09 Julho 2020
O impacto mais significativo do MeToo na Igreja Católica poderia estar dentro dos novos movimentos e comunidades eclesiais, devido às dinâmicas eclesiais e sociais que são típicas desse novo modo de ser membro da Igreja.
A opinião é de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado por La Croix International, 08-07-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O pontificado de Francisco inaugurou uma aceleração na globalização da Igreja Católica.
No entanto, continua sendo verdade que “todos os caminhos levam a Roma”, especialmente quando se pensa na crise dos abusos sexuais e em outros tipos de abuso dentro da Igreja.
Nas últimas semanas, o Vaticano interveio – mediante solicitação – no governo de uma diocese local (na Polônia) e em duas comunidades leigas (o Mosteiro de Bose e os Memores Domini, do Comunhão e Libertação).
Assim, Roma envia seus próprios investigadores e delegados para resolver os problemas internos de outra entidade, passando por cima dos bispos locais e das Conferências Episcopais nacionais.
A descentralização é particularmente difícil em momentos de crise sistêmica. Mas há também um aspecto particular que toca uma das histórias de sucesso do catolicismo desde os anos 1940 a 1960: os novos movimentos e comunidades eclesiais.
Na semana passada, surgiram alegações sobre outra dessas novas comunidades católicas: desta vez, elas envolviam o Movimento Apostólico de Schoenstatt.
Alexandra von Teuffenbach, historiadora da Igreja alemã que faz pesquisas nos Arquivos Vaticanos, alegou que os investigadores da Santa Sé acusaram o fundador de Schoenstatt, Pe. Joseph Kentenich (1885-1968), de abuso sexual e de abuso de poder contra mulheres membros do movimento.
Em uma carta ao jornalista italiano Sandro Magister, ela insinuou que essa era a verdadeira razão pela qual o Vaticano enviou Kentenich para o exílio nos Estados Unidos em 1951 – que durou 14 anos –, e não porque suspeitava de possíveis características futuras do movimento eclesial fundado pelo padre alemão.
A Santa Sé realizou duas visitas apostólicas ao movimento entre 1949 e 1953.
A presidência do movimento de Schoenstatt emitiu uma dura declaração que negou vigorosamente as acusações contra seu fundador, cuja causa de beatificação foi aberta em 1975. Ela dizia que a Dr.ª von Teuffenbach não havia produzido nenhuma evidência substancial sobre tais alegações.
Vai levar tempo para examinar todos os documentos. Mas, quer a alegação seja confirmada ou não, esse é mais um sinal de que existe uma espécie de movimento MeToo na Igreja Católica ao lidar com a crise dos abusos.
Isso está afetando a Igreja, porque colocou um novo foco em uma área da experiência católica em todo o mundo que, até agora, tem sido negligenciada: os novos movimentos e comunidades eclesiais.
O movimento MeToo teve um impacto em larga escala nas relações entre homens e mulheres no mundo secular, ao dar voz às sobreviventes de assédio sexual, agressão e má conduta. Ele demonstrou que esse abuso continua sendo um problema sistêmico.
O impacto mais significativo do MeToo na Igreja Católica poderia estar dentro dos novos movimentos e comunidades eclesiais, devido às dinâmicas eclesiais e sociais que são típicas desse novo modo de ser membro da Igreja.
O Papa Francisco já havia começado a reavaliar o papel desses movimentos antes que a Igreja iniciasse uma nova fase na história da sua crise de abuso sexual em 2018.
Em uma série de discursos e intervenções, ele sinalizou algumas descontinuidades com a política de “cheque em branco” que João Paulo II e Bento XVI seguiram em relação aos novos movimentos e comunidades católicos.
Francisco demonstrou uma consciência mais profunda dos riscos do autoritarismo e de experiências de culto em novas agregações católicas leigas.
A coincidência cronológica entre o movimento MeToo e esta segunda fase da crise dos abusos sexuais (especialmente com as revelações e as investigações vindas dos EUA, Chile e Austrália, assim como da África e Ásia) aceleraram o momento de acerto de contas da Igreja Católica com os novos movimentos.
“Nos últimos anos [...] temos visto que vários desses grupos religiosos – alguns dos quais assumiram posições eclesiais fortemente conservadoras ligadas às formas tradicionais da liturgia e da teologia – acabaram sendo centros de várias formas de sérios abusos”, observou o padre jesuíta Hans Zollner, presidente do Centro de Proteção aos Menores da Universidade Gregoriana em Roma, em um artigo no fim de 2017.
“Entre os casos mais notáveis, estão os Legionários de Cristo (fundação mexicana), a Comunidade das Bem-Aventuranças (francesa), a Comunidade Missionária de Villaregia, no norte da Itália, o Sodalitium Christianae Vitae (principalmente no Peru), assim como o grupo que gravitou em torno do Pe. Fernando Karadima, em Santiago do Chile”, escreveu.
Desde então, o alcance da atenção ao fenômeno dos abusos na Igreja aumentou: abusos contra mulheres religiosas (declaração de novembro de 2018 da União Internacional das Superioras Gerais) e também abusos em comunidades católicas que não são paróquias ou ordens religiosas.
É importante incluir aqui as revelações de junho de 2019 sobre casos de má conduta sexual na Comunidade de Taizé, que não está em plena comunhão com a Igreja Católica.
Mas as revelações mais chocantes foram as de fevereiro de 2020 referentes a Jean Vanier, fundador da Comunidade L’Arche.
Essa onda de revelações não apenas provocou debates públicos sobre os movimentos e as comunidades, mas também exigiu um novo tipo de resposta institucional.
No fim de 2019, por exemplo, o Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida – o escritório vaticano que concede o reconhecimento oficial a organizações e movimentos católicos internacionais – ordenou que os grupos desenvolvessem diretrizes e normas detalhadas de proteção aos menores para lidar com as acusações de abuso de menores e adultos vulneráveis.
As acusações contra fundadores e líderes de novos movimentos e comunidades católicos poderiam inaugurar um capítulo totalmente novo na história da crise dos abusos na Igreja.
Esses novos movimentos pressupõem um compromisso estável e uma regra a ser seguida pelos membros, que pode ser escrita ou simplesmente fazer parte do seu modo de vida; às vezes, eles absorvem a vida inteira dos membros e as suas redes sociais.
Os tipos de afiliação (leigos, religiosos ou mistos) e o estilo de vida (celibatário, familiar, comunitário, monástico ou missionário) variam muito de um movimento para o outro, e podem mudar dentro do mesmo movimento em diferentes partes do mundo.
O fundamental a ser entendido sobre esses movimentos em relação à crise dos abusos é o modo como eles são governados: a autoridade e o carisma do fundador e dos líderes desempenham um papel muito maior do que na paróquia ou ordem religiosa católica média.
Os sistemas institucionais para controlar o poder do fundador ou dos líderes são ainda menores do que na estrutura paroquial ou em uma ordem religiosa. Nos últimos 40 anos, Roma e muitos bispos deram a esses movimentos um cheque em branco para atuarem com grande independência, vendo-os como a resposta mais criativa à secularização.
Este é um momento particularmente delicado por várias razões.
A primeira é que um novo capítulo de investigações sobre os movimentos perturbaria ainda mais o legado de João Paulo II, que foi o mais importante defensor desse novo fenômeno durante o seu pontificado. Ele tinha uma preferência muito clara por aqueles com tendências políticas e políticas conservadoras (uma diferença fundamental em relação ao Papa Francisco).
A segunda é que esse período é bastante delicado para a história dos novos movimentos e comunidades como um todo. Estamos testemunhando a geração dos fundadores passar o bastão para a primeira geração de líderes eleitos ou ungidos pelo fundador.
A terceira razão é que os membros e os apoiadores poderiam ver as acusações contra esses movimentos e as novas comunidades como um teste adicional em uma história de hostilidade proveniente da Igreja institucional e do “mundo”.
Especialmente até o fim dos anos 1970, a história dos novos movimentos também é, em parte, uma história de mal-entendidos e de luta de poder com a Igreja clerical e institucional.
A quarta e última razão é que os membros dos novos movimentos estão vinculados ao fundador por laços de identificação pessoal e de apego emocional que são muito mais profundos do que os dos católicos médios com o seu pároco ou bispo.
Chamar os novos movimentos e comunidades católicos para depor, por assim dizer, significaria reexaminar os frutos do “chamado universal à santidade” que o Concílio Vaticano II defendia.
Muitos católicos (inclusive eu, como membro da Associação dos Escoteiros Católicos Italianos – Agesci há mais de 20 anos) consideraram os movimentos muito mais úteis do que a Igreja territorial ao seguir esse chamado.
Mas os movimentos também se tornaram parte da política da Igreja, como vimos no papel que eles desempenharam na corrida para que João Paulo II fosse declarado santo.
Logo após a morte do papa polonês, o slogan do Movimento dos Focolares – “Santo subito” – se tornou um dispositivo de narrativa extraordinariamente bem-sucedido.
Também inaugurou uma tendência potencialmente perigosa no catolicismo moderno, a canonização quase automática de praticamente todos os papas do século passado: uma das coisas que a crise dos abusos está nos ajudando a reconsiderar.
Tudo isso sugere, mais uma vez, que a crise dos abusos na Igreja Católica exige discernimento histórico, teológico e eclesial em uma atitude de transparência e de prestação de contas, sem iconoclastia ideológica, mas também sem apologética autocentrada.
Quer se goste dos novos movimentos e comunidades ou não, o que está em jogo é uma parte importante do futuro da Igreja Católica.
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#MeToo e os novos movimentos eclesiais. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU