15 Setembro 2022
Guido Ferro Canale, especialista em direito canônico não compartilha as críticas dos cardeais Marc Ouellet, Walter Kasper e Gerhard Müller à decisão do Papa Francisco de separar os poderes de ordem, isto é, aqueles que derivam do sacramento da ordenação episcopal, dos poderes de jurisdição, que o próprio pontífice pode conceder a "qualquer fiel", homem ou mulher que seja.
O comentário é do jornalista italiano Sandro Magister, publicado por Settimo Cielo, 14-09-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Mas nesta carta ele intervém num caso específico de tal separação dos poderes, recentemente aplicada por Francisco ao Opus Dei, cujo governo deve doravante basear-se "mais no carisma do que na autoridade hierárquica", assim como de outros institutos religiosos e, portanto, o prelado da instituição "não será agraciado ou poderá ser agraciado pela ordem episcopal".
Ferro Canale acredita que o papa tenha tido "boas razões" para decidir assim, embora reconheça que a separação dos poderes de ordem e de jurisdição – criticada por Ouellet, Kasper e Müller como uma traição ao Concílio Vaticano II – continua sendo uma questão aberta para a livre discussão.
Essa sua intervenção é tanto mais interessante pelo papel desempenhado pelo Opus Dei na Igreja Católica nas últimas décadas, amada e ainda mais contestada, inclusive muito além dos seus próprios méritos ou culpas.
Uma prova flagrante de uma aversão radical ao Opus Dei – e a João Paulo II acusado de favorecê-la – está, por exemplo, nesta entrevista publicada póstuma em 2003 entre quatro ilustres e estimados intelectuais católicos italianos.
Acompanhei a discussão em curso sobre Settimo Cielo com grande interesse, sobre as implicações da reforma da cúria romana no que diz respeito à origem e à titularidade do poder de governo.
Nesse maio tempo, na questão também interveio Gerhard L. Müller, adotando uma linha muito crítica que me surpreendeu, dada a sua posição anterior como prefeito da então Congregação para a Doutrina da Fé: "vi praeteriti officii", deveria ter sabido que se trata de um assunto de livre discussão e em particular que – como acenado por Mendonça Correia – o Concílio Vaticano II não quis tomar posição sobre o assunto, porque ensina que o munus conferido com a ordenação episcopal é algo diferente da potestas ou poder de governo propriamente dito (cf. Lumen gentium, "Nota explicativa praevia", n.ºs 1 e 4, bem como o N.B. final).
Não me considero em condições de oferecer uma contribuição significativa no que diz respeito à vexata quaestio em si, aliás muito bem ilustrada com riqueza de argumentos. No entanto, gostaria de observar outra singularidade, ou seja, parece que os "tradicionalistas" não percebem que, neste ponto, o Papa Francisco dá a entender que pensa como eles. De fato, várias decisões controversas, como a escolha de cooptar também mulheres, em uma função consultiva, nos procedimentos de nomeação de bispos, desse ponto de vista específico, são inexplicáveis: a ordem sagrada é reservada aos homens, mas o papa, segundo os defensores dos dois poderes, pode conferir jurisdição também a uma mulher.
Mas aqui gostaria de me deter em particular numa outra reforma recente, aquela do Opus Dei, que me parece que ninguém tenha tentado comentar por esse ponto de vista.
A principal crítica ao motu proprio papal “Ad charisma tuendum” em relação à Obra foi formulada pelo blog messainlatino.it no próprio dia de sua publicação: “Em teoria, uma prelazia é (era?) uma espécie de diocese não territorial; agora, ao contrário, como o prelado não é mais equiparado a um bispo, aliás, dependendo do dicastério para o clero, torna-se de facto uma instituição normal e, portanto, dependente de outras para as ordenações, por exemplo. E a própria autonomia da prelazia vai… às favas”.
Na realidade, a situação é diferente.
Em primeiro lugar, a prelazia pessoal não é "uma espécie de diocese não territorial". Por uma razão muito simples: as dioceses e estruturas equivalentes (cf. cân. 368) são compostas por clero e fiéis, de fato são definidas como “porções do Povo de Deus”; por outro lado, uma prelazia pessoal é constituída apenas por clérigos, porque é uma estrutura que serve para assegurar a sua melhor distribuição, ou o cumprimento de determinadas tarefas pastorais; os fiéis leigos, no máximo, cooperam com ela (cân. 296). Com uma diocese tem em comum o fato de formar seu próprio clero, promovê-lo às ordens sacras e poder indicá-lo como cardeal (cân. 295); no entanto, o código de direito canônico não prevê que o prelado seja um bispo nem que seja equiparado a ele.
A situação não muda se considerarmos as leis particulares do Opus Dei, que, aliás, desde a sua criação pela constituição apostólica "Ut sit" até hoje, é a única prelazia existente. Para o n. 1 dos estatutos do Opus Dei, de fato, inclui também leigos, mas concretamente trata-se sempre de cooperação, inclusive porque estão sujeitos à jurisdição da prelazia apenas no que diz respeito à finalidade institucional desta última (cf. n.27) e, em tudo o mais, ficam subordinados ao seu respectivo bispo.
Tudo isso explica amplamente um fato que me parece ter passado despercebido pelos primeiros comentadores: em nenhum lugar estava previsto que o prelado do Opus Dei tivesse que ser um bispo. Já hoje, de fato, não o é Fernando Ocáriz Braña, que, contudo, ocupa o cargo desde 23 de janeiro de 2017.
Seus dois antecessores no cargo, que é vitalício, foram bispos: o Beato Álvaro del Portillo e Javier Echevarría Rodriguez. Mas a razão é contingente e não consiste em uma obrigação jurídica: entre os anos 1980 e 1990 (del Portillo morreu em 1994), era seguida a tese segundo a qual o poder de governo, que o prelado do Opus Dei possui por disposição expressa da Ut sit, ponto III, exige teologicamente o caráter episcopal.
Agora, o papa desconsidera essa posição, proibindo o prelado de ser bispo, mas deixando a Ut sit inalterada onde lhe confere jurisdição geral de foro interno e externo sobre todos os clérigos da prelazia e, na medida determinada pelos estatutos, sobre os leigos que colaboram com ela. Isso para além da intenção de ressaltar o aspecto carismático da autoridade do prelado – aspecto, aliás, que sempre foi profundamente sentido na Obra: basta dizer que, por expressa disposição estatutária, ele é sempre "o Padre" por excelência.
Quanto à transferência de competência do dicastério dos bispos para o do clero, uma vez clara a natureza jurídica das prelazias, faz perfeitamente sentido, a partir do momento em que este último dicastério, com a reforma da cúria, se torna o ponto de referência para tudo que diz respeito ao exercício do ministério sacerdotal, mesmo quando se trata de religiosos (cf. artigos 115 e 116 da constituição apostólica Praedicate Evangelium). Não há nenhum capitis deminutio.
O tema da proposta equiparação com os religiosos é mais interessante, porque existe sem dúvida, um "carisma" do Opus Dei, tal como existe para os institutos de vida consagrada.
Mas, mesmo aqui, o caso é diferente: a comparação proposta, em particular, com os institutos criados de acordo com o motu proprio "Ecclesia Dei adflicta" diz respeito a realidades que podem ostentar uma certa "especialização" na liturgia romana tradicional, mas não tem a finalidade institucional de satisfazer as exigências pastorais dos fiéis a ela vinculados (tanto que o uso dessa liturgia é um privilégio concedido aos seus membros, ou seja, uma graça para seu uso e consumo) e – não queiram forçar os interessados – sob tal respeito, são, em qualquer caso, intercambiáveis.
Por outro lado, no caso do Opus Dei, o apostolado a que se dedica é considerado tão específico que exige, por lei, tanto uma estrutura específica – justamente a prelazia – como uma exclusividade em termos de recrutamento e formação do relativo clero: nos termos do n. 44 dos estatutos, os clérigos da Obra são sempre escolhidos entre os leigos que, como "numerários" ou "agregados", já são objeto de seu particular cuidado pastoral.
Assim, a autonomia do Opus Dei, além de ser muito mais forte em termos jurídicos, também o é em termos sociológicos, pois é um grupo muito mais fechado. Nem sequer acredito – é preciso dizê-lo para completar – que se possa pensar numa intenção punitiva, nem que seja porque a reforma dos estatutos, ordenada pelo motu proprio papal, é confiada à própria prelazia, que até agora demonstrou que sabe navegar nas águas turvas e tempestuosas do atual pontificado com uma habilidade realmente extraordinária.
No máximo, a hipotética analogia com os religiosos se revela sob outro ponto de vista, o que também poderia explicar a posição do pontífice reinante. De acordo com o cân. 596, a lei particular que aprova e disciplina os institutos de vida consagrada pode conceder-lhes o poder de governo, sem que isso implique que os superiores sejam bispos. Exatamente como a Ut sit fez e faz para o Opus.
E como o próprio Jorge Mario Bergoglio, como superior dos jesuítas, exerceu uma jurisdição bem antes de ser bispo, pode-se compreender sua impaciência diante de um debate teológico e de uma tese Exatamente como a Ut sit fez e faz para o Opus, a da necessidade do caráter episcopal, que lhe parecem desvinculadas da vida concreta e da prática cotidiana da Igreja.
Neste caso, ouso dizer que ele tem boas razões para pensar assim.
Guido Ferro Canale
Gênova, setembro de 2022
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Sobre o Opus Dei, Francisco tem razão. Um especialista explica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU