03 Janeiro 2023
"Hoje é a direita que se apresenta artificiosamente como antissistema, angariando consensos, enquanto a esquerda vai perdendo terreno, com razão, porque há muito esgotou sua energia antissistêmica e se adaptou ao status quo", escreve Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em artigo publicado por Settimana News, 02-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
"Se queremos que tudo fique como está, tudo deve mudar", assim fala Tancredi no sempre citado romance de Tomasi di Lampedusa: seu ditado quase se transformou em um paradigma analítico para acompanhar os processos históricos recentes.
Hoje, observando o último resultado eleitoral italiano, a invasão da Ucrânia e – que este acréscimo não lhes pareça tão estranho – a grave crise da Igreja Católica, pergunto-me insistentemente se o provérbio do Gattopardo (O leopardo) ainda é válido.
Em suma, pergunto-me se a crise atual é função da manutenção do status quo, ou seja, mais um subterfúgio de quem quer manter o seu poder, ou se é algo profundamente diferente e destinado a provocar verdadeiras mudanças.
Pelas evidentes limitações da minha preparação, encontro-me em dificuldade face à realidade da guerra e da crise. Lembro-me de uma observação metodológica de Vilfredo Pareto que escreveu que, se a economia é uma disciplina que tem a ver com a lógica, a sociologia, ao contrário, tenta estudar comportamentos que nada teriam de racionais, porque os seres humanos seriam dominados por emoções e crenças ideológicas e não usariam a razão para buscar a verdade, mas sim para traí-la e distorcê-la.
É o que sinto ao observar a vitória da direita nas eleições italianas. Não consigo encontrar explicações aceitáveis e me pergunto se a multidão, que de repente se tornou consolidada maioria, lê a realidade como os políticos, os jornalistas e os intelectuais.
Posso dizer, no entanto, que as classes médias em decadência há muito nutrem profundos sentimentos de mal-estar em relação ao mundo globalizado, ao sistema que governa o mundo, e por isso tentam identificar forças e poderes - e inventar culpados – para escapar das dificuldades econômicas e existenciais.
Hoje é a direita que se apresenta artificiosamente como antissistema, angariando consensos, enquanto a esquerda vai perdendo terreno, com razão, porque há muito esgotou sua energia antissistêmica e se adaptou ao status quo.
Posso me aventurar a pensar que a invasão da Ucrânia também seria uma operação militar e ideológica antissistêmica. De fato, a guerra não se caracteriza como um acontecimento regional, mas já é global quando, querendo ou não, a Rússia rompe com o projeto capitalista composto por finanças, tecnologia, alimentos, energia e matérias-primas que circulam sem fronteiras e alfândegas, no mercado global.
Essa guerra parece se opor radicalmente ao projeto sistêmico de interdependência, hegemônico no último quarto de século. Se não for encontrada uma solução diplomática, isso levará a um retorno à lógica dos impérios e das identidades étnicas e nacionais. Realmente me parece que, por enquanto, o provérbio de Tancredi não consiga definir esse passado que retorna como estratégia de manutenção do status quo.
Existe, porém, outra posição antissistêmica: esta, sim, explicitamente assumida com radicalidade ética e política. De fato, podemos afirmar que o Papa Francisco é o líder mundial do confronto, na luta contra a injustiça, a fome e a guerra, na defesa amorosa da vida - de cada vida -, do clima, do meio ambiente.
Esta posição da Igreja Católica face aos resultados perniciosos da modernidade não é nova e infelizmente somos obrigados a recordar a dureza desumana do Syllabus e do Concílio Vaticano I, que condenaram o racionalismo e o liberalismo: documentos que deveriam ter sido um serviço à verdade revelável dos males da modernidade, mas que, ao contrário, a ocultaram com a prepotência presunçosa de quem se considerou senhor da verdade, sentado entre os senhores do mundo.
Com efeito, Pio IX parece ter esquecido a Palavra e a pessoa de Jesus e, em contrapartida, viu-se em companhia – e explícita aliança– com as potências reacionárias, aristocráticas e imperiais da época.
Também neste caso, Tancredi não consegue explicar o que está acontecendo. Francisco e setores significativos da Igreja Católica esperam por uma mudança real e radical de perspectiva, de estilos e de prática evangélica, não a reprodução revisada e maquiada do passado.
Os limites dessa posição profética se devem ao poder de setores encorpados do catolicismo, que optam pela sagrada repetição da tradição, contando, uma vez de volta ao poder, manter-se como “gattopardi” promotores de reformas insignificantes, mimetizando-se no âmbito do apoio oferecido pelo pântano dos chamados moderados. Para todos esses, Tancredi tem a leitura adequada, com uma correção: "Se queremos que tudo fique como está, temos que fingir que tudo deve mudar."
Essas considerações visionárias nos dizem que precisamos nos preparar para a resistência e a luta, com novos sujeitos, novas forças, novos estilos e estratégias, porque, citando novamente Vilfredo Pareto, realmente parece que a classe trabalhadora e seus sucessivos substitutos - o movimento do anos 1970 ou, mais recentemente, as multidões - não podem ser protagonistas coletivos da mudança, enquanto testemunharemos, em breve, à realização hegemônica, autoritária e assassina da oligarquia mundial reconstituída, com matrizes e filiais nacionais, que reúne “gattopardi” e chacais em um único projeto de morte.
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Para onde vai a história? Artigo de Flavio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU