24 Agosto 2023
"Com a nova regulamentação das prelazias, o Papa Francisco esclareceu algumas questões ou destacou outras já conhecidas e aceitas pela canonística. A nova normativa deixa claro que as prelazias não são estruturas hierárquicas quase-diocesanas e, portanto, não podem ser equiparadas às igrejas particulares. Contrariamente ao que alguns canonistas pensavam, a reforma assimila explicitamente as prelazias às associações públicas clericais de direito pontifício com o direito de incardinar clero. Este é talvez o ponto central da reforma".
O comentário é de Rafael Domingo Oslé, jurista espanhol e professor na Universidad de Navarra, em artigo publicado por Exaudi, 23-08-2023.
O Papa Francisco está seguindo à risca um dos pontos centrais de seu pontificado: realizar uma reforma profunda no Vaticano que facilite a missão evangelizadora da Igreja. Para isso, entre muitas outras tarefas, Francisco está revisando profundamente o direito canônico (penal, processual, matrimonial, vida religiosa), pois ele está ciente de que um bom direito gera harmonia e unidade, proporciona segurança jurídica às instituições e aumenta a eficácia.
A recente reforma das prelazias pessoais do Código de Direito Canônico responde a esse ideal. A criação de prelazias pessoais (Decreto Presbyterorum Ordinis, 10), como realidades eclesiásticas para a distribuição do clero e para o cumprimento de tarefas apostólicas específicas, foi uma das grandes contribuições pastorais do Concílio Vaticano II e da legislação pós-conciliar, comparável à criação de pessoas jurídicas pelo direito canônico medieval, muito antes de ser feito pelo direito secular.
Ao dar vida às prelazias pessoais, o Concílio Vaticano II optou por incorporar à Igreja o então moderno princípio de funcionalidade, como terceiro pilar, como complemento aos outros dois pilares principais: os princípios de pessoalidade e territorialidade. O princípio de funcionalidade justifica e legitima a criação de instituições eclesiásticas para atender a uma necessidade pastoral premente reconhecida como tal pela hierarquia da Igreja: atender cristãos perseguidos, migrantes, pacientes com doenças contagiosas, grupos sociais marginalizados, ajudar na reconstrução de uma área em guerra ou promover o chamado universal à santidade, o cerne da mensagem do Vaticano II, como no caso do Opus Dei, a única prelazia existente até agora, erigida por João Paulo II há mais de quarenta anos. Nessas tarefas específicas, às vezes trabalharão apenas sacerdotes, mas outras vezes, como é o caso do Opus Dei, sacerdotes e leigos trabalharão juntos, como expressão carismática específica da unidade do povo de Deus.
Em torno dessa ideia brilhante e revolucionária, em consonância com o que estava acontecendo no direito secular, logo surgiu um apaixonado debate canônico sobre a natureza jurídica das prelazias pessoais, uma vez que o seu surgimento exigia reinterpretar, enriquecer e avançar na compreensão dos dualismos territorialidade-pessoalidade, carisma-hierarquia, clero-leigos com os quais tradicionalmente a Igreja operava.
Nesse contexto, alguns canonistas tenderam a considerar as prelazias como circunscrições pastorais quase-diocesanas, semelhantes, mas não identificáveis, às igrejas particulares, enfatizando assim seu caráter hierárquico. Outros conceberam as prelazias pessoais como entidades de base associativa para melhor formação, incardinação e distribuição do clero a serviço das igrejas particulares e, portanto, semelhantes, mas não identificáveis, às associações de clérigos. Dessa forma, eles tentavam destacar o componente associativo e clerical das prelazias pessoais. A falta de acordo entre os canonistas sobre esse ponto central, infelizmente, dificultou o processo de criação de novas prelazias pessoais a serviço de determinadas tarefas pastorais na Igreja.
Com a nova regulamentação das prelazias, o Papa Francisco esclareceu algumas questões ou destacou outras já conhecidas e aceitas pela canonística. A nova normativa deixa claro que as prelazias não são estruturas hierárquicas quase-diocesanas e, portanto, não podem ser equiparadas às igrejas particulares. Contrariamente ao que alguns canonistas pensavam, a reforma assimila explicitamente as prelazias às associações públicas clericais de direito pontifício com o direito de incardinar clero. Este é talvez o ponto central da reforma.
Para enfatizar essa assimilação, a reforma estabelece também que o prelado, em vez de ser o Ordinário da prelazia, como assinalado por Paulo VI e João Paulo II, será um moderador com faculdades jurisdicionais para incardinar sacerdotes, erigir um seminário e guiar o ministério a serviço da finalidade da prelazia. Por outro lado, é lembrado e enfatizado que os leigos que trabalham a serviço da prelazia são fiéis das dioceses e continuarão fazendo parte delas. Esse ponto era e é indiscutível.
Acho importante ressaltar que assimilar em termos legais não é identificar, mas sim buscar um "primum analogatum", um conceito primário que sirva como referência para quem interpreta e aplica a lei. Pode-se assimilar, para fins legais, um residente em um país com dois anos de residência a um cidadão, mas um residente não é um cidadão nativo. Pode-se assimilar, para fins legais, uma união de facto a um casamento civil, mas eles não são idênticos. Um filho biológico e um filho adotivo podem e devem ser assimilados para fins legais, mas eles não são idênticos. A assimilação é uma técnica legislativa que evita repetições desnecessárias, facilita a interpretação e permite o desenvolvimento ordenado de instituições emergentes. Mas identificar completamente os elementos assimilados seria um erro que desnaturalizaria o componente mais fraco.
Dizer que as prelazias são assimiláveis a certas associações clericais mostra, em última análise, que elas não são constitutivamente associações clericais, mas algo mais. E é que, para compreender a natureza das prelazias pessoais, é necessário recorrer ao princípio de funcionalidade, não apenas ao princípio associativo. É a missão, a tarefa específica para a qual estão orientadas, que determina a forma de organização.
Muitos dos serviços ou tarefas apostólicas específicas das prelazias serão mais carismáticos do que hierárquicos (como é o caso do Opus Dei e como Francisco recentemente lembrou) e outros serão o contrário. Tudo pode e deve caber. Mas não devemos esquecer que toda realidade eclesial é ambas as coisas, com diferentes intensidades. O elemento hierárquico fortalece a unidade na diversidade, enquanto o carismático, por outro lado, enfatiza a diversidade na unidade.
Aqui é exatamente onde se encaixa a presença dos leigos. É óbvio que as prelazias pessoais não podem existir sem o clero. Mas não se pode fechar a porta para a incorporação de leigos nas prelazias pessoais quando isso for exigência do carisma, como acontece no caso do Opus Dei. O Opus Dei é uma família formada por leigos e sacerdotes, mulheres e homens, casados e solteiros, ricos e pobres. O princípio de funcionalidade (a missão específica) complementa o princípio de territorialidade e determina a forma de organização.
Quando João Paulo II transformou o Opus Dei em prelazia pessoal, ele reconheceu o carisma dado por Deus a São Josemaria para promover o chamado universal à santidade no meio do mundo e elevou isso à categoria de tarefa necessária na Igreja, por coincidir com a mensagem central do Concílio Vaticano II. Por isso, ele criou a primeira prelazia, composta por sacerdotes e leigos, alguns incardinados e outros incorporados, sempre a serviço de suas respectivas dioceses. Com essa aprovação, ele também deu resposta à aspiração do fundador: encontrar uma fórmula jurídica adequada ao carisma específico do Opus Dei.
Dizer que essa prelazia é assimilável a certas associações clericais é, repito, uma técnica jurídica totalmente aceitável. No entanto, uma interpretação clerical, clericalista, se me permite dizer, da reforma que não apenas assimilasse, mas identificasse a prelazia com uma associação clerical, descaracterizaria o carisma essencialmente secular da única prelazia criada há quarenta anos pela Santa Sé. Além disso, uma excessiva clericalização da reforma, ou um excesso de academicismo que fechasse os olhos para uma realidade pastoral já existente, iria contra o espírito evangelizador e sinodal que o Papa Francisco tem promovido desde o início de seu pontificado.
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A reforma das prelazias pessoais e do Opus Dei. Artigo de Rafael Domingo Oslé - Instituto Humanitas Unisinos - IHU