22 Janeiro 2024
O Diário do frade e pensador francês retorna num único volume de mais de mil páginas. Trabalhou pelo ecumenismo, pela renovação da Igreja e por um papel de decisão para o laicato. Exultou pela Nostra Aetate, mas lamentou a falta de envolvimento dos grandes biblistas jesuítas e dominicanos. E foi cauteloso sobre o "radicalismo reformista" expresso por Rahner e Ratzinger.
A reportagem é de Filippo Rizzi, publicada por Avvenire, 14-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
“O aspecto mais importante do Concílio não é votar textos, mas criar um espírito e uma consciência nova, e isso requer tempo." Isso é o que escreve e anota em seu diário pessoal em fevereiro de 1964, quase um ano antes do encerramento do Vaticano II por Paulo VI, o teólogo dominicano francês Yves Marie Congar (1904-1995).
Uma afirmação que hoje parece quase um testamento espiritual e um sinal de trabalho e empenho febris, também em chave ecumênica, à qual foi submetido – "esmagado" (como ele confessará nas suas memórias) – o padre Congar, como especialista antes na Comissão Preparatória do Concílio e depois durante as quatro sessões do Vaticano II (1962-1965). Para esse grande pensador – “o frade sanguíneo e teólogo das Ardenas", como o definiu seu discípulo Hervé Legrand – o Vaticano II representou não apenas um encontro com a história, mas também uma oportunidade de autêntica “renovação da eclesiologia, da Tradição e do ecumenismo" dentro da Igreja Católica. Agora a casa editora San Paolo quis repropor na íntegra (quase vinte anos depois da primeira edição italiana em 2005, então dividida em dois volumes) a republicação do seu volume monumental Diario del Concílio 1960-1966 (1.064 páginas, € 59,00). Uma publicação que não representa apenas o manifesto conciliar de Congar, mas parece quase como uma contraparte paralela, num certo sentido “sinóptica” do que escreveu nos seus Cadernos Conciliares (Jaca Book, 2009) o teólogo jesuíta de Cambrai Henri de Lubac (1896-1991).
É certamente singular que os testemunhos conciliares e muito romanos de Congar e de De Lubac, – ambos foram nomeados cardeais por seus méritos teológicos por João Paulo II, que participou do Vaticano II como bispo auxiliar de Cracóvia – foram publicados depois de suas mortes, na França por Les Éditions du Cerf. Os escritos de Congar permitem ao leitor principalmente ver a sobrecarga de trabalho a que foi submetido o dominicano francês, muitas vezes obrigado a viajar de ônibus, de carro ou a pé para chegar a tempo aos seus encontros de trabalho no Vaticano; no entanto, nessas páginas também emergem muitas histórias de bastidores, especialmente para a elaboração dos “esquemas preparatórios” dos tantos documentos conciliares dos quais foi protagonista indireto o teólogo de Sedan, a partir da Constituição Pastoral Gaudium et spes. Para alguns observadores, o papel do Congar no Vaticano II foi aquele de “um explorador”, para outros foi decisivo. Por essa publicação descobre-se quão importante foi para Congar uma autêntica renovação da eclesiologia depois do Vaticano II e acima de tudo o quanto ele se importava que o laicato começasse a ter um papel decisório e não mais decorativo (como era na época de Pio XII) no governo da Igreja.
Não surpreende descobrir nesse livro o quanto Congar – que foi um dos nobres padres da Nouvelle Théologie juntamente com o "amigo de confiança" De Lubac, com Daniélou e com o coirmão dominicano Marie Dominique Chenu levasse em grande consideração a opinião da "minoria" conciliar e tivesse, por exemplo, grande atenção pelo teólogo de confiança do Cardeal Alfredo Ottaviani, o jesuíta holandês Sebastian Tromp. O que emerge dessas notas congarianas é a estima pessoal de João XXIII e de Paulo VI (e consequentemente do teólogo pessoal do Papa Montini, o ambrosiano Carlo Colombo) pelas obras teológicas escritas pelo frade dominicano.
Há muitos nomes a que o autor desse Diário acrescenta notas de consideração. Entre eles Dom Gérard Philips, um dos principais redatores da Constituição dogmática Lumen Gentium; o italiano e futuro monge Giuseppe Dossetti e Gustave Martelet, o jesuíta francês e um dos inspiradores do texto final da encíclica Humanae Vitae de Paulo VI. Significativas são as palavras que reserva ao cardeal jesuíta Agostino Bea, ex-confessor de Pio XII e presidente do secretariado para a promoção da unidade dos cristãos: “Nele está a força da Palavra da Escritura”.
Mas Congar não esconde nessa sua obra monumental e muito biográfica (transcrita e revisada pela sua secretária de confiança Delphine Guillou) as suas amarguras - ele que é um profundo defensor de um "verdadeiro retorno às fontes da Bíblia" - também pela falta de envolvimento na elaboração dos documentos conciliares, dos grandes exegetas jesuítas e dominicanos, que lecionavam respectivamente no Pontifício Instituto Bíblico, de Roma, e na École Biblique de Jerusalém. Mas esse texto nos presenteia com algo mais. Descobre-se, por exemplo, que mesmo estimando as competências de Karl Rahner e de Joseph Ratzinger (o futuro Bento XVI) - basta pensar nos esquemas elaborados pelos dois especialistas sobre as fontes da Revelação durante o Vaticano II - sempre se mostrará disposto a chegar a compromissos em relação ao “radicalismo reformista” (como bem explica Éric Mahieu na introdução desse belo livro) pelos dois colegas alemães.
A partir dos textos vem à luz o entusiasmo com que o Pe. Congar saudou a Declaração Nostra Aetate sobre as religiões não-cristãs (em particular o Judaísmo) em 1965. Ou, ainda, desses textos tão pessoais e quase íntimos (talvez também por isso quis que fossem publicados post-mortem) emerge o sonho, também acalentado pelo Papa Montini, de que depois do Concílio fosse instituído o ensino nas universidades católicas dedicado à “categoria da história da salvação”. A esse respeito escreve, depois de um encontro com Paulo VI: “Seria muito importante instituir, em cada centro universitário católico, uma cátedra de história da salvação, para estudar a economia divina na história do povo de Deus”.
Os pontos fortes da eclesiologia de Congar aparecem nessa publicação: a importância que deu, e para a qual dedicou boa parte de sua pesquisa teológico-sistemática pós-conciliar, para que pudesse ser redefinida de forma inovadora e mais de acordo com os tempos a “atualização” do papel do colégio dos bispos em comunhão com o Sucessor de Pedro. A partir dessas páginas descobre-se sobretudo o amor de Congar por Jesus e o seu sentimento por ser filho da Igreja apesar de tudo.
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Entusiasmo e amargura, o Vaticano II visto por Congar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU