05 Setembro 2023
"As periferias não são apenas países distantes, lugares pouco conhecidos. As periferias geográficas são também existenciais, lugares onde vive uma humanidade abandonada, marginalizada e descartada. Separadas por barreiras que muitas vezes se transformaram em muros. Em vez disso, justamente hoje oferecem novos horizontes. São elas que mostram e podem mudar uma mentalidade social e cultural e sobretudo uma visão da fé", escreve Ritanna Armeni, jornalista, apresentadora de TV e feminista italiana, em artigo publicado no caderno Donne Mondo Chiesa, do jornal L’Osservatore Romano, de setembro de 2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Vocês sabem que o dever do Conclave era dar um bispo a Roma. Parece que os meus irmãos Cardeais foram buscá-lo quase ao fim do mundo… mas… aqui estamos”.
É a primeira saudação do Papa Francisco como Pontífice. É o início de uma revolução pastoral. Francisco quer ressaltar que o novo papa vem de uma terra distante, de um lugar periférico, às margens do centro que orienta e dirige a Igreja. Em comparação com Roma que sempre foi a capital, com uma Europa berço dos valores da cristandade e com um Ocidente que se construiu sobre tais valores.
As primeiras palavras do novo papa à multidão na Praça de São Pedro, que esperava sob uma fina e insistente chuva de março pelos resultados do conclave, ouvidas novamente depois de mais de dez anos de pontificado, assumem um significado mais amplo. Não apenas reveladoras de uma emoção. Não exclusivamente expressão de modéstia e surpresa, mas anúncio e visão. O primeiro papa não europeu da história da Igreja, mas que era filho de imigrantes europeus, ressaltava a sua origem das margens do mundo, dos lugares que não importam ou pouco importam. Indicava um caminho. Se o conclave tinha escolhido um papa - é o que hoje nos dizem as suas palavras - buscando-o do "fim do mundo", aqueles lugares teriam deixado de ser periferia, teriam superado limites e fronteiras, teriam se tornado centro da Igreja. E dez anos depois podemos dizer que a teriam alagada, mudada, restituído vitalidade. Numa alternância de ação centrífuga, com a belíssima imagem da Igreja em saída, e força centrípeta, com a igualmente eficaz imagem de Igreja em escuta. É significativo que a grande maioria dos 21 novos cardeais nomeados em Julho de 2023 venha das periferias do mundo.
As fronteiras estão caindo de um lado de do outro. Os muros são escalados deste e do outro lado.
Poderá a periferia finalmente tornar-se central, poderão as margens adquirir um protagonismo e se expandir a ponto de invadir o centro e tornar-se um todo com ele? Podem mudar a Igreja, renová-la? E hoje por quem são constituídas as margens? Quem são os protagonistas que da periferia anunciam uma mudança?
Essas são as perguntas que ele se fez e que foram feitas por Donne Chiesa Mondo. Pensando sobre os diferentes conceitos de “periferia”: geográfica, existencial, espiritual e religiosa; aos quais nós adicionamos “de gênero”.
Existe, sem dúvida, uma periferia geográfica e global que pressiona as fronteiras. Os países de um mundo que até pouco tempo atrás eram apenas para serem educados, deviam limitar-se a conhecer a fé que os outros haviam trazido, aceitá-la e absorvê-la. Com os seus dogmas, as suas certezas, os seus hábitos, as suas liturgias. A força vital vinha do centro e foi durante anos distribuída de forma mais ou menos benevolente aos últimos da terra, quer habitassem as florestas da Amazônia, as terras áridas da África ou as favelas asiáticas.
Um caminho em que a Igreja por vezes se confundiu ou, pelo menos, não se distinguiu suficientemente, com a cultura do Ocidente do mundo, mesmo - num passado distante - quando esta coincidia com a prevaricação militar e política. Hoje são precisamente as periferias que dão nova vida ao centro, são elas que indicam um novo percurso de fé, que noutros lugares se tornou morna e distraída.
Latino-Americana de Aparecida reafirmou com força e de maneira inequívoca “a opção preferencial pelos pobres e excluídos”. O então Cardeal de Buenos Aires Jorge Bergoglio foi o presidente da Comissão para a redação do Documento Final. Era o documento de “uma Conferência subcontinental importante, mas relativamente pequena” (cf. o jesuíta Diego Fares em La Civiltà Cattolica, 2017). Hoje a Igreja interroga e é interrogada por todas as periferias existenciais presentes em todas as partes do mundo: sem-teto, refugiados, emigrantes, refugiados políticos, doentes, presos, desempregados, discriminados com base na religião, na fé, nas opiniões, no gênero...
Há outro momento significativo. O Sínodo de 2019 era “pela Amazônia”, mas ficou logo evidente – e podia ser lido no site do Sínodo desde o ano anterior – que o “grande projeto eclesial, civil e ecológico que busca superar fronteiras e redefinir linhas pastorais, adaptando-as aos tempos contemporâneos” era um estímulo para toda a Igreja: “embora o tema se refira a uma região específica, como a Pan-Amazônia, as reflexões propostas vão além do território geográfico, pois abrangem toda a Igreja e referem-se ao futuro do planeta”.
Aquele Sínodo trazia ao centro da atenção universal os problemas de uma Igreja distante, que em Roma tornavam-se o problema de toda a Igreja e falavam ao mundo.
O drama da Amazônia destacava o drama do nosso estilo de vida. E desde aquele Sínodo, em que até fisicamente a periferia vinha a Roma, chegaram reflexões e decisões sobre aspectos que são importantes para as mulheres, muitas vezes duplamente marginalizadas, na Igreja e na sociedade, como as ministerialidades. Mesmo com algumas decepções.
Mas é um caminho que não parou. Em junho passado, a equatoriana Patricia Gualinga, líder Kichwa dos Sarayaku, a brasileira irmã Laura Vicuña, indígena do povo Kariri e a peruana Yesica Patiachi, do povo Harakbut, representantes da Conferência Eclesial da Amazônia e da REPAM, foram recebidos em Roma pelo Papa. Falaram sobre meio ambiente e sobre as responsabilidades do mercado na destruição da criação. Também falaram sobre ministérios das mulheres na Igreja. Elas haviam pedido o encontro ao Pontífice.
A Europa, por outro lado, vê a sua vitalidade religiosa diminuída. De forma superficial fala-se de uma periferia da fé. França, Itália, Alemanha, Espanha, que construíram o catolicismo, por séculos centros propulsores da cristandade, hoje parecem convertidos a um credo econômico e social que criou barreiras e exclusão, que isola. E que deixou de lado a espiritualidade e a fé.
A fé nos países pobres nasce, ao contrário, da riqueza da relação com o outro, da sua imprescindibilidade para superar as dificuldades do viver. Estão no fim do mundo, mas também de lá conseguem falar, dar nova vida às palavras do Evangelho. Oferecer novos horizontes. Finalmente tomar a palavra. Da África, da Ásia imensa, das Américas – mesmo aquelas aparentemente ricas, mas que vivem os dramas devastadores dos de periferias urbanas e existenciais: uma força centrípeta parte das fronteiras e move a Igreja. Que tem uma oportunidade extraordinária de aprender e se reconstruir.
Imigrantes, mulheres e homens que deixam os seus países na periferia do mundo pedem uma existência melhor, mas também têm a oferecer a sua experiência de vida e de fé, uma força inovadora. Não intrusos a serem afastados e nem mesmo mão de obra barata. Mas portadores da vitalidade de uma fé que se desvaneceu nos nossos países, de novas soluções de convivência.
“Cada vez mais experimentamos como a presença de fiéis de várias nacionalidades enriquece o rosto das paróquias e torna-as mais universais, mais católicas", ressaltou Francisco. A irmã Elisa Kidané, nascida em Segheneiti, na Etiópia, comboniana, por muitos anos na América Latina, há alguns anos em Roma, gosta de repetir: “agora sou missionária na Itália”.
Pode-se falar de mulheres na periferia da Igreja? Pode-se falar de não relevância, de marginalidade, de falta de protagonismo numa Igreja que preservou nos milhares de santas e beatas a presença, a história e a memória das mulheres, que todos os dias e em todas as partes do mundo as celebra nas paróquias, nas ruas, nas comunidades? Uma Igreja que colocou o culto a Maria no centro da oração, da arte, da redenção? Pode-se falar de marginalidade pensando às tantas que construíram tenazmente uma sua presença mesmo numa instituição tão visivelmente masculina?
Ou às religiosas e monjas protagonistas cada vez mais importantes da vida eclesial?
Pode-se falar se primeiro for feita uma distinção entre presença na Igreja como comunidade, justamente como “ecclesia”, e presença nos locais de decisão e de elaboração oficial. Nestes últimos, a presença feminina ainda hoje pode ser definida como irrelevante, se não mesmo insignificante. Ainda hoje as mulheres estão nas periferias e aparecem às margens das grandes decisões, mais objeto do que sujeito delas.
Hoje podemos dizer com alguma certeza que é precisamente a periferia feminina que mais do que outras sitia o centro e coloca o problema de uma renovação e de uma maior coerência com a palavra do Evangelho.
A presença das mulheres no caminho sinodal - primária, fundamental, imprescindível – demonstra isso. Os seus pedidos de protagonismo nas decisões e na elaboração do pensamento também na Igreja já são um fato incontornável. Assim como é um fato que a nova consciência de época das mulheres do planeta comumente definida como “feminismo” tenha entrado nos fortes e obstinados gânglios do poder eclesiástico e estão obrigando a uma reflexão.
Hoje assistimos a um paradoxo. A posição de menor poder das mulheres em relação ao “centro de tomada de decisões” as torna mais fortes nestes tempos difíceis. A marginalidade fez amadurecer um senso crítico mais do que nunca necessário para uma instituição que só pode aspirar à sua própria renovação na coerência da mensagem evangélica. São as mulheres que sempre estiveram “dentro” da Igreja e sempre mantidas à margem, cujas capacidades foram utilizadas, mas raramente reconhecidas, que indicam a saída do imobilismo e de uma ritualidade masculina que já se tornaram abertamente insuficientes.
São as mulheres que podem tornar fecunda a contradição centro-periferia, podem iluminá-la poderosamente com a luz do Evangelho que é a palavra de um Deus feito homem, homem de fronteira que deu voz a quem está às margens. Do ponto de vista da tomada de decisões, as mulheres são em grande parte as pobres da Igreja. Movimentos femininos e feministas, fiéis, religiosas, teólogas, abriram um debate muito fecundo, discutindo teorias e posicionamentos, inclusive espirituais e teológicos, produzidos pelos homens. E, aqui invertendo a perspectiva geográfica, com bastante vigor e convicção nos países europeus.
As periferias não são apenas países distantes, lugares pouco conhecidos. As periferias geográficas são também existenciais, lugares onde vive uma humanidade abandonada, marginalizada e descartada. Separadas por barreiras que muitas vezes se transformaram em muros. Em vez disso, justamente hoje oferecem novos horizontes. São elas que mostram e podem mudar uma mentalidade social e cultural e sobretudo uma visão da fé.
Dizem-nos que existe outra narrativa da existência e que esta pode mudar a vida de muitos.
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Das periferias ao centro, a Igreja das margens - Instituto Humanitas Unisinos - IHU