18 Dezembro 2018
"Um filme comovente e animador, em suma, por mostrar que, para além do realismo cru e um tanto sensacionalista de Matteo Garrone, do esteticismo afetado de Paolo Sorrentino e do sentimentalismo lacrimoso de Giuseppe Tornatore, ainda existe vitalidade e inteligência no cinema italiano. Um alento e um consolo num ano que viu morrerem os mestres Ermanno Olmi, Vittorio Taviani e Bernardo Bertolucci".
O comentário é de José Geraldo Couto, crítico de cinema e tradutor, em artigo publicado por Instituto Moreira Sales – IMS, 14-12-2018.
Feliz como Lázaro (Lazzaro felice) é o que se poderia chamar de uma parábola cristã contemporânea. O filme de Alice Rohrwacher, que está em cartaz na Netflix sem ter passado pelo circuito exibidor, conta a história de um rapaz, o Lázaro do título (Adriano Tardiolo), e do povo de sua aldeia, que tem o sugestivo nome Inviolata e fica numa Itália profunda, perdida no tempo.
Tão perdida no tempo que ali se pratica ainda uma exploração de tipo feudal do trabalho camponês: todos se submetem cegamente à marquesa Alfonsina De Luna (Nicholetta Braschi), a “rainha do tabaco”. São analfabetos, tementes a Deus e à marquesa, não sabem que agora existem leis trabalhistas, salários, direitos.
Entre esses miseráveis está Lázaro, trabalhador dedicado, sempre disposto a ajudar os outros. Ele faz parte da linhagem dos puros de coração, cuja figura icônica é São Francisco de Assis, e que no cinema gerou criaturas memoráveis como o louco Johannes, de A palavra (Dreyer, 1955), e a Gelsomina de A estrada (Fellini, 1954). São personagens que iluminam, por contraste, as maldades do mundo.
Uma maneira fecunda de ver Lazzaro é situá-lo na longa tradição de diálogo crítico do cinema italiano com o cristianismo – não com o catolicismo institucional, do Vaticano, nem com a carolice das beatas, mas com valores mais essenciais e profundos de um certo “cristianismo de raiz”: a fraternidade, a compaixão, o amor ao próximo.
De Rossellini a Nanni Moretti, passando evidentemente pelos Taviani e por Pasolini, a melhor cinematografia italiana foi atravessada por essa interlocução, às vezes mais harmoniosa, outras vezes mais áspera.
Em sua primeira parte, Lazzaro felice, em sua descrição do dia a dia e das relações de poder na aldeia, aproxima-se do neorrealismo e de uma espécie de antropologia das relações humanas pré-capitalistas, à maneira de certos filmes de Ermanno Olmi.
Mas, a partir da improvável amizade que se estabelece entre Lázaro e Tancredi (Luca Chikovani), o filho entediado da marquesa, o filme se afasta do verismo e se aproxima da alegoria, ou melhor, da parábola, passando de Olmi a Pasolini, por assim dizer. Lembra, nesse aspecto, os fioretti medievais: relatos da vida e dos milagres de santos, em especial de São Francisco de Assis.
A queda brusca e literal de Lázaro, no meio da narrativa, leva a um salto no tempo e a uma mudança de patamar dramatúrgico e estético. Não vou estragar aqui o prazer das surpresas e descobertas. Só digo que, na passagem, entrechocam-se passado e presente, iluminando o que muda e o que permanece no desconcerto do mundo: o desemprego, a migração em massa, a moradia precária, a violência, o medo.
Um filme comovente e animador, em suma, por mostrar que, para além do realismo cru e um tanto sensacionalista de Matteo Garrone, do esteticismo afetado de Paolo Sorrentino e do sentimentalismo lacrimoso de Giuseppe Tornatore, ainda existe vitalidade e inteligência no cinema italiano. Um alento e um consolo num ano que viu morrerem os mestres Ermanno Olmi, Vittorio Taviani e Bernardo Bertolucci.
Em tempo: Lazzaro felice ganhou uma porção de prêmios em festivais internacionais, o principal deles o de melhor roteiro em Cannes. É uma pena que não seja exibido onde merece, as telas grandes das salas de cinema.
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