26 Junho 2023
"Seja bem-vinda a crise mortal das hierarquias patriarcais, porque nos oferece a possibilidade de experimentar métodos de exercício coletivo do poder de decidir estratégias e prioridades nas instituições e movimentos da sociedade civil."
O artigo é de Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), publicado por Settimana News, 25-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Vivemos tempos extremamente complicados com novidades que nos desafiam a empreender novas investigações e a tentar novos entendimentos.
Importantes figuras masculinas – tanto do século passado quanto da atualidade – têm sido alvo de acusações que, embora não sejam injustificadas, muitas vezes foram acompanhadas, na web, de críticas extremamente ferozes, destinadas a desqualificar sua autoridade moral, intelectual, religiosa e artística.
Vejo, por exemplo, artigos sobre a pessoa de Pablo Picasso qualificado como um abusador: um homem sem princípios, narcisista, manipulador, típico representante do patriarcado violento e misógino. Para outras figuras, como Paul Éluard e Guillaume Apollinaire, supostos erotomaníacos e abusadores, a análise da personalidade, sem dúvida justificada, chega a desqualificar toda a sua produção artística, pois se assume que a violência manifestada seja parte constitutiva do processo criativo.
Penso também em Heidegger e na tendência generalizada de desqualificar todo o seu pensamento filosófico a partir de sua adesão a Hitler e ao partido nacional-socialista.
Agora estamos vendo as investigações e as críticas ao trabalho do consagrado artista e teólogo jesuíta Marko Rupnik. No âmbito católico, discute-se se é ético e legítimo continuar a admirar seus mosaicos presentes em santuários, catedrais e igrejas ao redor do mundo.
Chega-se à licença - que me parece eticamente injustificável - do uso de uma fofoca mafiosa de Pietro, irmão de Emanuela Orlandi, que repete a história das façanhas noturnas do Papa Wojtyla, que frequentemente teria saído do Vaticano, acompanhado de dois monsenhores poloneses, andando por Roma "certamente não para abençoar as casas".
Por último, pelo menos no momento, o caso do grande intelectual de Coimbra, Boaventura de Sousa Santos, acusado de “assédio sexual” por três alunas da faculdade de sociologia.
Tudo isso é, para mim, resultado de análogos acertos de contas contra o patriarcado tradicional: a pedofilia na Igreja Católica; o movimento Me Too, contra a violência e o assédio sexual infligidos às mulheres, especialmente no ambiente de trabalho.
Para entender um pouco mais a questão dos abusos, considero um artigo de André S. Musskopf muito importante para iluminar o debate.
A constatação fundamental do autor é que “a maioria dos homens continua a ignorar deliberadamente que o fato de serem homens lhes garante privilégios e que essa questão básica, por si só, constitui um abuso, que se concretiza de diversas formas nas relações pessoais e coletivas”.
Em suma, nós, homens, estamos cegos para a necessidade crítica, ética e política de reconhecer e desmascarar o sistema patriarcal em que ainda vivemos.
Nesse sentido, Musskopf insiste dizendo que os homens acusados - mesmo quando as acusações podem se revelar infundadas e os acusados resultarem inocentes - não podem assumir o papel de vítimas. De fato, na estruturação patriarcal da sociedade, são constitutivamente privilegiados, hierarquicamente privilegiados: “Que homem poderá dizer que a sua mera presença num espaço onde há mulheres, especialmente se puder ostentar um título (político, universitário, religioso), não poderia interferir na forma que as relações interpessoais podem assumir e na forma como as decisões são tomadas? Ser um abusador – ou participar da classe dos abusadores – não é algo que depende necessariamente dos nossos atos, mas de um sistema do qual somos participantes e que nos coloca nessa posição”.
Subscrevo essa leitura radical do patriarcado, mas, diante dos desdobramentos inevitáveis desse processo que evidencia a crise irreversível em que estão envolvidas as autoridades masculinas da política e da religião, me pergunto quais são as possibilidades interpessoais e políticas de construção de alternativas para a destruição do sistema hierárquico, claudicante, mas ainda em funcionamento.
De fato, se a autoridade masculina não é mais capaz de convencer, que poder carismático indiscutível, que modelos pedagógicos e organizacionais construiremos para garantir legitimidade e segurança à vida social?
É necessário, antes de formular algumas propostas, parar e considerar o estilo violento amplamente difundido na rede, no qual a denúncia de políticos, religiosos, intelectuais e artistas por seus supostos ou reais comportamentos pervertidos e corruptos coincide substancialmente com a difusão da convicção de que tudo é negativo e que justiça, verdade e bondade são apenas ilusões: em suma, que a aposta sobre a possibilidade de construir a humanidade está fadada ao fracasso.
Para esses sujeitos deveria valer a recomendação de Jesus de Nazaré, que nos repete: Aquele que de entre vós está sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela (Jo 8,1-11) ou a antropologia de Lutero, que define o fiel “simul justus et peccator”, ou seja, a antiga sabedoria proverbial brasileira: “Quem tem telhados de vidro não atira pedras nos do vizinho”.
O que foi dito evidentemente se refere à necessidade de se deixar orientar nas relações pessoais e políticas pelo discernimento ético e não pelo preconceito, ódio e inimizade.
O que foi dito, portanto, não exclui a necessidade de tratar os abusos e os abusadores no plano do direito penal e no direito canônico. No entanto, vale a advertência dirigida aos detentores do poder político e religioso sobre a insuficiência das necessárias providências jurídicas, se quisermos enfrentar realmente e radicalmente o abuso constitutivo do patriarcado.
Portanto, seja bem-vinda a crise mortal das hierarquias patriarcais, porque nos oferece a possibilidade de experimentar métodos de exercício coletivo do poder de decidir estratégias e prioridades nas instituições e movimentos da sociedade civil.
Existem três palavras-chave para descrever a viabilidade de processos organizacionais alternativos: democracia, colegialidade, sinodalidade.
Também nesse caso devemos apelar a sujeitos que conseguem converter-se a métodos democráticos efetivos, para além dos estreitos limites da formal - e não real - democracia ocidental.
Precisamos apostar em homens e mulheres profundamente convencidos da letalidade das instituições autoritárias, quando apenas um manda, enquanto os demais obedecem submissos: e assim saibam construir métodos e critérios, caminhos colegiados na administração das organizações sociais.
A colegialidade exige que, em cada circunstância, as informações sejam processadas simultaneamente pelos membros do colégio. Algo difícil de digerir para muitos saudosistas da monarquia, que, de fato, monopolizam as informações para garantir o poder de quem sabe e de quem decide. Sujeitos - estes - que conseguem sabotar os processos colegiados, assumindo o papel de quem decide sem consultar os/as colegas.
A sinodalidade, portanto: um apelo eclesiológico do Papa Francisco para construir, com Jesus de Nazaré, comunidades fraternas, para caminhar para além da hegemonia clerical. Também esse é um percurso necessário, mas objetivamente difícil porque se opõe a tradições seculares que configuram o poder do clero como função sagrada.
Assim, a sinodalidade é objeto de contestação e resistência que atrasam por parte de muitos bispos e padres. E também por setores significativos do laicato, que não consegue compreender as incertezas e os desafios do presente. E prefere refugiar-se nas supostas seguranças do passado.
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Um sistema patriarcal favorece os abusos. Artigo de Flávio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU