21 Agosto 2023
Com o artigo de Giancarlo Rocca comentamos as repercussões jurídicas do motu proprio do Papa Francisco Ad charisma tuendum sobre o Opus Dei. O dossiê de Jesús Martínez Gordo – em próxima publicação no Settimana News – reconstruirá algumas passagens da história, da espiritualidade e da teologia do Opus Dei. O presente artigo, assinado por Francesco Strazzari, conta como o Opus Dei foi constituído como prelazia pessoal (1983): como amadureceu a decisão, quais foram as reações e como foi barrada a publicação de um dossiê da revista Vida Nueva.
O artigo é do cientista político italiano Francesco Strazzari, professor de Relações Internacionais na Scuola Universitaria Superiore Sant’Anna, em Pisa, na Itália, publicado por Settimana News, 17-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Era a década de 1980. Na 32ª assembleia dos bispos espanhóis, o lendário cardeal Dom Vicente Enrique y Tarancón, arcebispo de Madri e presidente da Conferência Episcopal, informou aos bispos que o Opus Dei pretendia se tornar uma prelazia pessoal e ter seu próprio bispo. A atmosfera estava tensa porque, no meio tempo, no semanário Vida Nueva havia sido imposta a não publicação de um dossiê relativo ao Opus Dei.
A imprensa espanhola manifestou-se imediatamente contra o projeto. O conhecido escritor e poeta Martin Descalzo, na Hoja del lunes, escreveu: “É um dano para a comunidade cristã. É um dano ainda maior para os próprios membros. É perigoso se fechar em um gueto".
Nesse ínterim, despontaram manobras secretas. O Opus Dei estaria se articulando com o CELAM, o Conselho Episcopal Latino-americano e Caribenho, presidido na época pelo colombiano Alfonso López Trujillo, um dos principais expoentes da ala conservadora, criatura do cardeal Sebastiano Baggio, poderoso prefeito da Congregação para os Bispos, ferrenho defensor do Opus e apadrinhador da nova forma jurídica do movimento.
López Trujillo vetou a participação do diretor da Vida Nueva na Conferência de Puebla (1979) e havia informado o cardeal Tarancón sobre a falta de objetividade das matérias da revista da América do Sul. Pedi-lhe a sua opinião sobre o Opus Dei: "É natural", respondeu-me, "que o Opus Dei procure a sua própria forma jurídica. É um instituto secular que busca outra forma. Pediu para ser reconhecido como diocese. Eu entendo que procure tal forma. Também me parece explicável que para nós bispos não pareça a melhor forma. Acredito que a Santa Sé não procederá sem consultar os bispos, que suponho não estejam de acordo".
A Igreja Espanhola estava em tempestade. Em Córdoba, cinco padres haviam se casado juntos para manifestar seu protesto contra o fechamento da Conferência Episcopal. Uma cerimônia muito sugestiva, com a permissão do pároco, mas sem aquela do bispo. A missa foi concelebrada por nove sacerdotes na presença de outros trinta. Dom Infantes Florido escreveu aos fiéis condenando o episódio, sem, contudo, acusar os padres.
O cardeal Tarancón afirmou que informaria a Santa Sé sobre a questão do celibato e garantiu que falaria sobre isso com João Paulo II. O cardeal Bueno, de Sevilha, recebido em audiência, alimentou o fogo dizendo que o papa era inamovível sobre a questão do celibato.
Nesse ínterim, o bispo auxiliar de Madri, Dom Alberto Iniesta, envolvido na política principalmente na região de Vallecas e conhecido como o "bispo vermelho", era convocado a Roma pelo cardeal Sebastiano Baggio para responder a uma série de perguntas. Mais tarde, ele me contou que foi uma conversa-debate de 45 minutos. Dom Alberto respondeu ao cardeal Baggio reconfirmando sua posição: lutar pelos pobres e pelos marginalizados, ao lado daqueles que viraram as costas à Igreja.
Iniesta era protegido pelo núncio, Luigi Dadaglio, que tentou várias vezes apaziguar os bispos conservadores e o próprio cardeal Baggio, que tentaram deter o bispo auxiliar colocando ao lado dele dois colaboradores espiões. A todo custo, queriam que ele deixasse a Espanha. Iniesta não cedeu, porque os ataques à "linha Tarancón", arcebispo de Madri e seu superior, estavam na ordem do dia e provinham principalmente do Opus Dei.
O Opus Dei continuou a encher as páginas dos jornais e revistas. Parecia uma obra impressionante: poderosa, rica, conservadora, anticomunista, empoleirada em posições fundamentalistas, oculta, Igreja paralela e, em alguns aspectos, impenetrável. Mesmo assim, grande parte da hierarquia da época não poupava elogios à sua atividade.
Entrei no prédio onde trabalhava o diretor da assessoria de imprensa, o senhor Gordon, que me falou com entusiasmo sobre a Obra e me entregou um dossiê com artigos de apreço pelo fundador, Escrivá de Balaguer e sua Obra. As simpatias de João Paulo II pelo Opus Dei eram conhecidas. Em 1979, falando a trezentos professores e estudantes membros da Obra, disse: "Realmente é um grande ideal o vosso, que desde o início antecipou-se à teologia do laicato, que depois caracterizou a Igreja do Concílio e do pós-Concílio".
Não estava entre os que teciam louvores ao Opus Dei o cardeal Basil Hume, de Westminster, que apresentou as suas críticas e deu quatro recomendações para sua diocese: a proibição de jovens menores de dezoito anos de proferir votos e assumir encargos; os pais ou responsáveis legais deviam ser informados sobre a escolha; em relação à liberdade pessoal; as iniciativas e as atividades do Opus na diocese de Westminster deviam ser realizadas sob sua supervisão e direção.
A revelação feita pela revista Vida Nueva sobre a transformação jurídica do Opus Dei, em novembro de 1979, foi um choque e gerou grande indignação na Obra. A revista foi acusada de ter roubado os documentos. Foi ordenada de não publicar o dossiê, que já estava sendo impresso. “Foi a Santa Sé”, disse-me o porta-voz do Opus Dei, “que pediu para intervir junto à revista”. Mas o diretor da Vida Nueva, Bernardino M. Hernando, especificou: “Os documentos que publicamos chegaram até nós por correio comum. Nós nos certificamos de que fossem autênticos e decidimos publicá-los. Se não conseguimos é porque todas as altas hierarquias do Opus se mobilizaram de forma incrível para impedir que o fizéssemos”.
As acusações contra o Opus Dei eram graves. No Pueblo, o bem informado Pedro Lamet, editor-chefe da Vida Nueva as resumia. Diziam respeito ao recrutamento dos candidatos, o elitismo, a pouca ou nenhuma colaboração com a hierarquia e a falta de participação nas atividades diocesanas, com um apostolado quase exclusivamente voltado para a própria organização, a ambiguidade nas atividades civis e empresariais, a concepção da moral sexual e familiar, a preferência pelo exercício de práticas de piedade sem uma autêntica e sólida espiritualidade, o juridicismo e a falta de pesquisa teológica, o descomprometimento com a justiça nos países do Terceiro Mundo, o clericalismo e o conservadorismo.
A esse respeito, consultei um conhecido advogado de Madri, que foi membro do Opus Dei por muitos anos, um protegido do fundador. Era sacerdote do Opus, um pregador procurado de exercícios espirituais para ministros ordenados. Estas são as palavras da sua confissão:
“A disciplina era total, radical, do tipo perinde ac cadaver dos jesuítas. Eu definiria o Opus assim: uma sociedade solipsista, fechada em si mesma, independente do resto da Igreja. A formação nos internatos baseava-se na disciplina, na obediência absoluta e cega, no conservadorismo moral, na piedade tradicionalista. Os votos de pobreza, castidade e obediência eram feitos a partir dos quinze anos. O sexo totalmente um tabu, rigorismo absoluto. O anticomunismo, uma obsessão. Um membro não podia ler Marx sem autorização. Nenhuma revista podia ser lida, exceto aquelas impostas pelos superiores. O Opus tinha obtido a sua universidade, em Navarra, com uma espécie de golpe nos tempos do Papa João, sem o conhecimento dos bispos.”
Perguntei ao meu interlocutor se tinha conhecimento do pedido do Opus Dei para se transformar em prelazia pessoal e se o Papa seria favorável: “Não sei se o Papa já assinou; teríamos sido informados. Procuramos uma fórmula adequada. A prelazia pessoal é uma fórmula um pouco diferente da prelatura nullius. Para o Opus, tratar-se-ia de uma 'prelazia pessoal'”.
A constituição apostólica Ut sit, assinada em 28-11-1982, publicada no L’Osservatore Romano de 21 a 22 de março de 1983, instituía o Opus Dei como prelazia pessoal. No entanto, permeava certa insatisfação com o fato de a Obra ter sido erigida como diocese. Naquela época, apenas 1.300 padres e 354 seminaristas pertenciam ao Opus. Para os leigos, a Constituição falava de “incorporação”. O Opus Dei contava então com 74.401 membros, distribuídos por 87 países e ativos em 500 dioceses. O centro da Obra era reduzido aos padres e aos clérigos. Os leigos eram colocados em um círculo mais alargado. Num contexto ainda mais amplo estava a Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz, nascida por “iluminação divina” de Escrivá de Balaguer em 1928 e estruturada juridicamente em 1941, o primeiro passo para a fundação de um instituto religioso.
Na década de 1980 a Sociedade já não era o núcleo principal da Obra como na década de 1940, mas era uma espécie de associação que reunia os sacerdotes seculares ligados à espiritualidade do Opus Dei e incardinados nas respectivas dioceses.
Como instituto secular, o Opus obteve três reescritos da Congregação dos Religiosos, que garantiam ainda mais o sigilo, a que estavam obrigados todos os seus membros, incluindo os bispos não pertencentes ao Opus, que eram obrigados ao segredo sobre os conhecimentos relativos ao instituto. O Opus nem mesmo era obrigado a apresentar aos bispos o texto completo de suas Constituições, mas apenas um resumo. Não eram publicadas nem as Constituições, nem o regulamento, nem o ordenamento e nem o cerimonial. Era proibido divulgar o número de membros; permitia-se o silêncio sobre a condição familiar de origem e era proibido traduzir do latim as instruções internas do instituto. Dizia-se que nem mesmo todos os numerários (aos quais eram reservadas as atividades de direção) conheciam as Constituições.
As demissões dos membros deviam ser decididas exclusivamente pelo prelado e, portanto, o número e os procedimentos não eram conhecidos. Dependia exclusivamente do “padre” toda passagem interna, por exemplo, de supranumerário, simples membro que trabalha nas obras do instituto, a numerário. Já na época se entendia não apenas a forte hierarquização interna, mas também a eficácia do segredo. Motivação: a modéstia.
Perguntei ao então secretário da Conferência Episcopal Espanhola, Dom Fernando Sebastián, se havia dificuldades nos seminários quanto à orientação educativa na atividade pastoral entre os padres do Opus e aqueles diocesanos. A sua resposta foi a seguinte: "As orientações do Opus Dei, como as de outros grupos, são boas se aceitam as disposições dos bispos, mas isso nem sempre é fácil e surgem dificuldades, que se manifestam no esforço de coordenar a ação em vista de um mesmo objetivo pastoral".
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Quando o Opus Dei se tornou “prelazia pessoal”. Artigo de Francesco Strazzari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU