira “precaução-medo” que expressou, você tenha perdido o controle das palavras que utilizou e tenha se colocado em uma posição que não difere do tradicionalismo, ao identificar a tradição com o passado. Não, a tradição é precisamente a possibilidade da novidade. Por outro lado, você parece apenas se importar com o fato de as coisas não mudarem, e não que sejam justificadas.
Porque você só usa o argumento mais fraco: “se não foi antes, também não pode ser hoje”. Mas se você não encontrar uma razão para isso, se você não disser o porquê, mas se esconder no mero passado, você fala apenas por medo, deixando de lado a razão e a fé. Cujo pior inimigo é justamente o medo. Vamos examinar melhor o cerne do seu raciocínio: você diz, a questão é entender “de que forma a tradição é normativa”. Certo.
Mas depois acrescenta que “para complicar as coisas” existe uma visão teológica antropocêntrica, isto é, na sua opinião, uma perspectiva teológica que afirma o homem e nega Deus. Aqui você se torna não apenas injusto, mas cego. Tente olhar o que aconteceu não no ministério ordenado, mas no matrimônio. Por que o ritual do anel, que durante 350 anos foi apenas um, aquele em que o marido o colocava no dedo da esposa, virou “troca dos anéis” em 1969? Por uma deriva antropocêntrica? Ou porque com muito esforço entendemos que também marido e mulher, e não apenas homem e mulher, têm direitos iguais na família? Por que você não se exaspera por essa perda da tradição? Por que não reage tão duramente ao fato de João XXIII, na Pacem in terris, é o primeiro papa a dizer que a fonte dessa evolução não é a Escritura ou a Tradição eclesial, mas a Declaração dos Direitos Humanos Fundamentais? Por que você não se junta a Lefbvre na denúncia disso como “caída antropocêntrica”?
Em vez disso, prefere esconder o seu medo de uma “mulher com autoridade” no plano eclesial, dizendo que “no catolicismo não existe uma posição compartilhada”. Nem mesmo nos EUA, na década de 1860, havia uma posição compartilhada sobre os escravos a serem reconhecidos como cidadãos iguais perante a lei. Seria esta uma boa razão para deixar a escravidão continuar? Aqui precaução significa apenas medo. O que nunca é um bom conselheiro para o teólogo. Você acusa quem fala do “diaconado feminino” de quererem desconstruir o valor normativo da tradição. Porque você já decidiu, sem trazer nenhuma prova, que a tradição é imóvel. Mas essa é a pior maneira de considerar a tradição.
E nem mesmo quando usa o exemplo do Papa você faz algum grande progresso. Blondel já tinha entendido isso há 120 anos, mas você persiste em pensar como muitos teólogos do século XIX. Porque o modelo com o qual o papa, só no final do século XIX, foi pensado como soberano absoluto que reúne em si todo o poder legislativo, executivo e judicial, é uma forma moderna, demasiado moderna, de pensar o episcopado e o bispo de Roma, em comparação com o qual a sacramentalidade do episcopado afirmada pelo Concílio e a "sinodalidade" que discutimos nos últimos anos é uma justa correção, que busca sair dos atoleiros de uma concepção absoluta do poder.
Isso não é desconstrução, mas hermenêutica da tradição, que só pode ser julgada como “antropocentrismo” se no lugar da prudência, se deixa espaço ao medo. Portanto, o seu argumento deve ser invertido: você pensa que é geradora de divisão toda modificação da tradição, que você lê como “ceder ao antropocentrismo”. Eu digo que a definição de homem e de mulher, sobre a qual a Igreja não tem poder, redefine os papéis de autoridade na Igreja. E é tarefa da tradição com T maiúsculo ouvir a história e não a reconstruir abstratamente. Gera divisão hoje pensar em julgar a realidade eclesial e ministerial com a compreensão de homem e mulher de 800 anos atrás. E confundir a fé com a cultura de uma época é o verdadeiro antropocentrismo perigoso, mesmo quando se veste de forma solene e se sacraliza. Os erros de avaliação nunca são sagrados.
Mas infelizmente você não parou por aí. Você foi em frente e chegou ao ponto de considerar que uma eventual abertura do diaconado às mulheres seria um enfraquecimento irreparável do próprio diaconado. Para chegar a essa conclusão, antes de mais nada você lê o diaconado de forma forçada, isto é, como uma espécie de “atentado” à natural ministerialidade batismal.
Você coloca muitas coisas que em si parecem até razoáveis, mas as coloca num horizonte no qual o diaconado não deve ser pensado como "serviço", mas como liderança. É uma sua visão pessoal, legítima, que você não só utiliza dialeticamente em relação ao serviço batismal, mas que depois leva a consequências totalmente inaceitáveis quando chega a afirmar:
“Na minha opinião, se o Papa Francisco decidir autorizá-lo [o diaconado feminino], as probabilíssimas fortes resistências a uma liderança feminina na Igreja Católica poderiam levar a nivelar ainda mais o serviço diaconal com o batismal. Assim, tanto os diáconos como as diáconas não teriam qualquer papel de autoridade, mas seriam simplesmente homens e mulheres que se distinguiram pelo seu serviço e que foram, portanto, recompensados com a ordenação.”
Você não percebe que todo o seu raciocínio tem por trás, de forma nem tão oculta, o argumento-chave com o qual a Idade Média excluía desde a base qualquer possível ordenação da mulher: isto é, a incapacidade da mulher de exercer a liderança em público. A sua precaução, com a qual gostaria de investir até o Papa, é na realidade fruto do medo e de uma teologia não apenas velha, mas da qual deveríamos nos envergonhar. Em vez disso, você não apenas não a contesta, mas a utiliza como “argumento”.
Você afirma, essencialmente: o diaconado já é muito fraco, apesar de ser protagonizado pelos “garotinhos fortes”; se o confiarmos a fracas mulherzinhas, então realmente queremos destruí-lo… Aqui o medo e o preconceito forçaram a mão e você escreveu coisas pelas quais eu sentiria o dever de pedir desculpas a todas as mulheres que lerem tal texto. Desculpe-me se me expresso assim: mas tantos anos de estudo da tradição, dos documentos e da teologia lhe servem para fazer uma piada de bar? O teólogo fala com a melhor reflexão possível, não enquanto joga buraco (obviamente apenas com outros três homens).
Eu me pergunto como você pode pensar tudo isso como “precaução na tradição”. O ponto qualificador do acesso das mulheres ao diaconado (ao único diaconado comum a homens e mulheres) justamente deve ser entendido de forma invertida. Precisamente a presença das mulheres no ministério pode permitir uma grande reinterpretação de um “ministério menor”, que assim permaneceu precisamente pelas múltiplas razões que você aludiu, mas que pode encontrar justamente na queda da “reserva masculina” não o golpe da graça (no sentido jurídico do termo), mas o dom da graça de um novo horizonte.
A tradição pode ser assustadora porque é princípio da mudança. Quando se torna uma apólice de seguro, apenas tranquilizadora, é distorcida e domesticada. A tradição deve causar medo porque é exigente: no seu centro está a liberdade com que o Espírito conduz a história e desarranja os nossos planos. A precaução necessária é, portanto, a capacidade de enfrentar a mudança que se impõe, não inventar sempre novos truques para evitá-la.
Permita-me concluir com uma imagem. Depois de ter lido o seu texto fica uma sensação de opressão e de fechamento, se sai do museu não confortado pelas “estátuas de mármore” que foram visitadas. A tradição é mais um jardim, não um museu.
Um jardim que pode voltar a florescer, desde que não se tenha medo do sol, da água, do vento, dos animais, dos homens e das mulheres. O museu “protege” e “conserva”, mas sem flores e sem frutos; o jardim expõe e coloca em risco, mas dá flores e frutos. Penso que antropocêntrica é uma teologia que presume ficar apenas dentro do museu ou esticar as pernas debaixo da mesa do bar, jogando cartas apenas entre homens. Deus está sempre no risco da vida.
Imagem: Praising © Mary Southard www.ministryofthearts.org/ Used with permission | Arte: IHU
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Sobre o diaconato para as mulheres: carta a Massimo Nardello. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU