10 Mai 2019
A Cúria vaticana se move lentamente. Por isso, é bastante notável que, menos de três meses após a conclusão da cúpula vaticana sobre o abuso sexual clerical em fevereiro, o novo motu proprio do Papa Francisco, “Vos estis lux mundi”, estabelece novas leis para a Igreja universal quanto ao flagelo do abuso e o igualmente repugnante encobrimento de tais abusos.
O comentário é de Michael Sean Winters, publicado por National Catholic Reporter, 09-05-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“‘Vos estis lux mundi’ é uma das ‘medidas concretas’ que o Papa Francisco mencionou como resultado da conferência de fevereiro”, disse o cardeal de Boston, Sean O’Malley, presidente da comissão papal sobre o abuso sexual de menores, ao NCR por e-mail. A primeira de tais medidas concretas foi o motu proprio de março que tornou obrigatória a denúncia de abuso para todos os que trabalham no próprio Vaticano. Esses padrões são estendidos agora à Igreja universal.
A primeira seção do documento exige que cada diocese estabeleça protocolos para denunciar o abuso sexual clerical onde eles não existem, e os protocolos devem ser “públicos, acessíveis e confiáveis”. Não pode haver maneira de descartar uma investigação porque o acusado é um bom amigo ou um antigo colega de seminário. Além disso, o abuso de “pessoas vulneráveis” deve ser tratado agora com os mesmos procedimentos que o abuso infantil, assim como os casos de abuso de poder, por exemplo, quando um seminarista é violado, como abuso de um menor. Se você é ordenado ou pertence a uma ordem religiosa, você agora é um denunciante obrigatório de um abuso. Você não pode ignorar isso.
Francisco também indicou a toda a Igreja, dos bispos locais aos dicastérios vaticanos, que eles não podem tardar em enfrentar as acusações. Prazos são definidos para todos os envolvidos. Se um metropolita informa o Vaticano sobre uma acusação contra um bispo, o dicastério referente deve responder dentro de 30 dias. O investigador deve produzir um relatório a cada 30 dias e concluir a sua investigação dentro de 90 dias. O que isso significa como questão prática é que as acusações não podem ser enterradas em uma pilha de trabalhos da Cúria: as acusações vão para a frente da fila no trabalho de um dicastério, como deveria ser. Tais prazos são inéditos na cultura vaticana e representam o compromisso de Francisco de realmente mudar a cultura da Igreja.
Outra parte do documento que eu não esperava aborda a necessidade de proteger aqueles que fazem uma denúncia de abuso ou de encobrimento. Eles são protegidos contra retaliação ou discriminação, e o texto declara explicitamente que não podem ser impedidos de falar com seus amigos e familiares ou com o público, desde que não se envolvam em calúnias. O documento observa que as leis civis geralmente abrangem tais questões. O motu proprio também concede às vítimas informações sobre a resolução do seu caso. Lembremos que uma das razões pelas quais Marie Collins citou para abandonar a Comissão de Proteção aos Menores foi que a Congregação para a Doutrina da Fé se recusava até a reconhecer o recebimento de uma acusação com uma carta às vítimas. Francisco avisou a Cúria claramente: deixe de ser desumana.
Ainda mais significativa é a segunda seção do documento, que considera as acusações contra bispos e superiores religiosos.
“A constituição apostólica estabelece novas normas processuais para a investigação de crimes por bispos e moderadores supremos dos institutos religiosos”, assinalou O’Malley. “Existem diferentes opções para essas investigações, mas a primeira é que o arcebispo metropolitano é obrigado a investigar o suposto crime cometido por um bispo ou um moderador supremo, seja uma acusação de abuso sexual ou de encobrimento de abuso.”
Leia a última frase novamente: o encobrimento de abuso é tratado com o mesmo grau de seriedade e da mesma forma que o abuso em si. É assim que você muda a cultura hierárquica que perpetuou esse escândalo. Ele deve ser denunciado assim como o abuso sexual.
É difícil enfatizar como isso é importante. Qualquer tentativa de interferir em uma investigação – qualquer obstrução à justiça, como poderíamos chamá-la em nosso sistema judicial – é considerada como uma violação do motu proprio. Concedem-se às Conferências Episcopais diferentes abordagens que melhor se adequem às suas situações. A “proposta metropolitana”, levantada pela primeira vez na reunião da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos em novembro, modificada e significativamente desenvolvida aqui, é a mais provável de ser adotada, porque se baseia nas estruturas existentes e está de acordo com a eclesiologia do Vaticano II. Teremos de conversar com alguns canonistas nos próximos dias para ver exatamente como a proposta de hoje difere das anteriores, mas está claro que ela é mais abrangente e também está ciente da necessidade de evitar um conflito de interesses, que algumas das propostas metropolitanas iniciais não abordavam.
Qualquer que seja a opção escolhida, o envolvimento de leigos é encorajado, mas não obrigatório. Isso irá desapontar a muitos, e eu não sei por que o envolvimento leigo não se tornou obrigatório. Pode ser que o Vaticano esteja, com razão, assustado pelos líderes leigos norte-americanos à la Raymond Arroyo, Tim Busch, John Garvey e George Weigel, homens que abordaram a questão como parte de uma crítica mais geral a esse papado e adaptando as propostas de reforma às suas medidas ideológicas.
Há quem achará que as reformas de hoje são insuficientes. Por exemplo, eu espero que alguns se queixarão de que o documento não exige que as acusações sejam relatadas às autoridades civis, mas apenas impõe exigências de denúncia de acordo com a lei da Igreja. Os requisitos de denúncia diferem de Estado para Estado, e ainda mais de país para país. Além disso, há uma falta de processo devido em algumas jurisdições, e, em outros países onde a situação da Igreja está tão comprometida, tal exigência poderia causar danos reais a pessoas inocentes. Uma abordagem única, dada essa diversidade de culturas jurídicas civis, não é possível. Mas a crítica certamente será feita. O documento exige que os empregados da Igreja cumpram todos os requisitos de denúncia exigidos pela lei civil.
Mesmo assim, até mesmo os “reclamões” usuais têm que se impressionar com esse documento, pela sua natureza arrebatadora e pela velocidade com que foi produzido e promulgado. Ele pode funcionar? Em certo sentido, já funcionou: a proposta de investigar um bispo esboçada aqui é quase exatamente o que ocorreu no caso do agora ex-cardeal Theodore McCarrick: a acusação chegou à Arquidiocese de Nova York, que contatou o Vaticano, que autorizou a arquidiocese a conduzir uma investigação, que foi enviada a Roma para julgamento.
Os críticos de Francisco, sem dúvida, se recusarão a se apaziguar. Aqueles que, na Cúria vaticana, se queixaram dizendo: “E os direitos dos bispos?” e aqueles que odeiam a reforma com unhas e dentes foram silenciados por esse documento.
E sejamos claros: desde que esse escândalo surgiu pela primeira vez nos anos 1980, o Papa João Paulo II estabeleceu o padrão de ofuscação e de falta de responsabilização. O Papa Bento XVI foi muito mais forte no processamento de casos contra o clero, mas remover os bispos por não protegerem as crianças era uma ponte longe demais para ele. Francisco, nesse documento, diz o que nós do NCR estamos dizendo há muito tempo: essa crise afeta toda a Igreja, exige uma mudança cultural, uma vigilância contínua e uma maior transparência e responsabilização.
A luta acabou? É claro que não. Tudo isso tem que ser implementado, deve-se enfrentar a lentidão, as Conferências Episcopais têm protocolos para erigir, e os dicastérios romanos têm pessoal para treinar. Mesmo assim, não se trata de um pequeno passo à frente. Eu não previ que as reformas anunciadas na manhã dessa quinta-feira seriam tão amplas. Estou muito contente que sejam assim.
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Como o abuso sexual, o encobrimento também deve ser denunciado. Novas regras antiabuso são um grande passo dado pelo Vaticano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU