13 Abril 2024
"Na celebração da Eucaristia não há diferença entre os membros. Não no sentido original de reunião e de participação. Se há diferença, é em relação às funções, ainda que (...) a liturgia é (...) ação do povo", escreve Cettina Militello, teóloga, vice-presidente da Fundação Accademia Via Prechritudinis ETS, em artigo publicado por L'osservatore Romano, 01-04-2024. Tradução de Luisa Rabolini.
A oração das mulheres tem características diferentes e específicas? Eu realmente não acredito nisso. Na sua raiz, além da "demanda", essa é a etimologia, está a necessidade, a experiência de Deus. A atitude de quem reza, homem ou mulher, é a de quem está na presença d'Aquele que dá sentido profundo ao seu estar no mundo. Ele o encontra e o reconhece nas criaturas e na criação, a ponto de considerá-los, cada uma a seu modo, como resposta à sua necessidade. Daí a idolatria... E como no curso da história – e das culturas que a habitaram – não foram as mulheres, mas os homens que fizeram a diferença, estes últimos, sobretudo, modularam e regulamentaram essa necessidade inata.
Tanto que as mulheres quase nunca foram objeto oficial de oração, sendo mais frequentemente relegadas a formas que expressariam culturalmente a sua inquietação. Penso nos cultos dionisíacos; nas mulheres possuídas. Penso no culto à Grande Mãe, sublimação da expectativa cultural feminina: a maternidade, precisamente. Em suma, na minha opinião, mas acredito que me apoiam a história e a sua leitura em chave antropológico-cultural, se a oração das mulheres é diferente e, sobretudo, guetizada, devemos isso à marca que o homem lhe deu ao reservar-se o direito de ser médium entre a Divindade e o grupo humano.
A mesma coisa acontece na tradição judaico-cristã? Em grande parte, sim, mas na análise estrita da distribuição das funções, inclusive a cultual, às vezes algo escapa. E não se trata de conceder que as mulheres escapem da escravidão conclamada, reconhecendo a elas liberdade por estarem possuídas, possuídas por um deus. Pelo contrário, trata-se de reconhecer que as mulheres (e as crianças) a todo efeito são membros do povo de Deus e, portanto, sujeitos de oração em todas as suas formas. Não por acaso o canto-oração das mulheres irrompe em momentos singulares da história de Israel.
Pensemos nas modalidades que marcam o Cântico do Mar que sela a ação poderosa de Deus que libertou Israel do Egito; pensemos no canto de Débora ou Judite, mulheres fortes e de autoridade, capazes de marcar uma virada na história do seu povo. E uma oração de tipo salmo, isto é, de tipo comunitário cultual, é aquela de Ana, grata a Deus pelo dom do seu filho Samuel. Muitas das suas ênfases encontram-se no Magnificat, o hino de louvor a Maria de Nazaré, que também é singular nos lábios de uma mulher. Bem, os exemplos dados falam de uma modalidade da oração: o louvor.
E realmente na história da salvação, nessa tipologia da oração, as mulheres se impõem. Gostaria de salientar que nós, cristãos, tradicionalmente proferimos diferentes formas de oração.
Há um recolhimento para dialogar com Deus que acontece no silêncio interior. E isso por si só pode ser confiado a fórmulas já prontas, ou seja, é possível realmente estar na sua Presença, esvaziar-se, para ouvir a sua voz. Essa experiência, diferente e sempre singular, na realidade nunca diz respeito apenas ao indivíduo, porque o/a crente se coloca no corpo vivo daqueles que partilham a fé.
As religiões abraâmicas exaltam de uma forma ou de outra essa pertença comum, que pode torna-se uma tela identitária hostil aos outros, mas a montante fala de uma fé ligada a um encontro e a um chamado. E é esse chamado e esse encontro que a liturgia cristã atualiza na convergência de todos, homens e mulheres, numa celebração comunitária fecundada, no Espírito, pela escuta da Palavra de Deus e pela partilha da Carne e do Sangue do Filho. Na celebração da Eucaristia não há diferença entre os membros. Não no sentido original de reunião e de participação. Se há diferença, é em relação às funções, ainda que – não esqueçamos – a liturgia é, segundo a etimologia, ação do povo.
Essa carga e força originais, que levaram a comunidade cristã a recordar a doação do Senhor por ela, cedo experimentaram uma total disparidade de gênero no que diz respeito às funções desempenhadas nela por toda a assembleia. E é nesse ponto – do ponto de vista da comunidade cristã – que a oração das mulheres se tornou diferente daquela dos homens. Poderíamos dizer de forma mais geral que a oração dos batizados e das batizadas tornou-se diferente daquela dos ministros ordenados, todos do sexo masculino.
A perda de consciência do mistério celebrado, a sua sacralização levou as mulheres a procurarem os seus próprios espaços e lugares. Na maioria dos casos o encontro com Deus se deu nas formas elementares da oração vocal e, dispondo dos instrumentos, na meditação e nas múltiplas formas de experiência mística. Não poucas mulheres alcançaram níveis elevados e os seus escritos continuam sendo pedras angulares da espiritualidade cristã.
No entanto, não se pode dizer que às mulheres, com exceção das freiras, tenham sido oferecidos os instrumentos necessários. A oração cristã, de fato, alimenta-se em primeiro lugar da Palavra de Deus, porque é através dela que a própria oração realiza o seu estatuto de dom, de aliança e de comunhão (cf. Catecismo da Igreja Católica, 2559-2565).
Teresa de Ávila ainda lamentava a falta desse alimento vital e Teresa de Lisieux, séculos depois, não tinha uma Escritura para poder ler, mas apenas uma antologia. Esta última declarava sua intolerância à oração puramente vocal, mesmo que fosse comunitária.
As monjas de tradição beneditina tiveram o privilégio de aceder à santificação do tempo através daquela que para nós hoje é a Liturgia das Horas. Isso fez diferença na qualidade de sua oração comunitária e pessoal. Permitiu-lhes saber ler e escrever, condição sine qua non para a oração coral, modulada principalmente na recitação dos salmos.
E, apesar disso, em geral, as mulheres foram impedidas de intervir na elaboração da oração litúrgica. Digamos que elas se adaptaram ao esquema desenvolvido pelos homens. Existem pouquíssimas exceções. Por exemplo, devemos até hoje à monja Cássia um hino cantado na Igreja Bizantina na Quarta-feira Santa; sabemos que Hildegarda de Bingen escreveu o Ofício para o seu mosteiro, incluindo a música. E também foi importante o apoio oferecido a quem, do sexo masculino, por dotes e condição, podia dar vazão ao seu talento criativo. Penso no Pange Lingua escrito por Venâncio Fortunato para Santa Radegonda, a cujo mosteiro chegou como presente uma relíquia da maneira da Cruz... Ainda cantamos esse hino na Sexta-Feira Santa.
É claro que ignoramos muitas coisas. E isso também se aplica a tempos mais próximos de nós. Poucos sabem sobre contribuição de algumas mulheres para a tradução dos textos litúrgicos reformados após o Vaticano II. O mesmo vale para o Livro das Bênçãos, ou para rezas ou orações dos fiéis elaboradas, naquele contexto. Por exemplo, uma mulher foi responsável pelo elegante latim da “Oração de Bênção da Igreja” no rito renovado do mesmo nome. No entanto, quando falamos de reforma referimo-nos a décadas que já se foram.
A aceleração cultural faz com que o que foram conquistas pareçam pré-históricas. Hoje as mulheres sofrem uma verdadeira marginalização litúrgica. Além disso, elas não se reconhecem integralmente nos ritos e na linguagem que os suporta. Se é verdade que a liturgia é gratuidade e jogo, não se pode dizer que nela o as mulheres experimentam nem uma nem outro.
O que falta é aquele envolvimento total, aquela assunção plena de ritos e símbolos, falta a alegria, a gratuitamente que deveria apoiá-los. Resumidamente. Não basta dizer: irmãos e irmãs. Não é mais suficiente para nós - se é que alguma vez foi suficiente. A liturgia deve abrir espaço para o nosso corpo, a nossa carne. E nem gestos nem palavras podem continuar a ofendê-la, como ainda hoje acontece devido à persistência de uma linguagem e de uma expressividade patriarcal e sexista.
Ao desenvolver essa consciência, as mulheres estão agora produzindo liturgias alternativas – muitas delas agora as acompanhamos online. E não se trata de atos de rebelião, mas de espaços na sua medida em que a sua peculiaridade não é ofendida nem negada. Por outro lado, nos primórdios da comunidade cristã, não abriam as suas casas para acolher a comunidade? Elas mesmas não presidiam a reunião, se era evidente a sua autoridade, o seu esforço construtivo e acolhedor? Não exerciam o carisma de profecia, do louvor, das línguas, da consolação, do discernimento e outros ainda? E toda essa riqueza não se exprimia primeiramente na reunião comunitária para a Ceia do Senhor? Se o pecado do sexismo insinuou-se até mesmo nas Escrituras, espelho daquela “condescendência divina” (cf. Dei Verbum 13), que desde sempre marca a Palavra de Deus, não é tarefa nossa hoje implementar aquelas medidas corretivas que devolvam não apenas às mulheres, mas também a homens e mulheres aquele gosto alegre e jocoso do encontro para render louvor a Deus?
Por volta de 2000, sem presunções feministas militantes, elaborei uma Liturgia da Palavra coletando as vozes de oração das mulheres assim como as Escrituras as transmitiram para nós. Uma discípula piedosa, Irmã Agar, musicou as letras. A gente se reunia. Lia-se uma passagem das Escrituras que introduzia o cântico. Era cantado com gestualidade e os instrumentos que eram lembrados no texto sagrado. Depois de um breve silêncio, seguia-se uma oração, expressiva à sua maneira e que atualizava a leitura e o canto. O último a ser cantado era o Magnificat.
A pessoa que presidia, obviamente uma mulher, encerrava com uma prestação de louvor, abençoando a Deus e aos presentes, homens e mulheres. Nós a realizamos na Pontifícia Faculdade Teológica “Marianum” à margem de uma conferência. E eu sei que foi celebrada em outros lugares. Por diversos motivos nunca foi publicada e até hoje me arrependo.
Nada de revolucionário. Nem revolucionárias, nem nada ofensivas são as liturgias que constelam a experiência dos grupos feministas. Nelas a atenção é direcionada para o envolvimento pleno, para a participação corporal e para a gestualidade. Aliás, elementos também presentes noutros grupos ou noutras realidades atentas à identidade e às demandas dos sujeitos, homens e mulheres, e das Igrejas em que vivem.
O inegável desconforto das mulheres incentiva certamente a procura de modalidades alternativas e, portanto, também tem impacto nas nossas celebrações desgastadas e monótonas. No entanto, alerta para a urgência de se engajar na reforma litúrgica. Como construímos as igrejas para Deus, mas sobretudo para nós, isto é, para experimentar a alegria do encontro entre nós e com Deus. Da mesma forma, a liturgia é para nós antes mesmo de ser para Deus. De forma gratuita e jocosa nos colocamos uns diante dos outros/as e na sua presença, respondendo ao seu dom. Eis que a gratuidade e o dom constituem a marca das nossas comunidades e da oração. As mulheres têm a função de estimular as comunidades a redescobrirem aquilo que as faz existir: a Palavra de Deus acolhida e celebrada, vivida e testemunhada.
Palavra cuja resposta, justamente, é a oração, diálogo com Deus, mas nunca sem os outros.
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Como oram as mulheres. Artigo de Cettina Militello - Instituto Humanitas Unisinos - IHU