A reflexão bíblica é elaborada pelo padre jesuíta Adroaldo Palaoro, comentando o evangelho da Quarta-feira Santa, ciclo A do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Mateus 26,14-25.
“Ao cair da tarde, Jesus pôs-se à mesa com os doze discípulos.” (Mt 26,20)
Dá muito o que pensar o significado antropológico da mesa, que tem um papel tão central na construção das nossas humanidades e é realmente, na diversidade de suas formas, medidas e feitios, um objeto transcultural. Não é por acaso que Jesus colocou a mesa no centro da celebração da fé cristã.
Por que é que existe a mesa? Por que é que nos sentamos à mesa uns com os outros para tomar a refeição? Não será apenas por razões materiais ou econômicas, mas sobretudo por razões de vida. Sentamo-nos juntos em torno do alimento, porque nos alimentamos não só de comida, mas da partilha dos dons de cada um. Temos uma verdadeira necessidade da presença, da hospitalidade, da palavra, do cuidado e do afeto dos outros. À volta de uma mesa reconhecemo-nos melhor, alimentamo-nos mutuamente com um alimento invisível: o da relação (cf. Elogio da sede, de José Tolentino).
Uma das chaves de compreensão da pessoa de Jesus é a relação d’Ele com a “mesa da refeição”.
Ele revelou uma grande liberdade ao transitar por diferentes mesas; mesas escandalosas que o faziam próximo dos pecadores, pobres e excluídos. Ele não só transitou por tantas mesas, mas instituiu a grande mesa para a festa, a intimidade, a memória: a “mesa da Ceia Pascal”.
Jesus descobriu junto à mesa o melhor jeito de se encontrar para celebrar a vida, reconstruir relações mais saudáveis, romper as distâncias.
Em muitas culturas, a mesa da refeição é, ainda, o lugar mais importante da casa.
Para a “mesa da refeição” convergem todos os encontros; ela é o centro para onde se voltam mentes e corações e não apenas estômagos vazios; ela se torna o grande palco da vida e, nesse palco, todas as histórias pessoais e coletivas são recontadas, revividas e revitalizadas, dando sentido à vida cotidiana.
Em cada encontro uma surpresa, uma riqueza revelada para os que se aventuram tomar parte dela.
O “pôr-se-à-mesa” é mais do que aproximar-se da fonte da alimentação. É procurar a comunhão, a união, o convívio. Por isso, os que se assentam junto à mesa são “comensais” (companheiros de mesa).
A mesa tem o poder de romper fronteiras e hierarquias, pois quem dela se aproxima é bem-vindo por ser pessoa, gente, e não por ostentar títulos, status... A mesa é sempre oblativa, acolhedora, congrega as diferenças, quebra as hierarquias sociais...
A mesa funciona, então, como oportunidade ou lugar privilegiado, onde se elabora e se vive um encontro de profundidade. A mesa faz a comunidade, reforça a fraternidade, intensifica a amizade.
Podemos afirmar que, partindo da “espiritualidade da mesa”, em torno do gesto de comer em comum, desvelamos um “modus vivendi” de um determinado povo, sua vida, seus hábitos e seu jeito de ser.
A nossa conduta numa refeição revela também o nosso agir social. Nesse encontro, nós comensais, vamos tecendo relações sociais de diálogo, de projetos, de compromissos...
Em última instância, o que nos reúne junto à mesa não é o simples fato de poder comer; existe, antes, algo que nos mantém unidos: um ideal, uma amizade, um laço de família, uma função comum, um acontecimento... Supõe-se que reine entre nós um conhecimento mútuo, ou ao menos um desejo profundo de estreitar laços de amizade.
Nós nos aproximamos da mesa como quem está diante de um território sagrado, porque sagrados são os alimentos e quem deles se alimenta.
À “mesa da refeição” encontramos pessoas abertas, lúcidas de seu momento, que não se deixam abater pelos fracassos e nem mesmo pelo sofrimento. São pessoas capazes de partilhar, de falar de si, de suas alegrias, conquistas, sonhos, mas também de suas dores, desânimos e cansaços. Essas pessoas buscam, junto à mesa, alimento para a vida; elas têm fome de algo para além do pão da mesa. “Não quero a faca, nem o queijo. Quero a fome” (Adélia Prado).
No relato da Última Ceia, Jesus nos convida a adentrarmos no território sagrado, consagrado, chamado “mesa da refeição”. Tão rica é essa mesa que sua espiritualidade, vista como manancial da vida, não exclui nenhum momento: situações tristes, felizes, momentos de sofrimento, de luta, de vitória...
Nesse espaço, onde o Eterno quer habitar, é que encontramos o bálsamo e o alívio para o nosso corpo e nossa existência psíquica e espiritual. Nessa fonte sagrada, o sofrimento pode ser compartilhado, a tristeza transformada em alegria, as trevas em luz, o desejo em realidade, a esperança pode ser reacendida.
É nessa mesa fecunda de alimentos que o Sagrado irrompe em meio aos nossos esquemas prévios, nos fazendo diferentes, separados da torrente massificante do dia a dia.
Ela nos sacia para voltarmos ao cotidiano, convictos de que não vivemos fechados nele, mas somos seres de passagem, em constante êxodo: “passar” da mesa de refeição como lugar onde matamos nossas fomes à mesa de refeição como espaço do sagrado. A mesa, com seus cantos e encantos, tem uma mística; ela carrega, nas suas entranhas, a força de uma peregrinação, o impulso para fazer caminho.
A mesa é ponto de chegada e ponto de partida; é “lugar” de celebração e de envio, de festa e de missão.
Ao redor da mesa nos movemos, somos, existimos e nos descobrimos para além de nós mesmos.
É ela que nos humaniza, nos expande em direção aos outros, nos faz solidários e sensíveis, sobretudo àqueles que não tem acesso à mesa da vida (os famintos, os pobres, os excluídos...)
Há personagens do Evangelho cuja notoriedade ultrapassa as margens do texto onde são recolhidas suas atuações. São imagens históricas de alcance universal, tais como Lázaro, a Samaritana, Jairo, Maria Madalena, Zaqueu, Pedro... Junto a estes personagens de primeira fila, encontramos outros, anônimos e sem protagonismo, presentes nas estantes menos visíveis do relato evangélico. Um dos mais desconhecidos é o homem que emprestou sua casa para que Jesus celebrasse a Páscoa com seus discípulos.
Na maioria das vezes ele passa desapercebido. Sua passagem pela cena é vista, mas não lhe é dada atenção. Uma aparição tão passageira no texto que a maioria dos leitores não se fixa nele, apesar de ser citado nos três primeiros evangelhos. Por isso, ele se revela como inspirador a todos nós neste dia.
O saber estar “à sombra” para não fazer sombra a outros, a atitude de acolhida, a preocupação pelo bem-estar dos demais, a prontidão e a disponibilidade em abrir sua casa, o agir com a liberdade de quem sabe o que faz, colocando-se à inteira disposição dos outros, com total generosidade: estas são as qualidades com as quais o “um certo homem da cidade” entrou em sintonia com o desejo de Jesus em celebrar a Páscoa com seus discípulos. No seu anonimato ele deixa transparecer sua “existência eucarística”: ele nos revela uma presença surpreendente e servidora, presença que aponta para uma outra presença, a de Jesus.
Na realidade, ele foi o verdadeiro discípulo servidor, dando sua contribuição decisiva ao mistério da salvação. Presença anônima, mas comprometida; presença que é “música calada” no seu cotidiano, uma presença que se manifesta na ausência de recompensa ou de interesse próprio.
É urgente sermos criativos o suficiente para superarmos os desafios, na esperança de que venha o despertar da “nova mesa”, com gosto de pão, de vida fraterna, de compromisso...
Mesa criativa, solo de onde brota o alimento material, emocional, psíquico e espiritual em suas múltiplas formas, cores, aromas e sabores do Reino do Pão e da Festa da Vida.
- Que lugar tem a mesa da refeição no cotidiano de sua vida familiar, comunitária...?