02 Setembro 2023
"O Papa Francisco reduziu o Opus Dei a um status ainda inferior ao de instituto secular, como havia sido aprovado em 1950, com o orgulho de ter sido o primeiro e o modelo dos institutos seculares", escreve Sandro Magister, vaticanista, em artigo publicado por Settimo Cielo, 31-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Muito se tem fantasiado sobre a inimizade entre a Companhia de Jesus e o Opus Dei. Mas que a fantasia se tornasse realidade, os chefes da Obra o pensaram e temeram desde o início, quando em 2013 o jesuíta Jorge Mario Bergoglio ascendeu ao trono de Pedro. A sua decisão foi fechar-se num silêncio total, entrar nas sombras como uma toupeira na toca, na esperança de que este pontificado passasse sem os prejudicar, sem demolir as suas conquistas nos anos dourados de Bento XVI e mais ainda de João Paulo II.
Em vez disso, o temido aconteceu. Primeiro com passo lento, depois com um movimento cada vez mais acelerado até ao golpe final neste mês de agosto, o Papa Francisco desmantelou o que o Opus Dei construiu para si mesmo ao longo de décadas.
No título nada muda: a Obra continua a ser uma “prelazia pessoal”, a única com tal qualificação na Igreja. Mas, primeiro com constituição apostólica ”Praedicate evangelium” de 19 de março de 2022, depois com a carta apostólica “Ad charisma tuendum” de 14 de julho seguinte e novamente com o motu proprio de 8 de agosto de 2023, o Papa Francisco esvaziou-a da sua substância, rebaixando-a a uma “associação pública clerical de direito pontifício com a faculdade de incardinar clérigos”, ou seja, uma simples congregação de sacerdotes, hoje cerca de 2 mil, sujeita a controle do Dicastério do Vaticano para o clero, deixando de ter autoridade sobre aqueles 90.000 leigos que eram o seu ponto forte na sociedade, que agora voltaram a depender, canonicamente, dos respectivos párocos e bispos. Justamente isso: porque é isso que estabelece o novo cânon 296, modificado por Francisco, do código de direito canônico, que por sua vez se refere ao cânon 107 do mesmo código (a menos que valha a oposta interpretação de Juan Ignacio Arrieta, secretário do dicastério para os textos legislativos, segundo o qual, de acordo com o cânon 302 do mesmo código, as associações simplesmente definidas como “clericais” são de fato governadas por clérigos, mas também são compostas por fiéis).
Nas aspirações do Opus Dei, amplamente realizadas nos anos dourados, a prelazia pessoal devia ser uma espécie de diocese sem um território próprio delimitado, mas estendida ao mundo inteiro, com o seu bispo na pessoa do prelado da Obra, o seu clero e os seus fiéis. Deveria, portanto, fazer parte, nessa forma muito especial, da estrutura hierárquica da Igreja, e referir-se na cúria à congregação dos bispos.
O reconhecimento do Opus Dei como prelazia pessoal remonta a 1982, sete anos após a morte do fundador, o espanhol Josemaría Escrivá de Balaguer, proclamado santo em 2002. No entanto, contrariamente às suas expectativas, o código de direito canônico de 1983 não a coloca entre as estruturas hierárquicas, mas no capítulo “De populo Dei”.
Em compensação os dois sucessores de Escrivá são nomeados bispos: primeiro Álvaro del Portillo, depois Javier Echevarría, que está no cargo quando Bergoglio se torna papa. Após a sua morte, em 2017, foi sucedido pelo atual prelado, Fernando Ocáriz, a quem, no entanto, Francisco não gratifica com a dignidade episcopal. E esse já é o primeiro golpe que o papa jesuíta inflige à Obra, um prelúdio da subsequente proibição absoluta de 2022 de que o prelado seja agraciado com a ordem episcopal, sem prejuízo do seu direito de “usar as insígnias correspondentes” ao título honorífico de “protonotário apostólico supranumerário”.
No início do pontificado de Francisco, o Opus Dei contava com dois cardeais proeminentes: Julián Herranz Casado, respeitado canonista, na cúria; no Peru Juan Luis Cipriani Thorne, arcebispo de Lima. Além disso, em todo o mundo, havia numerosas dioceses guiadas por membros da Obra: só no Peru, uma meia dúzia, todas com bispos de orientação conservadora, pontualmente contrapostos, como reza o roteiro, por bispos jesuítas de orientação oposta.
O fato é que, sob o reinado de Francesco, Herranz e Cipriani saem rapidamente de cena, também por razões de idade, e os bispos da Obra também desapareceram gradualmente. Hoje resta apenas um no Peru, Ricardo García García, à frente da minúscula prelazia territorial de Yauyos-Cañete-Huarochiri.
