24 Abril 2023
"Só por meio de estudos serenos e da percepção das verdadeiras dimensões do problema é que se pode avançar. Pensar com liberdade não significa abandonar a fé. Não falar mais em reis e rainhas, senhores e santidades, tronos e potestades não significa trair o evangelho. Acompanhar a evolução das ciências, da política e da sociedade de hoje não é o mesmo que deixar de ser cristão", escreve Eduardo Hoornaert, historiador, ex-professor e membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA).
Desde os inícios, o cristianismo histórico tem tido dificuldades em compreender o comportamento de Jesus para com as mulheres. Diversos trechos dos evangelhos demonstram admiração, mas ao mesmo tempo deixam transparecer estranheza. Os próprios apóstolos não entendem o modo como Jesus aborda as mulheres. Pedro, um de seus mais próximos companheiros, não tolera que uma mulher seja considerada apóstola em pé de igualdade com os homens, como se pode ler no evangelho apócrifo de Maria Madalena (Leloup, Y., O Evangelho de Maria, Vozes, Petrópolis, 1998). Por causa dessa e de outras dificuldades, o cristianismo histórico guarda uma memória precária e até deformada acerca do comportamento de Jesus diante das mulheres.
Maria Madalena, a mais proeminente figura feminina do novo testamento, é sistematicamente maltratada nos sermões da igreja, até ser rebaixada à condição de prostituta e de pecadora arrependida. Essa criminalização simboliza na realidade o rebaixamento da figura da mulher em geral, na tradição cristã. Mas não é só a cultura cristã que desconsidera a mulher. A maioria das culturas é igualmente preconceituosa nesse ponto e ficaria igualmente escandalizada com Jesus, que apreciava o perfume e o afeto de uma mulher e que insistia em que a memória da ternura de uma mulher fosse preservada por onde quer que o evangelho fosse proclamado (Mt 26, 12). Essa memória sempre encontrou resistência no seio do cristianismo histórico, como provavelmente encontraria na maioria das culturas.
Após séculos de silêncio e submissão, a mulher do século XX finalmente dá sinais de rompimento com o passado. No âmbito católico, é na década de 1940 que aparecem os primeiros indícios discretos de que algo está mudando no universo feminino: as mães não mandam mais seus filhos à missa dominical com a fidelidade de antes. Isso repercute imediatamente na igreja, mas quase ninguém percebe o que está acontecendo. Quando, em 1943, o padre Henri Godin, em seu livro ‘França, país de missão?’, constata com amargura que a França não é mais o país católico de antes, ele não suspeita que a mulher tenha a ver com essa ‘descristianização’.
O mesmo acontece com o sociólogo Gabriel Le Bras, que atribui o declínio na assistência à missa ao estilo de vida na grande cidade, à perda de fé e à secularização. Mas não fala da mulher. E quando, nos anos 1960, se constata um rápido declínio de vocações para o sacerdócio, também não se enxerga nisso a mutação na relação do vocacionado com sua mãe. Os primeiros estudos que apontam nessa direção são dos anos 1990 (Drewermann, E., Psychogram eines Ideals, Walter Verlag, Olten, 1990).
É no silêncio do universo feminino que se opera a desconstrução da igreja. Mas no início dos anos 1960, no momento em que o papa João XXIII pensa em convocar um concílio, a ‘desobediência’ feminina de repente ganha notoriedade: a pílula anticoncepcional oral entra em cena e seu sucesso é imediato. A mulher verifica que os ritmos das energias pro-criativas de seu corpo, se não forem controlados, dificultam a qualidade de vida a que ela e sua família aspiram. Os ciclos sempre repetidos da gravidez, do nascimento da criança, dos longos tempos dedicados ao recém-nascido, dos trabalhos na casa, da preparação dos alimentos, dos cuidados como o marido não deixam espaço para que ela se desenvolva plenamente, em contraste com o que acontece ao homem que, depois do ato sexual, fica ‘liberado’. Permitida nos Estados Unidos em 1960, a pílula conquista o mundo em poucos anos. O sucesso já dura 50 anos.
Hoje, no mundo inteiro, cem milhões de mulheres recorrem à pílula ou a outros métodos contraceptivos (camisinha, dispositivo intrauterino, diafragma, diversos produtos espermicidas). A Organização das Nações Unidas (ONU) aprova oficialmente o planejamento familiar e declara que ele colabora com a saúde e o bem-estar da mulher, dos filhos e da família (Conferência do Cairo, 1994). Estamos diante da emergência de um pensamento autônomo, em contraste com o pensamento heterônomo até então vigente. Elabora-se uma nova arquitetura do estado com a finalidade de promover saúde, educação, bem-estar das famílias, assim como atendimento médico-hospitalar baseado na ideia da regulamentação dos nascimentos. Eis uma revolução de dimensões planetárias, realça Rose Marie Muraro (Muraro, R-M, Diálogo para o Futuro, Cultrix, São Paulo, 2009).
A ideia do planejamento familiar é uma ideia genuinamente feminina que põe em movimento a maior revolução do século XX, uma revolução silenciosa que se processa na intimidade das residências privadas, no diálogo íntimo entre homem e mulher, longe dos púlpitos clericais, das cátedras doutorais e dos foros públicos. Ao controlar a fertilidade, a pílula faz com que a mulher possa entrar no mercado de trabalho ao lado do homem. Doravante, seu corpo não pertence mais à fatalidade dos ciclos da procriação e se liberta aos poucos da vontade do homem. A pílula inaugura um tempo novo, não só para a mulher, mas para a sociedade como um todo. As relações de gênero e trabalho se transformam em profundidade. Entusiasmada, Rose Marie Muraro opina que com a pílula ‘o mundo se torna melhor. Quando dominado pelo homem, o mundo é hierarquizado. Mas ele se estabelece em rede quando a mulher entra em cena’.
Uma vez que na mesma época se inicia o concílio Vaticano II, vale a pena se perguntar se há interação entre ambas as iniciativas. O movimento em prol da libertação do corpo feminino tem algo a ver com o ‘aggiornamento’ do papa João XXIII? Será que os bispos reunidos em Roma tomam conhecimento do que está acontecendo no universo feminino e procuram entrar em diálogo com as mulheres?
"A pílula inaugura um tempo novo, não só para a mulher, mas para a sociedade como um todo. As relações de gênero e trabalho se transformam em profundidade" (Foto: Vytautas Markūnas | Cathopic)
Sabemos que mulheres não são convidadas a falar em concílios ecumênicos. Mas elas interferem, isso sim, nos destinos dos concílios. Enquanto os bispos do Vaticano II tentam compreender as razões da ‘descristianização’, elas atuam na base, desatando laços seculares e desse modo esvaziando as igrejas. Enquanto os teólogos falam em secularização, ateísmo, consumismo, individualismo ou hedonismo, elas introduzem comportamentos autônomos no seio do velho mundo, marcado por séculos de heteronomia. Decerto, o papa João XXIII sabia que as igrejas estavam ficando vazias em Paris, onde ele foi núncio. Seu diagnóstico de que havia desencontro entre igreja e mundo moderno estava certo. O que lhe faltava era ir ao âmago da questão. Desse modo, o Vaticano II certamente fez um bom trabalho, como realça José Oscar Beozzo (A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II, 1959-1965, Paulinas, São Paulo, 2005), mas não conseguiu identificar com clareza a ideologia heterônoma que caracteriza a igreja.
É de se compreender a razão. O universo imaginário da igreja cristã provém em última análise da bíblia, elaborada num mundo dominado por estruturas heterônomas. O rei (o imperador) manda no povo, o senhor manda no escravo (trabalhador), o homem manda na mulher, o pai manda nos filhos e Deus manda em todos (e todas). A vida toda é concebida em termos de heteronomia: há sempre um ‘outro’ que manda. A vida humana está sempre em mãos alheias. A heteronomia constitui o mais antigo e durável modelo de convivência humana, que caracteriza regimes políticos, econômicos, sociais, culturais e psicológicos.
Na bíblia, Deus aparece como um ser todo-poderoso, santíssimo, sentado no trono celeste. Ele criou o universo em poucos dias e até hoje governa sua criação da mesma forma que um rei persa controla seus imensos territórios, guarda tudo que acontece numa memória infinita (melhor que a memória do computador mais potente) e julga tudo como o mais justo dos juízes. Ele premia o bem e castiga o mal, às vezes aqui na terra, mas certamente após a morte, na vida eterna. Deus por vezes aparece como senhor rigoroso e justo, outras vezes como pai amoroso que perdoa tudo. Mas sempre fica fora do mundo em que vivemos. Nos dois primeiros versos da bíblia aparece uma imagem nitidamente heterônoma de Deus: de um lado a luz, o sopro, a vida, do outro lado o vazio, a solidão, a escuridão e a morte:
Primeiras palavras:
Deus cria o céu e a terra,
Terra vazia, solidão,
Escuro em cima do abismo
Sopro de Deus
Movimentos sob as águas (Gn 1, 1-2).
Admitamos que os estudiosos da bíblia procurem desprender-se da imagem de Deus como a que aparece no texto citado do livro Gênesis. No entanto, a ideia heterônoma está tão enraizada no subconsciente das pessoas e da instituição que só em raros casos ela chega à consciência. Mas a história avança. Decisiva foi, no plano político, a passagem para regimes democráticos e autônomos que se processou nos últimos 200 anos. Mas foi no plano científico que a ideia da autonomia fez seus maiores progressos. Cada vez mais, os cientistas descobrem que o mundo é autorregulamentado, baseado em leis marcadas por uma lógica interna. Não há mais necessidade de milagres ‘fora das leis naturais’, pois a cada momento o milagre está aí, diante dos olhos e dentro do corpo. Outro avanço é a ‘reviravolta linguística’ que hoje dinamiza uma nova maneira de se falar em Deus e nas coisas divinas.
A estas alturas é bom averiguar o que é realmente novo no comportamento da mulher que pratica o planejamento familiar. O novo consiste no fato de que ela não age mais impelida por uma vontade alheia, mas a partir de uma vontade própria. Ela está sintonizada com o pensamento moderno, que acredita na autorregulamentação das leis que regem o universo. A percepção sempre mais clara da regularidade das leis internas do universo resulta em atitudes de autonomia. Em consequência disso, a mulher inicia um novo relacionamento com seu próprio corpo. Verificando que seu corpo responde a determinados estímulos químicos capazes de inibir a gravidez, por exemplo, ela adquire aos poucos e quase imperceptivelmente um comportamento autônomo. O axioma da autonomia está penetrando lentamente e quase sempre de modo inconsciente em toda a cultura ocidental (Lenaers, R., Outro cristianismo é possível, Paulus, São Paulo, 2010, p. 23).
Ao programar a sua família, a mulher mexe com as estruturas da sociedade e do instituto religioso. Mais: ao lutar por uma família que desfrute de uma melhor qualidade de vida graças à regulamentação dos nascimentos, a mulher mexe com a própria imagem de Deus. Ela esboça uma nova imagem de Deus, mais condizente com as leis da autonomia. Os progressos científicos a favor da vida revelam o santo mistério chamado Deus. Para essa mulher, o Deus eclesiástico vai se diluindo no horizonte enquanto emerge um Deus que corresponde às leis internas e autônomas do universo e da humanidade. Para ela, o que colabora para uma melhor condição de vida é santo. Na medida em que torna o mundo mais feliz, a pílula anticoncepcional é santa. Então, a mulher emancipada questiona a igreja, como se pode verificar por toda parte.
Para os bispos, a passagem do pensamento heterônomo para o pensamento autônomo é bem mais complicada. Mesmo os que estão pessoalmente abertos à mudança dos tempos, permanecem enquadrados numa estrutura fundamentada na heteronomia. Isso se verifica nas renovadas ‘guerras santas’ em torno da questão do aborto. Tomemos o caso paradigmático de Recife março 2009. Quando ocorreu, numa clínica da cidade, a interrupção da gravidez de uma menina de nove anos, Dom José Cardoso Sobrinho, na época arcebispo da cidade, prontamente excomungou os médicos que praticaram o aborto na menina. Ele justificou seu comportamento dizendo que estava seguindo as leis da igreja. Desse modo, o bispo recorreu à ideia da heteronomia.
A igreja declara estar ‘a favor da vida’, contra ‘o cultivo da morte’, mas não sabe como lidar com casos concretos relacionados com aborto. Decerto, o bispo recomendou compaixão com a menina abusada pelo padrasto, mas não tinha nada a declarar acerca da existência de centenas de clínicas clandestinas de aborto no Brasil, que vitimam cada ano milhares de mulheres. Ele recomendou compreensão e preces pelas pobres mulheres que recorrem a tais clínicas, mas não podia ir além, pois as questões concretas que envolvem aborto só podem ser resolvidas por meio de ações baseadas no princípio da autonomia.
