19 Outubro 2023
“É a parrésia da idade, estou muito bem”: Cettina Militello está feliz enquanto se prepara para comemorar seu último "ato acadêmico". Aos 78 anos, a primeira teóloga italiana a ensinar de forma estável numa universidade eclesiástica italiana, deixa também a direção do Instituto Costanza Scelfo, que ajudou a fundar há 40 anos, em memória de uma das suas primeiras alunas, falecida de câncer em 1983. Aos livros, às conferências e à recém-fundada Fundação Academia Via Pulchritudinis se dedicará a partir de agora em sua terra natal, a Sicília. Com uma nova leveza. Que a levou escrever, por exemplo, Sinodalidade e reforma da Igreja. Lições do passado e desafios do presente (em tradução livre, San Paolo), onde aborda muitos temas quentes no centro do debate sinodal, sem rodeios.
A entrevista é de Vittoria Prisciandaro, publicada por Jesus, outubro 2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Sempre escrevi pequenas coisas desse tipo, mas é uma questão de etiqueta institucional. Por 40 anos lecionei eclesiologia e sempre procurei não colocar o dedo nos olhos dos meus interlocutores, que me davam a possibilidade de ensinar. Desde que me deixassem falar, eu também teria usado o xador. Se você está dentro, tem que respeitar as regras, caso contrário tem que sair, mas nunca considerei fazer isso, mesmo nos momentos difíceis, quando a tentação era forte.
Por exemplo?
Uma das coisas mais chocantes foi a de não receber crédito, de ver que a minha opinião não contava. Principalmente nos primeiros anos de ensino. Se não tivessem admitido nas ordens algumas das pessoas que eu tinha reprovado, não teríamos tido certas formas de abandono sucessivo. Mas o fato de eu ser mulher fez com que outros critérios contassem. Sofri essa irrelevância sociocultural até alguns anos antes de deixar o ensino.
Isso também tem a ver com a sinodalidade: “Seria bom pensar na Igreja do futuro”, você escreve, “como realmente permeada pelo estilo e práxis sinodal”. O que falta hoje e como está se movendo este sínodo sobre a sinodalidade?
É necessária uma grande conversão, que exige passar de uma Igreja hierárquica, piramidal, clerical, a uma Igreja na qual todo o Povo de Deus seja sujeito, onde haja o reconhecimento dos carismas que cada um recebe do Espírito e, portanto, do serviço que cada um pode prestar. Hoje tudo está centralizado em sujeitos que aos poucos esgotaram as suas possibilidades. E isso resultou por um lado, numa asfixia do povo de Deus e, por outro, num “delírio de onipotência”. Ou seja, nós temos embusteiros do sagrado que praticamente se colocam no lugar de Deus, reescrevem os mandamentos e nos colocam perante os tristes espetáculos que estão diante de nossos olhos.
A participação de todo o povo de Deus nas deliberações, quaisquer que sejam, continua a ser um problema, também destacado pelo Instrumentum laboris. Como sair disso?
Uma das coisas que me escandalizou na confusão relativa ao Sínodo foi o questionamento dos bispos sobre a sinodalidade, se seria uma questão deles ou diria respeito a outros. Uma coisa é o Sínodo dos bispos, que Paulo VI quis como suporte ao exercício do primado, mas nunca conseguiu, porque depois tornou-se de fato uma assembleia que trata de problemas pastorais mais ou menos urgentes. Uma coisa é a sinodalidade, como estatuto do povo de Deus que é sujeito ativo da comunidade. Aos bispos cabe a categoria da "colegialidade", que a Lumen Gentium bem identificou e recolocou em voga, mas a sinodalidade não é colegialidade. Esta última diz respeito a poucos, enquanto a sinodalidade diz respeito ao povo peregrino, em êxodo. Povo em caminho, como nos diz a Bíblia, com direitos e deveres. A raiz batismal é prévia. Há um antigo axioma que remonta a Justiniano, que a Igreja adotou do ponto de vista da canonística: ‘O que interessa a todos deve ser deliberado por todos’. Entendo que é desgastante, difícil, mas é a isso que devemos almejar. Não é uma gentil concessão aquela pela qual os especialistas que participam no Sínodo dos Bispos podem votar. Agradeço ao Papa Francisco, porque com o novo regulamento do Sínodo ele desmanchou um tabu, mas esse não é o ponto. O povo de Deus deve ter uma palavra a dizer sobre discernimento e carisma e exercício dos ministérios.
Pensar em outras estruturas?
Vamos recomeçar dos chamados órgãos de mediação eclesial - conselhos pastorais, presbiterais - que o Ecclesiae sanctae, o decreto de implementação do Vaticano II, havia previsto. E que nós tornamos opcionais por não serem deliberativos. Um bispo pode ou não os ter. E mesmo que os tenha, seja o que for que decidirem, ele pode fazer o contrário. Mas o que isso significa?.
São órgãos que – você escreve – permaneceram no brejo do poder consultivo. Certamente é urgente verificar os locais da participação e adquirir outros mais. E, se possível, aprender a lição que nos chega das experiências de outras comunidades cristãs. O que você pensa a respeito?
Temos práticas de sinodalidade com as quais aprender. Por exemplo, a Igreja Valdense tem um organismo central, coletivo, que é o Sínodo, que acontece uma vez por ano. Os Valdenses são um pequeno número e podem se permitir isso, mas se nós descentralizássemos, se parássemos de centralizar tudo em Roma, e deixássemos que se cresça na periferia, então assembleia após assembleia, grupo após grupo, sairia algo novo. As nossas igrejas estão se esvaziando porque não apaixonamos mais ninguém, não somos mais sedutores. E uma das razões é que para a Igreja os fiéis não contam: não contam para os párocos, para os bispos, e para o Papa contam as periferias extremas...
Você destaca que a discussão sobre participação é descartada dizendo que o ordenamento da Igreja não é aquele democrático. Mas acrescenta que a Igreja sempre absorveu das culturas do tempo os seus esquemas de governo.
Estamos perante um modelo emulado primeiro do império, depois, do feudalismo, ao qual foram acrescentadas as características da monarquia absoluta, com uma sequência de gestos e palavras que se pretendem irreformáveis.
Por quê?
O papado assumiu essa forma de se compreender que é aquela do século XIX. E estamos presos ali. O pobre Papa João XXIII e o Concílio tentaram dialogar com a modernidade, mas nunca ocorreu uma conversão real. Mesmo aquele grande Papa que foi Paulo VI interpretou o papado à maneira de seus antecessores. Sem falar de João Paulo II. A democracia, no entanto, sempre foi praticada pelos nossos mosteiros, o capítulo significa que toda a comunidade intervém e discerne. Há um problema de competências que devem ser reconhecidas; não estou dizendo que todos valemos um, mas todos juntos valemos mais que um. E às vezes o Espírito sugere palavras-chave aos pequenos. Por que vamos nos assustar?.
Sim, por quê? O que é que assusta?
A perda de um poder patriarcal, clerical, hierárquico. Esse é o problema. A Igreja é a única estrutura ocidental que não larga o patriarcado. O fantasmagórico concílio de Jerusalém “o Espírito Santo e nós”, os outros concílios, tentaram avançar laboriosamente juntos, mas no final decide-se por maioria. Poderíamos ter dado aulas de democracia, se nos tivéssemos libertado do feudalismo e da monarquia absoluta. Quando se pesquisa na internet ‘Santa Sé, orientação constitucional’, a resposta é ‘monarquia absoluta’. Não muda a situação ir morar em Santa Marta. Receio que o Papa não assuma seriamente e imediatamente o problema do colégio eletivo. Tudo o que ele tentou fazer iria derreter como neve ao sol sem uma reforma do colégio eletivo. É preciso suprimir a figura dos cardeais ou, se permanecerem, devem ser durante munere, pessoas investidas de responsabilidades eclesial em nível das Conferências Episcopais, que têm poder eletivo pelo período em que atuam, coadjuvadas por especialistas, leigos e leigas, religiosos e religiosas de reconhecida competência, como acontece no Concílio. E devem ser pessoas que vivem a descentralização. A Cúria Romana não pode decidir sobre os bispos, sobre como devem ser formadas as escolas ou o clero, sobre como devem mover-se as Igrejas de nova ou antiga evangelização.
Poderá o próximo Sínodo dar essa virada, ajudar naquela conversão de que você estava falando?
Receio o chamado funil. Poderá o Sínodo dos Bispos, mesmo que estendido por dois anos, escapar à rede em funil que - precisamente por ser centralizada e burocratizada - extingue as diferenças e, no final, arrisca pouco discernir e pouco propor? Precisamos de uma vontade partilhado de reforma.
O que impede o sacerdócio ordenado feminino na Igreja Católica?
Nada, é um problema cultural que estupidamente consideramos dogmático, porque às vezes para justificar a cultura a dogmatizamos. O discurso sobre o setor dogmático precisa ser todo revisto. Em muitas coisas atribuímos um valor irreformável a modelos retirados da sociedade e da cultura dominante. Que diferença existe entre homem e mulher? Antigamente, as mulheres eram excluídas ratio servitutis, porque pertenciam àquela classe social, não muito diferente dos escravos e das crianças, que não tinha direitos civis. Hoje que as mulheres têm direitos, o que significa dizer que ‘Cristo só pode ser representado por homens?’. A Igreja é composta apenas por homens? O sexo é o fator discriminante? Quem nos diz que essa era a vontade do Senhor, quando sabemos que os seus seguidores eram homens e mulheres?.
Você dizia as mesmas coisas antes de maneira mais suave?
Hoje sou livre, não tenho que seguir a etiqueta institucional. Por outro lado, todos sabem que amo a Igreja, estou nela com paixão, tenacidade, anseio. Agora, tendo a possibilidade, devo usar a parrésia, chamar as coisas pelo seu nome. Espero que o Senhor me faça fazer isso, se não por muito tempo, pelo menos de forma eficaz.
Que conselho você gostaria de dar às mulheres que se obstinam no estudo da teologia?
Resistir, resistir, resistir... Estudar, estudar, estudar... Não desistir. Meu ideal é que todos os batizados e batizadas estudem teologia, e depois se analise o problema do ministério. O estudo não é funcional para o ministério, mas para dar razão à esperança que está dentro de nós. Depois aparece o problema do que fazer com o que foi estudado. O conhecimento nos torna livres. Democracia também significa isto: não deixar na ignorância, dar as ferramentas para conhecer e poder exercer o discernimento.
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Igreja, é hora de uma grande conversão. Entrevista com Cettina Militello - Instituto Humanitas Unisinos - IHU