14 Mai 2024
"À primeira vista, tal interpretação parece ser uma operação muito simples. Hoje parece evidente que o destino do antigo ministério diaconal feminino apenas às mulheres tenha sido motivado pela mentalidade patriarcal característica da idade patrística. Isso não elimina, no entanto, que nos nossos dias a restauração desse ministério só poderia acontecer em termos de igualdade em relação ao dos homens, e comportaria, portanto, a ativação de uma forma ministerial que nunca existiu na Igreja. Isso é legítimo?", escreve Massimo Nardello, teólogo e presbítero da Arquidiocese de Modena-Nonantola, na Itália, em artigo publicado por Settimana News, 09-05-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nestas notas gostaria de oferecer algumas reflexões de natureza teológica sobre duas precauções que, na minha opinião, deveriam ser levadas em conta no processo de tomada de decisão relativo à possível introdução da ordenação das mulheres ao diaconato permanente.
Mesmo que eu tenda a concordar com essa opção, parece-me que ainda existem algumas questões em aberto das quais é preciso estar bem cientes nessa fase do caminho eclesial, para evitar fazer escolhas imprudentes e geradoras de divisão.
Uma primeira questão diz respeito ao problema teológico da Tradição.
Como se sabe, a possibilidade de ordenar as mulheres ao diaconato permanente foi propiciada por uma série de estudos, inclusive recentes, nos quais se demonstrou que na antiguidade existiram diáconas ordenadas com a imposição das mãos.
Não podemos afirmar com certeza que essa prática foi reconhecida como legítima sempre e por todas as Igrejas locais, pois as fontes antigas à nossa disposição apenas esclarecem o que aconteceu em alguns territórios e durante alguns períodos. Em todo caso, não há dúvida de que existiram diáconas.
Ao mesmo tempo, porém, esses estudos destacaram como o seu ministério não era semelhante ao dos homens, mas exclusivamente relativo ao mundo feminino. Portanto, como é natural que seja, o estudo de documentos antigos não nos fornece dados de significado irrefutável, mas uma série de elementos que devem ser interpretados.
À primeira vista, tal interpretação parece ser uma operação muito simples. Hoje parece evidente que o destino do antigo ministério diaconal feminino apenas às mulheres tenha sido motivado pela mentalidade patriarcal característica da idade patrística. Isso não elimina, no entanto, que nos nossos dias a restauração desse ministério só poderia acontecer em termos de igualdade em relação ao dos homens, e comportaria, portanto, a ativação de uma forma ministerial que nunca existiu na Igreja. Isso é legítimo?
Para responder a essa pergunta é necessário esclarecer, do ponto de vista teológico, de que forma a Tradição é normativa para a Igreja. Pode-se apenas introduzir o que já esteve presente no passado ou há margens para mudança ou mesmo criatividade? Efetivamente, de fato, a Tradição sofreu muitos desenvolvimentos, por vezes até descontínuos, também na teologia do ministério ordenado.
A pergunta, então, passa a ser como discernir a legitimidade de uma mudança da prática antiga. A questão não é trivial. Podemos, por exemplo, renunciar ao episcopado, ou utilizar outros alimentos além do pão e do vinho na celebração da Eucaristia em nome da vontade do Espírito? Obviamente não.
Não faz muito sentido devolver o problema ao magistério, pois o Papa e os outros bispos desempenham o seu serviço de discernimento de autoridade da vontade divina de uma forma absolutamente humana, confrontando-se com o sentido de fé das suas comunidades e, em particular, com o que emerge da reflexão teológica que escolhem seguir. Em suma, eles também precisam entender de que forma a Tradição é normativa e até que ponto se pode introduzir mudanças em relação ao que aconteceu no passado.
Ora, na minha opinião, a teologia católica contemporânea não tem condições de dar uma resposta compartilhada a essa questão.
Para complicar a questão, há a crescente incidência de uma visão teológica que eu definiria como antropocêntrica - e não simplesmente antropológica - segundo a qual, sendo o humano o destinatário da revelação, o que emerge de genuíno e humanizador de um contexto antropológico, ou seja, de determinadas instâncias culturais, deve ser considerado expressão do rosto do Deus de Jesus Cristo e da sua vontade sobre a sua Igreja e sobre a humanidade.[1] No caso do diaconato feminino, o fato de a igualdade entre homem e mulher ser um valor cultural certamente autêntico e compartilhado nas sociedades ocidentais - pelo menos em teoria - significa que, segundo a visão em análise, a ordenação diaconal das mulheres é certamente legitimada.
Nessa perspectiva, a pergunta sobre como a Tradição é normativa para a vida da Igreja perde sentido.
As ideias e as práticas do passado tornam-se simplesmente um repertório do qual haurir livremente para construir uma Igreja, ou melhor, um cristianismo, que é moldado pelas instâncias culturais. E, uma vez que as culturas são múltiplas e diferentes, essa abordagem comporta inevitavelmente uma fragmentação do tecido eclesial e, a longo prazo, uma ruptura da comunhão entre as Igrejas locais.
Na realidade, quando se assume esse fundamento antropocêntrico da teologia, isto é, determinado primariamente pelas instâncias culturais, muitos aspectos da doutrina da fé ficam comprometidos. Por exemplo, a crença de que o bispo de Roma seja o sucessor de Pedro e que, como tal, possa exercer o seu atual ministério primacial, não se sustenta mais. Afinal, no Novo Testamento nunca há qualquer menção a um vínculo entre o Apóstolo e o Papa, e os estudos recentes destacaram como ele só começa a ser formalizado por volta dos séculos IV-V.
Mais ainda, no plano cultural, um papel de tamanha autoridade como o do pontífice não tem qualquer justificação. Nas sociedades liberais, o poder é delegado pelo povo e tem sempre uma duração pré-estabelecida. Portanto, assumir as instâncias culturais como expressão da revelação divina significa também acabar com o ministério do bispo de Roma, tal como se configura hoje, e instaurar um regime democrático na Igreja.
Em suma, quem se apropria indevidamente das instâncias de reforma justamente invocados pelo Papa Francisco para desconstruir o valor normativo da Tradição deveria considerar que essa abordagem também compromete a autoridade do próprio pontífice, que não tem outro fundamento teológico exceto a própria Tradição.
Portanto, a reflexão sobre o diaconato feminino não pode ser determinada primariamente pelas instâncias culturais, mas requer uma resposta prévia à questão sobre a forma como a Tradição é normativa, isto é, sobre como toda a Igreja, guiada pelo Papa e pelos outros bispos, pode entender que mudanças é legítimo introduzir também na sua estrutura ministerial. Só então será possível eventualmente estabelecer que a destinação das diáconas da antiguidade apenas para o mundo feminino pode ser superada e oferecer às mulheres católicas de hoje um ministério diaconal com as mesmas características daquele masculino.
Pelo contrário, se opção desse tipo fosse amadurecida simplesmente para corresponder às instâncias culturais relativas à igualdade entre homem e mulher com base na sua suposta normatividade teológica, a ordenação feminina se fundaria de maneira aleatória e se alimentaria uma mentalidade extremamente perigosa e potencialmente geradora de divisão para a teologia e a vida da Igreja.
Imagem: Praising © Mary Southard www.ministryofthearts.org/ Used with permission | Arte: IHU
Uma segunda questão diz respeito à identidade ministerial do diaconato.
Há cerca de trinta anos, desde que comecei a tratar da formação dos diáconos permanentes, tenho tentado divulgar a convicção de que o ministério diaconal não é pura e simplesmente para o serviço.
Essa frase pode parecer problemática, também levando em conta as recentes intervenções magisteriais, mas obviamente deve ser bem entendida.
A teologia do diaconato deveria partir da premissa de que o batismo, completado pela confirmação e nutrido pela Eucaristia, é um fundamento sacramental amplamente suficiente para o serviço dentro da Igreja, e também para “despertar” as comunidades cristãs, lembrando a elas a vocação para se aproximar dos distantes, para estar ao lado dos últimos, para promover uma sociedade mais humana e para proteger o meio ambiente.
Pelo contrário, afirmar que apenas o diaconato habilite para uma atuação desse tipo significaria questionar a teologia do batismo, e também ir contra a evidência. Em cada comunidade há homens e mulheres não ordenados que, pelos seus carismas e pelo seu estilo de vida, chamam todos a prestar atenção aos pobres e ao cuidado da criação.
Se a lógica ainda tem valor na Igreja, é necessário explicar em que sentido cabe aos diáconos a tarefa de “despertar” as comunidades, se de fato outros crentes também o podem fazer simplesmente em virtude de serem cristãos, às vezes de maneira melhor do que quem é ordenado.
Esse problema não pode ser resolvido reduzindo as capacidades de serviço que derivam do batismo para valorizar as diaconais. É muito mais importante valorizar a ministerialidade de todos os batizados não ordenados do que o diaconato permanente.
Pode-se, no entanto, recorrer a uma eclesiologia de tipo platónico, afirmando que o diácono está em conformidade com o Cristo servo e, portanto, chama a comunidade ao serviço simplesmente pelo fato de ser ordenado, independentemente do que efetivamente faz. Contudo, não vivemos mais num contexto cultural que possa dar sentido a uma eclesiologia desse tipo, pelo que hoje tal visão resultaria incompreensível.
Além disso, a forma de empregar os diáconos nas paróquias e nas dioceses demonstra que o serviço de limiar, para além das proclamações teóricas, não está realmente no centro do seu ministério.
Vários deles dedicam a maior parte do seu tempo a tarefas que nada têm a ver com a proximidade ao mundo dos marginalizados ou dos distantes da fé. Por exemplo, dirigir um escritório na cúria, cuidar da administração, fazer catequese ou trabalhar na pastoral familiar são atividades diferentes daquelas de caridade ou de evangelização de quem não é cristão.
Finalmente, os diáconos têm normalmente uma atividade profissional que se desenvolve fora dos limites eclesiais, e até à sua aposentadoria podem oferecer uma disponibilidade de tempo muito mais limitada do que aquela de outros sujeitos eclesiais, como os presbíteros, os religiosos e os voluntários aposentados. Mesmo após o fim da sua atividade de trabalho, as dificuldades de saúde ou os compromissos familiares podem torná-los menos disponíveis para o serviço do que outras figuras eclesiais, talvez dedicadas em tempo integral à sua comunidade.
A visão que poderia contornar todas essas questões críticas é pensar no diaconato não como uma função do serviço eclesial pura e simplesmente, mas como um ministério de liderança orientado a guiar com autoridade, em virtude do carisma recebido na ordenação, dos grupos de fiéis, de preferência aqueles que atuam no limiar das comunidades cristãs, ou seja, cuidam dos pobres, dos distantes e do meio ambiente.
Dessa forma, o diácono torna-se ícone de Cristo servo, não por estar mais ao serviço dos outros, mas por ser o guia e o porta-voz daqueles batizados que, pelo carisma pessoal, expressam de forma mais evidente a extroversão da sua comunidade eclesial.
Tal serviço, sendo uma forma de liderança, pode não exigir muito tempo, embora ainda exija uma formação teológica e pastoral muito superior àquela atualmente exigida aos candidatos ao ministério diaconal nas nossas Igrejas locais.
Ora, tudo isso é muito relevante também para o diaconato feminino. Na minha opinião, se o Papa Francisco decidir autorizá-lo, as prováveis fortes resistências a uma liderança feminina na Igreja católica poderiam pressionar a nivelar ainda mais o serviço diaconal com o serviço batismal. Assim, tanto os diáconos como as diáconas não teriam qualquer papel de autoridade, mas seriam simplesmente homens e mulheres que se distinguiram pelo seu serviço e que foram, por isso, recompensados com a ordenação.
Isso prejudicaria na base aquela almejada requalificação da subjetividade feminina na Igreja católica que se espera da eventual ordenação das diáconas.
Esse risco torna necessária a requalificação do diaconato masculino antes ou durante o processo de discernimento sobre a eventual reativação do diaconato feminino, para que este último não arraste também o primeiro para um papel ministerial ainda mais fraco do que o atual, substancialmente semelhante ao batismal.
Isso seria um desastre no plano pastoral, até porque consolidaria ainda mais a ideia de que o verdadeiro serviço eclesial pressupõe o diaconato e que a ministerialidade batismal é algo informal e incompleto.
Na realidade, são precisamente os batizados não ordenados o recurso mais abundante e estratégico que a Igreja de todos os tempos tem à sua disposição para desempenhar a sua missão.
[1] Sobre esse ponto, cf. M. Nardello, La normatività delle Scritture in alcune elaborazioni teologiche contemporanee.
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O diaconato feminino: duas precauções. Artigo de Massimo Nardello - Instituto Humanitas Unisinos - IHU