A sociedade tem de se mostrar capaz de enfrentar com realismo os problemas que se lhe apresentam. Não basta dizer às mulheres que desejam abortar que elas têm de se entregar ‘às mãos de Deus’ e obedecer aos desígnios divinos. Dom José até pode sonhar com uma igreja santa no meio da devassidão do mundo e dos erros do século, uma cidadela de Deus, como aquela descrita por Santo Agostinho em sua obra A Cidade de Deus. Mas esse sonho não corresponde à realidade. O postulado da santidade da igreja é uma elaboração teológica do século V, baseada na aproximação da igreja daquele tempo com o sistema imperial romano e nos métodos utilizados para impressionar as pessoas. Mesmo assim, a imagem de uma igreja santa, intocável e inquestionável ainda se mantém tão poderosa nos nossos dias que é capaz de seduzir bispos e mesmo o papa. Em suma, atitudes como as de Dom José Cardoso criam inutilmente curtos circuitos que dificultam a passagem do pensamento cristão para o mundo em que vivemos.
Para a igreja, não é fácil abandonar o universo imaginário da heteronomia, condição indispensável para um diálogo em profundidade com a mulher. Mesmo os textos mais inovadores do concílio Vaticano II ainda são formulados por meio de imagens herdadas do passado bíblico, sem a devida leitura crítica. Hoje não existe caminho fora do diálogo com a modernidade. Habilitar-se para tal diálogo implica, em primeiro lugar, numa atitude de autocrítica. Durante longos séculos, a igreja católica dominou a cultura ocidental e ficou intocável. Apenas cinquenta anos atrás, na abertura do Vaticano II, o domínio do pensamento católico sobre as consciências ainda era tão poderoso que criticar um representante da igreja católica era quase o mesmo que criticar o próprio Deus. A igreja se julgava superior a todas as demais organizações. Mas, recentemente, quando apareceu a pedofilia praticada por padres, percebeu-se que a igreja não é tão santa como o papa e os bispos desejariam que fosse. Os padres são humanos (por vezes demasiadamente humanos), feitos de uma matéria comum a todos os seres humanos.
Diante da pedofilia, por exemplo, a mentalidade moderna não suporta mais os métodos de intimidação, ocultamento e manipulação que ainda eram aceitos por nossos pais e avós num passado não tão distante. Nossa percepção do que seja uma sociedade democrática, igualitária e justa vai se aperfeiçoando e um número crescente de pessoas acha que não há nada mais louvável que uma sociedade que caminhe para a democracia e a liberdade. Todos os cidadãos estão sujeitos à lei, nenhuma instituição está acima da lei.
Em segundo lugar, não é bom dramatizar nem exacerbar os sentimentos. Palavras de guerra como ‘mentalidade medieval’, ‘obscurantismo’, ‘fanatismo’ (de um lado) e ‘ateísmo’, ‘agnosticismo’, ‘abandono da fé’ (de outro lado) só atrasam o processo. Lançam-se farpas de ambos os lados, o que não leva a nada. Só por meio de estudos serenos e da percepção das verdadeiras dimensões do problema é que se pode avançar. Pensar com liberdade não significa abandonar a fé. Não falar mais em reis e rainhas, senhores e santidades, tronos e potestades não significa trair o evangelho. Acompanhar a evolução das ciências, da política e da sociedade de hoje não é o mesmo que deixar de ser cristão. São Paulo não deixou de ser judeu quando escreveu
Sim, todos fomos imersos
Num sopro único
Num corpo único
Judeus ou gregos
Escravos ou livres
E todos vivemos animados
Por um sopro único (1Cor 12, 13).
Nesses versículos, São Paulo escreve que somos todos feitos do mesmo barro humano e, ao mesmo tempo, animados pelo mesmo sopro de Deus, quer sejamos judeus ou gregos, homens ou mulheres, bispos ou simples fiéis, heterônomos ou autônomos. As mulheres que praticam o planejamento familiar são feitas do mesmo barro humano que os bispos que as rejeitam. Não se pode dizer que o planejamento familiar seja uma questão de fé. Se durante tantos séculos falamos em Deus em termos de heteronomia, porque não será possível falar dele hoje em termos de autonomia? A modernidade religiosa consiste na passagem de uma imagem antiga de Deus, herdada da bíblia, para a imagem de um Deus que encontra sua autoexpressão no universo em que vivemos. Não há nada de dramático nessa passagem, nada que seja impossível. Quem vive sintonizado com o tempo de hoje compreende que todas as energias cósmicas visualizam, de modo por vezes desconcertante (mas sempre admirável), aquele mistério que ultrapassa nosso entendimento e a que damos o nome Deus. Hoje é na figura de um universo em contínua gestação que se vislumbra o rosto de Deus.
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Igreja e mulher. Artigo de Eduardo Hoornaert - Instituto Humanitas Unisinos - IHU