Em 2016, a sugerir uma esperança de trégua foi a nomeação como diretor da assessoria de imprensa do Vaticano do estadunidense Greg Burke, ex-correspondente em Roma da Fox News e da revista Time, "numerário" do Opus Dei, ou seja, seu membro celibatário com os votos de castidade, pobreza e obediência, como o famoso porta-voz de João Paulo II, Joaquín Navarro-Valls.
Burke sucedia ao jesuíta Federico Lombardi e havia sido literalmente criado durante anos na secretaria de Estado com o título de "assessor sênior de comunicação", em vista dessa sua promoção. Mas, na verdade, o Papa tratou-o muito mal, valendo-se de seus próprios assessores de comunicação pessoais e passando sistematicamente por cima da sala de imprensa.
Em outubro de 2018, durante o sínodo sobre os jovens, a Burke foi negada até a função de divulgar os briefings informativos diários sobre o que estava acontecendo no encontro. No dia 31 de dezembro seguinte demitiu-se do cargo, e com ele a sua vice, a espanhola Paloma García Ovejero.
Hoje, no Vaticano, o Opus Dei não desempenha mais nenhum papel relevante, depois de perder a presidência do IOR, o “banco” da Santa Sé, no já distante 2012, com a expulsão do seu “supranumerário” Ettore Gotti Tedeschi. Na hierarquia mundial, o único membro proeminente da Obra hoje é José Horacio Gómez, arcebispo de Los Angeles desde 2010 e presidente da Conferência Episcopal dos Estados Unidos de 2016 a 2019, mas nunca nomeado cardeal pelo Papa Francisco.
Enquanto, em sentido contrário, cresce desmedidamente em torno do papa reinante a corte dos jesuítas, chefiado por três cardeais: o luxemburguês Jean-Claude Hollerich, diretor do sínodo em curso sobre a sinodalidade, o canadense Michael Czerny e o italiano Gianfranco Ghirlanda, todos com funções de primeiríssimo plano. Há também um quarto cardeal jesuíta, o espanhol Luis Francisco Ladaria Ferrer, prefeito em saída do dicastério para a doutrina da fé, mas tem o defeito de não concordar com as derivas doutrinárias deixadas correr por Francisco, que de fato livrou-se dele, aposentando-o e substituindo-o com uma figura de orientação diametralmente oposta.
No dia seguinte ao motu proprio papal de 8 de agosto, o prelado do Opus Dei Ocáriz declarou submissão total ao estabelecido. Que um grande especialista no tema, Giancarlo Rocca, sacerdote da Sociedade de São Paulo e diretor desde 1969 do monumental “Dicionário dos Institutos de Perfeição”, assim resumiu no “Settimana News”:
“O Papa Francisco reduziu o Opus Dei a um status ainda inferior ao de instituto secular, como havia sido aprovado em 1950, com o orgulho de ter sido o primeiro e o modelo dos institutos seculares. Na época, como instituto secular, o Opus Dei tinha um presidente geral e podia incardinar padres e leigos. Na nova formulação do Papa Francisco, apenas os clérigos podem ser incardinados na nova associação pública clerical subordinada ao dicastério para o clero. Parece evidente que o Opus Dei está sendo privado dos leigos, que constituíam a sua força e que não podem mais ser considerados seus membros”.
Geraldine Boni, docente de direito canônico e eclesiástico na Universidade de Bolonha, identificou por sua vez “uma contradição de árdua resolução” na assimilação feita por Francisco entre a qualificação de “prelazia pessoal” ainda aplicada ao Opus Dei e a sua nova definição de associação feita formado apenas por clérigos.
Mas poucos parecem preocupar-se com essa enésima confusão provocada pelo Papa reinante, talvez também por causa daquela aversão generalizada que penaliza o Opus Dei há décadas, independentemente dos seus efetivos méritos ou culpas.
Uma prova contundente dessa aversão histórica pode ser lida aqui, por exemplo, neste debate publicado postumamente em 2003 entre quatro ilustres e estimados intelectuais católicos italianos, o primeiro dos quais foi um homem chave na determinação do desenvolvimento do Concílio Vaticano II:
> Concílio “invertido” e Opus Dei. Uma bomba inédita de Giuseppe Dossetti
Não parece que Bergoglio pensasse de modo muito diferente deles sobre o Opus Dei, dada a forma como o reduziu quando papa.
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Opus Dei. Foi assim que a lenda se tornou realidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU