22 Janeiro 2024
Um teólogo que escreveu sobre Igreja, fé e cultura no Le Monde; um dominicano incansável no seu trabalho intelectual, brilhante e pioneiro, mas também marcado pelas limitações de carácter humano que por vezes marcaram o seu percurso (“É verdade, não sou fácil”); autor de best-sellers teológicos, com números que empalidecem a editoria católica de hoje; um intelectual capaz de discordar de grandes colegas pela diversidade de pontos de vista – três nomes, Rahner, Ratzinger e Schillebeeckx. E, sobretudo, objeto de um ostracismo por parte da hierarquia católica que depois se transformou - com o advento de João XXIII - numa valorização quase correspondente à negação do seu aporte inovador para dois campos da teologia, a relação entre fé e história, e o ecumenismo. Tudo isso, e muito mais, foi Yves Congar, um dos maiores pensadores católicos do século XX, como emerge da recente biografia do historiador francês Étienne Fouilloux, Congar. Una vita (Il Mulino, p. 328). Um texto muito rico, o de Fouilloux, que busca inspiração nos Diários de Congar e reconstrói o perfil biográfico e a profundidade teológica no contexto da Igreja no século XX.
A reportagem é de Lorenzo Fazzini, publicada por Avvenire, 14-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Fouilloux aponta a temporada de guerra como fundamental na jornada biográfica de Congar: alistado e depois prisioneiro, no galpão do campo de prisioneiros foi companheiro de Jean Guitton. E se o historiador não pode deixar de notar uma veia antissemita em Congar, incapaz de lucidez nisso devido a um certo espírito do tempo, deve ser reconhecido a ele a sua capacidade de ter visto no nazismo a expressão de um anticristianismo claro e radical: “O Padre Congar sairá realmente ileso do antissemitismo apenas na época do Vaticano II", escreve o biógrafo, recordando ao mesmo tempo como “o quanto admirava a Alemanha de Lutero e Möhler, detestava a Alemanha de Hitler e de Guilherme II". Na frente religiosa, Congar fora capaz de radiografar, já na década de 1930, com palavras precisas a crise do catolicismo ocidental: “Dobrada sobre si mesma, separada de vida, a religião não ofereceu mais às almas aquele ambiente de vida total em que a fé tem a sua expressão adequada. A fé, por assim dizer, se desencarnou, esvaziou-se de sangue humano.”
Para trazer o catolicismo de volta à altura de sua vocação, Congar se aventura num trabalho teológico de enormes proporções (1790 títulos registrados), com algumas obras que fizeram a história do pensamento teológico: Verdadeira e falsa reforma da Chiesa (na Itália para a Jaca Book), na França recebeu 27 resenhas, daquele volume de 650 páginas foram vendidas cinco mil cópias, esgotadas em apenas um ano (1950). Enquanto Por uma teologia do laicato (ed. Dialética), amplo quanto a anterior, chegou-se ao número sensacional de dez mil exemplares vendidos do original francês na segunda edição de 1954. Um legado que permanece fecundo e relevante ainda hoje, visto que no verão passado o Papa Francisco citou Verdadeira e Falsa Reforma de Congar, quando pediu aos sacerdotes: “Que não aconteça conosco ser uma Igreja ‘rica na sua autoridade e na sua segurança, mas pouco apostólica e mediocremente evangélica’".
A perícia e a peculiaridade intelectual de Congar logo se tornaram, no entanto, um problema para a censura da sua Ordem (ele ingressou nos Dominicanos em 1925, aos 21 anos) e do Vaticano: já em 1939 o Santo Ofício solicitou a retirada de uma publicação de Charles Moeller na série fundada por Congar. Para se ter uma ideia de quanto Congar deve ter sofrido em termos de restrição, Fouilloux relata que o seu Chrétiens désunis teve que esperar até 1964 para ser publicado novamente depois da primeira edição, lançada em 1948. Em seus Diários, Congar relata sobre aquela prática de censura que queria cortar pela raiz qualquer tentativa reformadora: “procura-se, nos meus escritos, toda mínima possibilidade na direção de cada temível heresia, acabando por encontrar uma sombra em meia linha. Nenhum texto – nem mesmo Santo Tomás – resistiria a tal tratamento." O machado vaticano atingiu especialmente em 1952 Verdadeira e falsa reforma na Igreja: proibida a sua reedição e qualquer tradução. Ostracismo que atingia profundamente um teólogo apaixonado pela Igreja e pela sua missão: “Chorei durante horas e solucei como uma criança", escreveu ele em julho de 1956, quando sua Ordem o impediu, a pedido de Roma, de publicar. A amarga constatação de Congar: “Só uma vez me recusaram o direito de pregar: os nazistas em maio de 1941." O céu clareia para Congar à medida que se aproxima o Concílio Vaticano II, convocado por João XXIII. Vários testemunhos atestam que foi justamente o pontífice de Bérgamo – que havia sido núncio em Paris e apreciava o teólogo de Le Saulchoir, do nome do convento dominicano belga, foco das inovações teológicas da França. En passant, também Henri de Lubac, anteriormente censurado, foi amplamente reabilitado. Na primavera de 1963, com o vento já a seu favor, Congar registra: “Às 11h50 em Santa Sabina o padre geral pediu para me encontrar. Para me dizer coisas gentis: é a primeira vez na minha vida que um superior me convoca para algo semelhante." O biógrafo tem facilidade em apontar: “Entrou na Ordem em 1925, quase trinta e oito anos antes...".
Fouilloux depois resume (o próprio Congar escreveu isso em seu Diário de Concílio) a contribuição do teólogo francês para os trabalhos do Vaticano II: oito dos dezesseis documentos da assembleia tiveram a contribuição do dominicano. “Só Philips, pedra angular dos textos doutrinais, desde o intervalo entre as sessões de 1963 até sua aposentadoria por doença em 7 de novembro de 1965, pode ser comparado a ele."
Os anos que se seguiram ao Concílio foram para Congar, por um lado, marcados por uma doença neurológica que limitou cada vez mais a sua esfera de influência, por outro, marcados por tormentos pós-conciliares: por exemplo, a sua relação dialética com a teologia da libertação mais marcada, quando escreveu: “O plano de salvação de Deus em Jesus Cristo supera, julga e radicaliza os esforços humanos de libertação temporal." “Reformista, o padre Congar não era um revolucionário”, resume Fouilloux, que não silencia a reserva do dominicano sobre a Humanae vitae, e ao mesmo tempo aponta a distância dialética que Congar manifestou em relação a Hans Küng: “Mesmo elogiando a sua intrepidez, criticava o radicalismo da sua síntese sobre a Igreja e a contestação da infalibilidade. Mas considerava o seu trabalho importante e se empenhou com ele num diálogo exigente e sem compromissos." Como outros teólogos inicialmente condenados ao ostracismo, depois reconhecidos pela Igreja como pontos de referência, Congar também recebeu o título de cardeal - de Lubac havia recebido a dignidade cardinalícia em 1983, a dele foi em 1994, exatamente 50 anos depois de ter sido censurado e afastado do ensino.
Uma reabilitação total realizada pelo Papa João Paulo II. Em 22 de junho de 1995 faleceu durante o café da manhã no Hospital des Invalides, onde havia sido recebido como veterano de guerra. Ficam impressas as suas palavras já de 1946: “O grande problema intelectual que a Igreja enfrenta hoje é abrir-se à dupla descoberta e à dupla solicitação que caracterizam os tempos modernos que são: 1. A libertação do ponto de vista do sujeito 2. O ponto vista do desenvolvimento da história. A nossa missão é levar a cumprimento esse duplo movimento”.
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Congar: dominicano incansável que radiografou a crise do catolicismo ocidental - Instituto Humanitas Unisinos - IHU