A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho da 2ª-Feira da Semana Santa, ciclo A do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de João 12,1-11.
“Seis dias antes da Páscoa, Jesus foi a Betânia...; ali ofereceram-lhe um jantar” (Jo 12,1-2)
Jesus, durante sua vida pública, desencadeou um “movimento de vida” e vida em plenitude. E este “movimento humanizador” se visibilizou, sobretudo, junto às mesas da refeição e da partilha do pão.
Jesus entendia e celebrava as refeições como sinal da presença do Deus Pai providente, que alimenta e cuida de todos os seus filhos e filhas; mas deviam ser refeições abertas aos pobres e famintos, sem distinções nem exclusões. Jesus comia e bebia em meio a um mundo injusto, para iniciar um caminho de revelação do Deus do Reino, partilhando o pão e o vinho com os necessitados, na alegria e na solidariedade.
A “mística da mesa” não só nos recorda o modo original de Jesus agir, mas também que é um chamado à comunidade cristã para que seja comunidade inclusiva e aberta, onde as diferenças são respeitadas, os espaços de igualdade são construídos, os dons do alimento são partilhados, onde o Deus gratuito e cheio de amor e perdão é proclamado. Nela não haverá estrangeiros nem imigrantes, não haverá primeiros nem últimos, não haverá resquícios de gênero nem poderes que excluem, não haverá famintos...
Se não nos assentamos à mesa com o outro, estamos perdendo a possibilidade de saborear os alimentos humanizadores: encontro, alegria, partilha, hospitalidade, festa, vida... Tudo aquilo que acontece na alegria, tudo aquilo que é distribuído com vida, com sentido e sentimento, alimenta algo em nós, ou alguém fora de nós. Multiplica-se, triplica-se os cestos de pão.
Na mesa e na partilha do pão “cristificamos” e “sacralizamos” os frutos da terra e do trabalho humano. Por isso, os alimentos fornecidos pela natureza e dela extraídos pelo trabalho do ser humano, vêm carregados de tão rico simbolismo: quando postos à mesa significam a mãe natureza dadivosa e boa, criada por Deus e o trabalho do ser humano, que na mesa vem se alimentar para continuar a viver.
A relação de alteridade à mesa tem o poder de reconstruir laços quebrados, perdidos em nosso passado (mesa, lugar da memória); ela tem a força de reavivar os sentimentos soterrados pelos afazeres diários.
Esse caminho é busca, encontro e acolhida.
O mundo relacional de Jesus é amplo e diversificado; seus amigos e amigas se multiplicam a cada passo que dá. Um exemplo disso é sua relação com a família em Betânia. Betânia é para Jesus o lugar da acolhida, da hospitalidade, da escuta, da amizade, do pão partilhado e do serviço. Betânia é o ícone de uma comunidade onde se faz visível todo o mistério de Deus revelado em Jesus: o lugar da morte e da ressurreição, o lugar da Páscoa que antecede a Páscoa do Filho de Deus.
Embora não podiam fazer nada para mudar a situação de perseguição por parte das autoridades, os irmãos estão totalmente presentes e solidários a Jesus; acolhem o que vai acontecer e o acompanham. Por isso, encontram motivo para manifestar alegria e agradecimento, através de um jantar festivo.
Eis algumas características originais do “espaço Betânia” e que poderiam inspirar nossos espaços comunitários e familiares:
- casa de hospitalidade e de escuta, onde todos somos irmãos sentados à mesma mesa, junto ao Mestre, o único Senhor, em quem se centra nossa hospitalidade e nossa escuta;
- lugar de descanso, como foi para Jesus, onde encontra humanidade, calor humano, compreensão, alívio;
- lugar de passagem, onde se recupera forças para viver situações de Páscoa;
- Betânia é lugar de interioridade, onde os processos de humanização são elaborados no mais profundo, onde surge a humanidade nova, atitudes mais humanas e humanizantes; lugar onde pulsa a humanidade com toda sua força e onde circula o sangue-vida;
- Betânia é o lugar de uma mística nova: a mística da amizade com Jesus e que se visibiliza na relação e no acolhimento de cada membro da comunidade. Betânia nos desafia a gerar um novo estilo relacional que seja capaz de evidenciar o Reino aqui e agora.
Marta, Maria e Lázaro revelam solidariedade no momento mais denso e dramático pelo qual Jesus está atravessando (véspera de sua paixão e morte).
Marta e Maria fazem com Jesus o que Ele logo fará com seus discípulos no momento de sua despedida: os servirá à mesa e lavará seus pés.
Marta aprendeu a passar do “modo-de-ser-trabalho”, quando reclamava a intervenção de sua irmã em S. Lucas, ao “modo-de-ser-cuidado”. O cuidado se dá em um contexto de relações de amor e de amizade. Ela expressa a atitude de desvelo, inquietação e preocupação pela pessoa amada.
Maria, por sua vez, apaixonadamente agradecida, surpreendida pela qualidade de amor que experimentou, expressa, num gesto, o que muitas pessoas desejam viver e que o mesmo Jesus realizará em sua última ceia. Ela, em um só gesto, vive e torna visível o que o coração do evangelho nos indica:
- amor apaixonado: a ternura e o carinho desta mulher são indescritíveis; aqui não há nenhum indício de exibição, mas de respeito infinito;
- serviço entranhável como derramamento de todo seu perfume, de todo seu amor, de seu agradecimento. Derramamento de entrega gratuita sem medida. Gesto reprovado por aqueles que não sabem amar e com sua rigidez legalista julgam e condenam. A generosidade desta mulher é liberdade absoluta para amar até o extremo, num esvaziamento de si através do perfume derramado.
Jesus acolhe o gesto, sintoniza-se com a sensibilidade de Maria num diálogo sem palavras. Isso permite compreender a maravilha de nossos sentidos. Cada um deles percebe uma dimensão da realidade e responde ao que percebe, mas todos se unem e sincronizam para uma melhor percepção e para expressar o que sentimos para com ela.
Onde Jesus “cheirou” e acolheu compreensão da parte da mulher, solidariedade com este momento decisivo de entrega, outros cheiraram “desperdício”. Judas não soube “cheirar” o perfume e o que significava, só seu preço. Em muitas outras ocasiões, Jesus olhará a realidade e verá em sua profundidade dimensões que os outros não são capazes de ver. Daí sua capacidade de recriar a realidade e convertê-la a partir de dentro.
Criar Betânia em nosso interior e em nossas comunidades: lugar da mesa compartilhada, da unção e do cuidado; ambiente que exala perfume do amor, gratidão, amizade, confiança...
Com a imaginação sinta-se impulsionado(a) a estar em Betânia com Jesus, com Lázaro e com suas irmãs, e com aquelas pessoas que fazem parte de sua comunidade;
- Tome consciência que acompanhar uma comunidade implica ser “mirróforo(a)” (portador do perfume), para criar um ambiente que exala perfume da amizade, da gratidão, do amor...
- Procure identificar-se com os personagens desta cena:
+ Com Jesus Mestre, queira fazer-se mais humano e próximo daqueles que compõem sua comunidade.
+ Com Marta, queira deixar transparecer que o seguimento se expressa no serviço gratuito;
+ Com Maria, queira quebrar os frascos e derramar o perfume da escuta e do amor.