08 Novembro 2023
"O desejo explícito de tornar operacionais as escolhas conciliares, desempenhou um papel nessa escolha. Espaço para leigos e para mulheres. Eu era mulher e leiga e tinha as qualificações necessárias", escreve a teóloga italiana Cettina Militello, vice-presidente da Fondazione Accademia Via Prechritudinis, em artigo publicado no caderno Donne Chiesa Mondo do jornal L’Osservatore Romano, novembro de 2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em 11 de outubro de 1962, enquanto corria para casa para ficar em frente à televisão e ali ficar durante horas observando o longo cortejo dos bispos que entravam na sala conciliar, certamente nunca teria pensado que aquele evento, entendido até certo ponto por uma adolescente rebelde, teria tido um impacto profundo na minha vida e mudado a face da Igreja. Nada seria como antes e um novo sujeito surgiria. Estou falando obviamente das mulheres teólogas e da teologia que teriam elaborado, na minha opinião o fato mais inovador e relevante na reflexão metódico-crítica sobre a fé nas últimas décadas do século passado e nas primeiras décadas do presente.
Embora condenadas ao silêncio e à invisibilidade, as mulheres já haviam se medido criticamente com a fé. Penso na Irmã Juana Ines de la Cruz que escolheu ser freira entre as “jeronimitas”, similares às damas do Aventino, alunas e colaboradoras de San Jerônimo. Sua ousada tomada de palavra havia comportado para si como para as outras mulheres a obrigação ao silêncio. Única saída, por seu próprio risco e perigo, a fala profética e a experiência mística, porém sujeitas ao escrutínio masculino clerical. As vencedoras foram Hildegarda de Bingen, Catarina de Siena e Brígida da Suécia, Domenica de Paraíso, Teresa de Ávila, Maria Madalena de' Pazzi... Outras pagaram com a vida - basta lembrar Marguerite Porete.
Apesar disso, as mulheres elaboraram uma teologia feminina, que floresceu sobretudo em contextos monásticos. Na transição para a era moderna, reivindicaram acesso às Escrituras, lidas por algumas nas línguas originais. Nessa trilha de douta aquisição da fé coloca-se a história de Elisabetta Cornaro Piscopio, a primeira mulher a pedir um diploma em teologia. Foi-lhe negada a partir da frase do apóstolo Paulo: calem-se as mulheres na Igreja. Contudo, foram forçados a diplomá-la em filosofia. Sua família era importante demais para opor uma recusa radical.
Demorou mais de dois séculos para que as mulheres obtivessem diplomas nas diversas disciplinas, última a medicina e ultimíssima a teologia. Coube a mim estar entre as primeiras na Itália a frequentar a faculdade. Era o outubro de 1968. Dois anos depois Maria Luisa Rigato foi aceita como auditora no Pontifício Instituto Bíblico enquanto Carlo M. Martini era seu reitor. No ano seguinte várias alunas estariam em todas as faculdades eclesiásticas romanas.
Em outros lugares isso aconteceu mais cedo. Menciono entre as primeiras a conseguir título a estadunidense Mary Daly e a alemã Elisabeth Moltmann Wendel. Esta última contava que não sabiam como indicá-la no diploma e escolheram a sábia fórmula de virgo sapientissima!
Ao mesmo tempo, as mulheres acederam às cátedras e concluíram pesquisas fundamentais de caráter histórico, patrístico e bíblico. Para a alemã Elisabeth Gössmann o revisor da tese apontou um vício geracional: havia nasceu cedo demais e, de fato, nunca haveria em sua pátria uma cátedra para ela...
Cheguei à faculdade de teologia já com formação em filosofia e realizei os meus estudos por quatro anos, obtendo o diploma. Pediram-me depois para continuar o ano de doutorado, e para a minha tese decidi estudar a concepção do feminino de João Crisóstomo, tendo me deparado no seu epistolário com a diaconisa Olimpíada. Eu subestimei a dimensão dos escritos e o percurso resultou lento. Até porque em 1974/75 fui chamado para lecionar introdução à teologia na Escola de Teologia para leigos da minha diocese. No ano seguinte eu lecionaria também eclesiologia e logo depois seria cooptada no Instituto Teológico São João Evangelista para a Sicília Ocidental. Em suma, eu teria ensinado os candidatos às ordens...
O desejo explícito de tornar operacionais as escolhas conciliares, desempenhou um papel nessa escolha. Espaço para leigos e para mulheres. Eu era mulher e leiga e tinha as qualificações necessárias. Ainda mais no começo da década de 1970 em Roma ensinavam teologia a italiana Nella Filippi e a australiana Rosemary Goldie, uma das 23 ouvintes do Concílio Vaticano II. A primeira, graças a um caminho que lhe permitiu acelerar os tempos, tendo obtido o doutorado foi convidada para lecionar cristologia. A segunda, chamada por reconhecida fama, era assim recompensada pelo papel perdido de subsecretária no Pontifícios Conselhos dos Leigos.
Noutras partes da Europa, as mulheres também começavam a ensinar. Em primeiro lugar a holandesa Katharina Halkes, devido à sua fama, foi chamada para a cátedra de feminismo e teologia da Universidade Católica de Nijmegen. Sem mencionar as muitas cujos estudos tiveram um impacto profundo na elaboração de uma teologia militante, marcadamente diferente daquela desenvolvida até ali pelos homens. Não mais uma teologia na qual a especificação “da mulher” tivesse um valor objetivo, mas uma teologia de mulheres (genitivo subjetivo) sobre a mulher ou simplesmente uma teologia elaborada por mulheres - cito em nome de todas a norueguesa Kari E. Børresen a quem devemos estudos fundamentais acompanhados de um léxico sugestivo e inédito.
No entanto, na Igreja nem tudo ia bem para as mulheres. Elas eram chamadas em causa nas três questões que Paulo havia advogado a si: ministério feminino, celibato eclesiástico, regulamentação dos nascimentos. O “não” mais surpreendente, mas que não encerrou o problema, foi aquele relativo ao ministério. Nesse interim, a Igreja esteve envolvida à sua maneira no ano internacional da mulher celebrado pelas Nações Unidas em 1975. O Vaticano também criou uma comissão de estudo que não levou a nada ou quase nada. Certamente duas mulheres foram proclamadas “doutoras da Igreja”, mas o próprio Paulo teve que se justificar diante do já citado ditado relativo ao seu silêncio na Igreja.
Permitam-me dizer que as mulheres corriam rápidas, mas a Igreja tinha dificuldades para atender às suas instâncias.
Alargava-se uma fissura difícil de sanar, apesar dos esforços em alguns parágrafos (números 34 e 35) da Exortação Apostólica Marialis Cultus de 1974. As teólogas atuavam uma escolha de campo feminista; abandonavam a teologia da mulher para assumirem o “pensamento da diferença” e a seguir, também prestariam atenção a todas as explicitações do pensamento feminista, até mesmo radical, discutindo ou adquirindo as teorias de gênero e as próprias teorias queer.
Esse diálogo laborioso, muitas vezes entre surdos, viu mulheres e Igreja em posições divergentes. Criticou-se à Igreja e ao seu Magistério nunca terem abandonado a chamada “mística da feminilidade” desenhando assim uma mulher irreal, inscrita em estereótipos erroneamente atribuídos à natureza. A questão tornou-se mais complicada durante o pontificado de João Paulo II. Seu “feminismo da diferença” de fato assumiu como emblema a sua capacidade de gerar e reconduziu a ela seu papel na sociedade como na Igreja. Ficou sem eco o trabalho titânico de desconstrução e reformulação da fé que era produzido pela reflexão feminista. Cito apenas como exemplo, nos Estados Unidos, Elizabeth Johnson, o seu Colei che è; sem esquecer Elisabeth Schüssler Fiorenza e seu In memoria di lei…
Quanto a mim, obtive o diploma em 1979. A Faculdade Teológica da Sicília estava para ser construída e a licenciatura já não era suficiente para fazer parte do quadro orgânico. Não me foi dada a titularidade da eclesiologia, mas da teologia do laicato. No entanto, continuei a ensiná-la com paixão crescente. As mulheres em Palermo multiplicavam-se e a segunda geração de pesquisadoras e docentes já assomava no horizonte. E, de fato, onde comecei, já está atuando a quarta geração.
As teólogas de hoje não têm as preocupações daquelas da primeira hora. Eu tive que me esforçar muito para poder ensinar abandonando uma linguagem “neutra”. Nos meus primeiros anos era necessário demonstrar estar à altura. A feminilidade tinha que ser mascarada de alguma forma…
Olho com alívio para as teólogas mais jovens que são sofisticadas, bonitas, mães, casadas... bem distantes do clichê assexuado da consagrada à ciência e interessada apenas nela.
Na Itália, a socióloga Chiara Canta dedicou um ensaio às teólogas da última década sugestivamente intitulado Le pietre scartate [As pedras descartadas]. E, recentemente, alinhou-se ao pensamento do Papa Francisco sobre as mulheres. Claro que a situação é diferente. As teólogas afirmaram o seu profissionalismo, dando vida a associações específicas, nacionais ou não - o CTI na Itália, por exemplo.
Mas também em outros âmbitos eclesiais as mulheres são mais visíveis. Contudo, permanecem questões não resolvidas, especialmente o ministério feminino. Permanece a misoginia clerical. Em suma, permanece um caminho difícil que nem uma certa presença pastoral nem o reconhecimento de Teresa de Lisieux e Hildegarda de Bingen como Doutoras da Igreja são suficientes para aplainar. Por exemplo, por que não reconhecer doutora Edith Stein? Mártir sim e ninguém o nega, mas também filósofa e teóloga, mas talvez por isso mesmo desarmante...
No entanto, olhando para as novas gerações sinto-me cheia de confiança e otimismo. A Igreja não considera ainda esse grupo tenaz como um tesouro precioso, mas confio em tempos em que isso acontecerá. É preciso mudar a forma de falar da fé, torná-la novamente sedutora. As teólogas podem fazer isso, na verdade já o fazem. É preciso abrir espaço para elas em todos os níveis. Para elas não é mais tempo de calar, mas de falar e ser ouvidas.
Cettina Militello é teóloga, vice-presidente da Fondazione Accademia Via Prechritudinis. Cettina Militello experimentou pessoalmente as novidades que o Concílio Vaticano II trouxe comportamento para as mulheres: foi uma das primeiras na Itália a ser admitida numa faculdade teológica, em 1968, e em 1975, entre as primeiras leigas a lecionar numa faculdade teológica (a da Sicília). Dedicou-se sobretudo à eclesiologia, à mariologia, ao ecumenismo, às questões femininas, à relação entre arquitetura e liturgia. Ela foi aluna e amiga de Rosemarie Goldie, uma das 23 madres conciliares.
Está entre as fundadoras da Coordenação das Teólogas Italianas, fundada em 2003. Editou “Il Vaticano ii e la sua ricezione al femminile”, Edb, que faz um balanço do Concílio a partir de uma perspectiva peculiar: a novidade conduziu à frente das mulheres. Os seus últimos livros são “Sinodalità e riforma della Chiesa. Lezioni del passato e sfide del presente”, publicado pela San Paolo Edizioni e “Le chiese alla svolta - Ripristinare i ministeri”, Edb.
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O avanço das teólogas. Artigo de Cettina Militello - Instituto Humanitas Unisinos - IHU