15 Novembro 2023
O integralismo atingiu sua articulação mais contundente nas encíclicas papais do século XIX, como a Quanta cura de Pio IX em 1864 (que incorporou o Sílabo dos Erros) e a Immortale Dei de Leão XIII em 1884. No entanto, esses resumos de sua substância tornaram-se necessários precisamente porque ele estava em crise enquanto a mudança das condições históricas despedaçava sua viabilidade. Fundamentalmente, o integralismo era um produto da Idade Média.
Publicamos aqui uma resenha do livro “All the Kingdoms of the World: On Radical Religious Alternatives to Liberalism” [Todos os reinos do mundo: sobre alternativas religiosas radicais ao liberalismo], de autoria de Kevin Vallier.
O comentário é de Alexander Faludy, presbítero da Igreja da Inglaterra e jornalista freelancer que vive em Budapeste, Hungria. O artigo foi publicado por La Croix Internacional, 08-11-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O “integralismo”, a ideia de que os valores e a liderança católicos deveriam monopolizar as estruturas estatais, tem experimentado ultimamente um reavivamento improvável em partes da direita anglo-americana.
Confrontados com a intolerância radical de alguns movimentos progressistas seculares em nível interno e com o surgimento de “desafios civilizacionais” no exterior, como a China e o Islã, alguns teóricos políticos e jurídicos católicos abandonaram o “paradigma liberal” como uma estrutura que pode garantir o futuro da fé.
Pensadores como Thomas Pink e Adrian Vermule definiram, em movimentos complementares, uma pauta para a reorientação da “política católica” em termos tanto de autoconcepção quanto de ação externa.
O novo livro de Kevin Vallier – “All the Kingdoms of the World: On Radical Religious Alternatives to Liberalism” [Todos os reinos do mundo: sobre alternativas religiosas radicais ao liberalismo] – tem como objetivo ajudar os leitores a compreender as motivações desses autores, descrever suas estratégias e avaliar os argumentos e as chances de sucesso dos integralistas.
VALLIER, Kevin. All the Kingdoms of the World: On Radical Religious Alternatives to Liberalism. Oxford: Oxford University Press, 2023 (Foto: Divulgação)
Em primeiro lugar, esse clã específico de antiliberais católicos tornou prioritário deixar de lado a leitura dominante da Dignitias humanae, a declaração do Concílio Vaticano II sobre a liberdade religiosa, que foi moldada pelo jesuíta estadunidense John Courtney-Murray.
Esse documento afirma a proteção da consciência religiosa pessoal e da diversidade confessional pública como a “norma” e não apenas como uma condição imperfeita à qual a Igreja pode se acomodar temporariamente.
Em vez disso, os novos integralistas enfatizam uma “hermenêutica da continuidade” que permite que a Dignitias humanae seja compreendida, com tensões, em conformidade com declarações anteriores, especialmente as de papas do século XIX como Pio IX e Leão XIII. Ambos os pontífices assumiram uma linha forte contra a democracia liberal e afirmaram que, em questões religiosas, “o erro não tem direitos”.
Em segundo lugar, os integralistas, especialmente Vermule, oferecem um programa por meio do qual os “cidadãos morais” católicos podem remodelar a ordem pública, especialmente nos Estados Unidos, mediante a “integração a partir de dentro”. Uma tomada de poder institucional orquestrada – centrada no Judiciário, na burocracia e nos órgãos culturais – deverá ser alcançada por meio de etapas graduais, refletindo o domínio obtido de uma forma descoordenada pelos progressistas nas últimas décadas.
Curiosamente, vencer as eleições e promulgar legislações parlamentares parece não ter nenhuma importância. Isso pode se dever ao fato de os novos integralistas partilharem a hostilidade do papado romano do século XIX à democracia. Também pode se dever ao fato de os integralistas preverem que a obtenção do consenso da população requer primeiro um nível de pré-condicionamento adequado (ou “cultivo da virtude”) alcançado por meios menos evidentes.
Vallier oferece aos integralistas uma escuta justa e ressalta que não é bom simplesmente rejeitar seus argumentos como excêntricos. Ele leva a sério a “crise do liberalismo” e condena a intolerância dos grupos progressistas para com pessoas com visões cristãs tradicionais, movimentos que reivindicam o título de “liberais” e que, ao mesmo tempo, impõem uma ortodoxia ideológica que é tudo menos isso.
Além disso, Vallier (que é ortodoxo oriental) concede aos integralistas o peso histórico da tradição ocidental que parece apoiá-los. Filosoficamente falando, também pode ser apresentado um argumento respeitável de que os Estados deveriam se preocupar tanto com os bens espirituais quanto com os naturais.
Se os católicos acreditam que sua Igreja pode oferecer o melhor canal para a transmissão de tais bens espirituais, é apropriado, a priori, que eles procurem coordenar as atividades da Igreja e do Estado em benefício de todos.
Em última análise, porém, Vallier não considera convincente o argumento dos integralistas e afirma que ele falha de várias maneiras em termos de contexto, praticidade e coerência. Destes, os argumentos (sobrepostos) do contexto e da praticidade (tratados nos títulos dos capítulos “Transição” e “Estabilidade”) talvez sejam os mais atraentes.
O integralismo atingiu sua articulação mais contundente nas encíclicas papais do século XIX, como a Quanta cura de Pio IX em 1864 (que incorporou o Sílabo dos Erros) e a Immortale Dei de Leão XIII em 1884. No entanto, esses resumos de sua substância tornaram-se necessários precisamente porque ele estava em crise enquanto a mudança das condições históricas despedaçava sua viabilidade. Fundamentalmente, o integralismo era um produto da Idade Média.
O conceito central do integralismo era de que o governo de direita se assentava em uma "diarquia" de Coroa e Altar (ou seja, a Igreja) – centros gêmeos de autoridade, cada um com campos de preocupação distintos, mas complementares. Os bispos gozavam do monopólio na articulação dos valores morais que guiavam as decisões do monarca. E, embora o monarca (teoricamente) não pudesse interferir na governança da Igreja, ele ou ela poderia, a convite da Igreja, usar o poder estatal para apoiar o ensino da Igreja (por exemplo, punindo hereges). Igreja e Estado, portanto, eram análogos a “alma e corpo”, distintos, mas codependentes.
Tal modelo poderia funcionar, embora com tensões, em um tempo em que os Estados eram fracos e prestavam poucos serviços, e a Igreja era forte por meio da unidade transcontinental e de seu monopólio sobre a aprendizagem (o que tornava seus representantes conselheiros valiosos).
Na modernidade, que envolve vastas burocracias estatais e a especialização do conhecimento, a Igreja não consegue trazer à mesa o suficiente para manter sua posição. A “diarquia” assume apenas dois polos – as lideranças da Igreja e do Estado.
No entanto, na modernidade, a educação de massa e as comunicações instantâneas significam que a “opinião pública” constitui um terceiro polo dinâmico desconhecido pelos teóricos políticos medievais como Tomás de Aquino.
O último ponto é fundamental. Dada a longa experiência do pluralismo cívico, é difícil ver como as maiorias nos países ocidentais, incluindo a maioria dos católicos, poderiam ser persuadidas a aceitar ou a continuar formas de governança integralista sem o uso de níveis significativos de compulsão legal e de coerção física contrárias a outros princípios do magistério católico.
Mesmo que sejam “bem-sucedidas” em relação à preservação da ordem, essas medidas fomentariam o ressentimento interno, o cinismo e uma atitude de conformidade externa superficial, contrariando o crescimento da virtude estimulada pela graça que o integralismo busca. Os fins do integralismo, assim, seriam derrotados por seus meios.
Além disso, para que um novo integralismo funcionasse, tanto a Santa Sé quanto as hierarquias locais teriam de abraçar sua quota eclesial de responsabilidade “diárquica”. Embora os integralistas tenham oferecido uma nova leitura da Dignitatis humanae, eles falharam, e notavelmente, ao fazer com que ela fosse adotada por teólogos que lecionam em seminários e por faculdades autorizadas da teologia católica.
Nem um único dos mais de 5.000 bispos em serviço ativo da Igreja Católica lhe deu apoio público. Ironicamente, o integralismo continua sendo esmagadoramente um projeto de intelectuais leigos que escrevem sobre direito e política. E, nesse sentido, falta-lhe seu próprio elemento “diárquico” clerical.
“All the Kingdoms of the World” é uma contribuição bem-vinda para mapear as variedades complexas do antiliberalismo cristão contemporâneo. Mas, sendo um livro destinado ao público em geral, a obra teria se beneficiado de um glossário de termos técnicos. A formação intelectual do autor em filosofia, e não em história, às vezes leva à falta de clareza empírica.
O entusiasmo selvagem dos integralistas estadunidenses – tal como a euforia de Gladdin Papin pelo governo autoritário do primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán – é mencionado repetidamente, mas sem que o autor tenha sondado alguma vez a ironia de que Orbán, assim como a maioria de seus ministros mais importantes, é calvinista e que a ordem jurídica da Hungria não concede nenhum status exclusivo para o catolicismo.
Um capítulo final sobre tendências paralelas ao integralismo no pensamento islâmico e confucionista é lamentavelmente abstrato. E talvez pudesse ter explorado também o fracasso moral das abordagens “integralistas” dos últimos tempos na Itália, Espanha e Portugal (todas tentativas de integralismo feitas em tempo ainda presentes na memória) e o que esse fracasso nos ensina sobre a inviabilidade concreta do projeto hoje.
VALLIER, Kevin. All the Kingdoms of the World:On Radical Religious Alternatives to Liberalism. Oxford: Oxford University Press, 2023.
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Uma honesta tentativa de compreender os novos integralistas católicos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU