Hildegard, nas visões, descreve, entre outras, as imagens que vê: a visão mística da Trindade, a estrutura do cosmos e as estações do ano e o cultivo da terra
Em uma época em que "o mundo tem sede de espiritualidade", conforme apontou o teólogo italiano Vito Mancuso em entrevista a Vittoria Prisciandar, para a Revista Jesus, em setembro deste ano, a pergunta de Marina Monego – "Pode uma freira de clausura do século XII, mística, inspirada por visões, ainda ter algo a dizer aos homens e mulheres do século XXI, tão ocupados, tecnológicos, aparentemente tão distantes das realidades ultraterrenas e daquele mundo simbólico?" –, ao comentar o livro de Giordano Frosini, "Ildegarda di Bingen: Una biografia teologica", indica que a experiência de vida dos místicos ainda tem muito a dizer às pessoas de hoje.
A "extraordinária vastidão e profundidade" da teologia desenvolvida por Hildegard von Bingen, monja beneditina, que nasceu na Renânia, em Bermersheim, e viveu na Alemanha entre 1098 e 1179, em união íntima com Deus, pode oferecer respostas não só à própria concepção de "ser humano" – que tem sido descrita de modo reducionista pelas ciências ou com descrédito pelas Ciências do Sistema Terra, que o valorizam apenas como mais um ser em meio a tantos outros não humanos –, como às disputas teóricas da nossa era em torno da explicação última da realidade à luz dos desafios impostos pelo antropoceno, pelo novo regime climático e, igualmente, pelo desenvolvimento tecnocientífico.
Segundo Anita Prati, professora de Letras no Instituto Estatal de Educação Superior Francesco Gonzaga, em Castiglione delle Stiviere, na Itália, o pensamento hildegardiano ressoa "temas que hoje tocam a sensibilidade e a consciência de muitos, especialmente dos jovens: a relação do homem com a natureza e das criaturas com o Criador, a correspondência microcosmo-macrocosmo, a relação de cuidado, a harmonia interior". Em artigo publicado no Settimana News no ano passado, reproduzido na página eletrônica do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ela acentua que "é precisamente no cerne dessas temáticas, articuladas entre si na perspectiva do que agora definimos de 'ecologia integral'", que o conceito de Viriditas, empregado pela monja beneditina, é atual e oferece respostas não só para uma compreensão total da realidade - à medida que ela pode ser compreendida -, mas para a formação integral da pessoa humana e a vivência da vida.
"Viriditas", explica, "assim como o adjetivo viridis (verde) do qual deriva, compartilham a mesma raiz etimológica de palavras como vis/força, vir/homem, virgo/jovem mulher, ver/primavera, virtus/valor, virga/rebento, vita/princípio vital: todas palavras que remetem à ideia de um princípio energético que atua e opera na natureza e através da natureza, no mundo, na humanidade".
Teologicamente, acrescenta, no latim medieval, o termo tem um sentido próprio:
"Gregório Magno, em seu comentário sobre o Livro de Jó, associa por contraste a imagem da ariditas, isto é, da desolação destituída de vida e espiritualidade, com a da viriditas, o frescor vital que comunica a ideia de um acréscimo do vigor espiritual e da força da espiritualidade: se a terra devastada é o coração que ainda não encontrou o Deus-que-vem, a terra verde é o coração banhado por aquela chuva fecunda que é a vinda de Cristo. Mas, enquanto em Gregório Magno a palavra viriditas é encontrada quase exclusivamente nas Moralia in Job, em Hildegard o termo retorna com frequência significativa tanto nas obras de caráter teológico-proféticas quanto nos textos de caráter naturalista. Especial é, além disso, a relevância que o conceito de viriditas adquire dentro da Symphonia harmonie celestium revelationum, a Sinfonia da harmonia das revelações celestes, uma coleção de antífonas, sequências, responsórios e hinos de natureza litúrgica, compostos e musicados por Hildegard em meados do século XII".
De acordo com Marina Monego, "Hildegard foi uma mulher inspirada, devota e sábia, foi moderna em virtude de muitas das suas observações teológicas: por ter colocado sempre a atenção no homem em sua totalidade, nos seus vários aspectos; por sua devoção cristológica (Cristo no centro de tudo); por suas reflexões sobre o Espírito Santo; por sua posição em relação aos Cátaros, que contrastava, mas que considerava que não deveriam ser exterminados; pelas reflexões sobre a natureza e o cosmos, que tem em si a luz divina e, portanto, é digno de ser respeitado e amado como teofania divina (não estamos muito distantes do problema ecológico)". A sua figura, frisa, "ajuda a mostrar como o século XII, a chamada Idade Média, não tenha sido de todo um período obscuro, mas sim uma época repleta de cultura, iniciativas e personalidades brilhantes, que discutiam e refletiam sobre Deus, sobre o mundo e sobre o homem".
Neste sábado, 17 de setembro, a Igreja celebra a memória de Santa Hildegard, Doutora da Igreja Universal, título proclamado pelo então Papa Bento XVI em 2012.
A Sibila do Reno, como ficou conhecida, disse o pontífice em certa ocasião, é uma "autêntica mestra de teologia e profunda estudiosa das ciências naturais e da música". Em uma catequese dedicada à santa em 2010, no Palácio Apostólico de Castel Gandolfo, Bento XVI comentou a atualidade de Hildegard para a Igreja hoje, oito séculos depois de sua morte. Hildegard, sublinhou, é uma "grande mulher 'profetiza', que fala com grande atualidade também hoje a nós, com a sua corajosa capacidade de discernir os sinais dos tempos, com o seu amor pela criação, a sua medicina, a sua poesia, a sua música, que hoje é reconstruída, o seu amor por Cristo e pela Sua Igreja, sofredora também naquele tempo, ferida também naquele tempo pelos pecados dos padres e dos leigos, e tanto mais amada como corpo de Cristo".
Na segunda catequese sobre a santa católica, Bento XVI destacou a distinção, a sabedoria espiritual e a santidade de vida de Hildegard. "As visões místicas de Hildegard assemelham-se às dos profetas do Antigo Testamento: expressando-se com as categorias culturais e religiosas de sua época, interpretava à luz de Deus as Sagradas Escrituras, aplicando-as às várias circunstâncias da vida. Assim, todos aqueles que a ouviam se sentiam encorajados a praticar um estilo de vida cristã coerente e comprometido".
Na ocasião, o pontífice citou um trecho de uma carta da monja beneditina a São Bernardo de Claraval, com quem ela mantinha um estreito diálogo:
"A visão encanta todo o meu ser: não vejo com os olhos corporais, mas me aparece no espírito dos mistérios… Conheço o significado profundo do que é exposto no Saltério, nos Evangelhos e nos outros livros, que me são mostrados em visão. Ela queima como uma chama em meu coração e na minha alma, e me ensina a compreender profundamente o texto" (Epistolarium pars prima, I-XC: CCCM 91)
Hildegard von Bingen recebendo a visão e ditando-a ao monge Volmar e desenhando em uma tábua de cera
(Foto: Reprodução)
As visões místicas de Hildegard, esclareceu Bento XVI, "são ricas de conteúdos teológicos. Fazem referência aos principais eventos da história da salvação, e valem-se de uma linguagem principalmente poética e simbólica". A partir de escritos como o dela, complementou, "também a teologia pode receber uma contribuição especial das mulheres, porque são capazes de falar de Deus e dos mistérios da fé com a sua peculiar inteligência e sensibilidade".
Apesar das doenças a que foi acometida ao longo da vida, Hildegard von Bingen escreveu inúmeras cartas, dirigidas a autoridades civis, como aos imperadores do Império Romano-Germânico, Conrado III e Frederico I, conhecido como Frederico Barba Ruiva, a quem advertia sobre a necessidade de governar com justiça segundo os preceitos divinos, e eclesiásticas, como para os papas Eugenio III, Anastácio IV e Alexandre III, além de correspondências para bispos de toda a Alemanha, Jerusalém, França e Itália. A monja também foi autora de poesias, cantos e tratados de ciência natural e medicina. De sua produção teológica, destaca-se o "Tríptico de visões" – fazendo referência a um conjunto de três pinturas unidas que formam uma única imagem –, como são conhecidos seus três tratados teológicos:
1. Scivias Domini (Conhecei os caminhos do Senhor), ditado durante dez anos, entre 1141 e 1150;
2. Liber vitae meritorum (Livro dos méritos da vida), que trata sobre os vícios e virtudes, escrito ao longo de seis anos, entre 1158 e1163; e
3. Liber divinorum operum (Livro das obras divinas), redigido entre 1163 e 1173.
"Tríptico de visões" (Foto: Reprodução)
O teólogo Pierre Dumoulin, sacerdote francês da Abadia de São José de Clairval (Flavigny), autor de "Hildegarda de Bingen: Profetisa y doctora para el tercer milenio" (Madri: Edibesa, 2013), esclarece que as três obras são resultado de "imagens" que Hildegard "vê e descreve com precisão e escuta palavras que transmite com exatidão e depois comenta, sempre de forma inspirada". Segundo ele, "há uma progressão efetiva nos três livros: o Scivias é um amplo catecismo que traz as bases (as vias) do conhecimento necessário para uma vida cristã; o Livro dos méritos da vida ensina, em seguida, a discernir e executar de forma concreta as virtudes e suprimir os vícios da vida diária para poder acessar a contemplação; e o Livro das obras divinas oferece uma visão do homem no universo, onde o leitor em busca de sentido descobre sua verdadeira dignidade de ser humano e cristão".
Capa do livro "Hildegarda de Bingen: Profetisa y doctora para el tercer milenio", de Pierre Dumoulin
(Foto: Reprodução)
Livros sobre Hildegard von Bingen (Foto: Reprodução)
Bento XVI resume a produção teológica da monja beneditina na ênfase da profunda relação entre o homem e Deus. Ela, comenta, "nos recorda que toda a criação, da qual o homem é o vértice, recebe vida da Trindade. O escrito é centrado sobre a relação entre virtudes e vícios, a partir da qual o ser humano deve enfrentar cotidianamente o desafio dos vícios, que o afastam do caminho rumo a Deus e das virtudes, que o favorecem. O convite é para afastar-se do mal e glorificar a Deus e para entrar, depois de uma existência virtuosa, na vida de 'toda a alegria'. Na segunda obra, considerada por muitos a sua obra-prima, descreve ainda a criação na sua relação com Deus e a centralidade do homem, manifestando um forte cristocentrismo de sabor bíblico-patrístico. A Santa, que apresenta cinco visões inspiradas no Prólogo do Evangelho de São João, reporta as palavras que o Filho dirige ao Pai: 'Toda a obra que tu desejaste e que me confiou, eu a levei a bom termo, e eis que eu estou em ti, e tu em mim, e que nós somos um'" (Pars III, Visio X: PL 197, 1025a).
Na avaliação de Dumoulin, uma das contribuições centrais de Hildegard diz respeito à superação da dualidade entre corpo e alma e à retomada da unidade do ser humano. "Hildegard propõe uma visão de homem como 'pessoa', em que corpo, alma e espírito formam uma só identidade. (...) O primeiro princípio em que se baseia Hildegard é a unidade do ser humano segundo o ensino tradicional da Bíblia e da Igreja. (...) A Bíblia não cessa de afirmar esta unidade: o homem é único, total, completo, aberto ao infinito em todas as dimensões de seu ser porque é 'uno'. (...) A alma não possui ou tem um corpo, nem o corpo possui ou tem uma alma: são dois aspectos de uma única realidade. O homem não é uma alma caída em um corpo, nem um corpo movido por uma alma. A pessoa é um todo indivisível, mas com diferentes níveis de ser".
Ele explica ainda que "o conhecimento medieval de homem é diferente da divisão neoplatônica em dois elementos distintos, inclusive opostos: 'alma' e 'corpo', que foi imposta depois do Renascimento. A sabedoria medieval nunca opôs corpo e alma, mas conhecia a noção de níveis de ser e consciência. Descartes e seus discípulos, perdendo essa noção de níveis e o princípio de analogia, opuseram dois princípios que formam um todo e acentuaram essa dicotomia até o ponto de considerar o corpo como uma máquina, um robô manipulado pela razão".
Com o propósito de "abrir novas possibilidades de engajamento da teologia no âmbito acadêmico e sociocultural, caracterizando-a como teologia pública", em um contexto em que a própria teologia "é excluída dos sistemas dos saberes objetivos, aos quais a razão instrumental reconhece legitimidade racional universalmente aceita", o Instituto Humanitas Unisinos - IHU tem publicado artigos e entrevistas sobre o pensamento hildegardiano, contribuindo igualmente para o resgate e a memória de mulheres que deram contribuições importantes à cultura, à teologia, às ciências e à história da Igreja. A realização do evento "Rezar com os Místicos", promovido pelo CEPAT com o apoio do IHU, em setembro de 2017, sobre Hildegard von Bingen é um exemplo dessa iniciativa, com o propósito de "incentivar o estudo e o aprofundamento da mística e da oração, a partir de grandes exemplos de vivência da espiritualidade cristã".
No encontro, Bortolo Valle, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, disse que "a teologia desenvolvida por Hildegard von Bingen conserva uma dimensão intuitiva, importantíssima neste início de século, que pede a todos nós um conhecimento que não despreze a razão, mas que leve em conta também o coração humano. Neste sentido, supera o dualismo entre corpo e alma, evidenciando também a dimensão do espírito, da busca do ser humano pela verdade do espírito". Ele disse ainda que a monja beneditina "antecipa historicamente o que, atualmente, consideramos o esforço de uma visão holística do mundo, com a sua complexidade e o desafio de superar a fragmentação. Integra a intuição e a emoção, a mística com a dimensão intelectual. Enxerga o ser humano em sua relação com a natureza, buscando o saudável equilíbrio do microcosmo e deste com o macrocosmo".
Dois anos depois, em 2019, o IHU publicou a página especial intitulada "Vozes que desafiam. Hildegard de Bingen, mística e doutora da Igreja (1098-1179)", destacando artigos recentes que resgatam a atualidade do pensamento teológico da Sibila do Reno.
Na edição 385 da Revista IHU On-Line, intitulada "O feminino e o Mistério. A contribuição das mulheres para a Mística", foram publicadas duas entrevistas sobre a mística de Hildegard.
Victoria Cirlot, professora de Filologia Românica na Faculdade de Humanidades da Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona, Espanha, uma das entrevistadas da edição, classificou a vida de Hildegard como "um 'caso único' da história da mística e da espiritualidade universais". "Eu situo Hildegard nas origens da mística feminina, porque, embora sua obra seja sobretudo profética – e isso significa que ela não fala de si mesma nem da sua experiência, mas sim que Deus fala através dela –, também se ouve a primeira pessoa em seus textos. Naturalmente, de um modo muito mais oculto do que na mística flamenga ou alemã (refiro-me a uma Hadewijch, ou a uma Mechthild de Magdeburgo), que converteram sua experiência interior no tema de seus escritos. Mas o fato de que sua obra contenha passagens autobiográficas que se referem à sua própria experiência fazem dela, a meu modo de ver, em um claro precedente", disse.
Felisa Elizondo, doutora em Teologia pela Pontifícia Universidade Santo Tomás de Aquino, em Roma, e professora da cátedra do Instituto Superior de Pastoral – ISP da Universidade Pontifícia de Salamanca e da de San Dámaso, de Madri, também entrevistada naquela edição, sublinhou que apesar de as mulheres terem vivido "à margem da teologia acadêmica", "viveram a fé e cultivaram a relação com Deus que costumamos qualificar de mística". Hildegard, no entanto, destaca, "representa uma admirável exceção com relação ao habitual clichê das mulheres da Idade Média: pelo seu caráter, seus dotes, sua biografia, sua cultura, sua autoridade e pela preservação de seus escritos".
Na editoria Oração inter-religiosa, publicada semanalmente na página eletrônica do IHU, em parceria com o teólogo Faustino Teixeira, publicou-se o poema intitulado "Para as nove ordens dos espíritos celestes":
Para as nove ordens dos espíritos celestes
Ó gloriosa luz vivente, que vives na divindade!
Anjos que fixais vossos olhos com ardente desejo,
Em meio à mística escuridão que rodeia todas as criaturas,
Sobre aquele de que vossos desejos jamais se podem saturar!
Ó gloriosa alegria, viver em vossa forma e natureza!
Com efeito, sois livres de toda obra do mal,
Embora aquele mal primeiramente tenha aparecido
em vossa companhia,
O anjo caído, que tentou plainar acima de Deus,
E, portanto, aquele deformado foi submerso na ruína.
E, pois, para si mesmo preparou uma queda maior
Mediante suas insinuações àqueles que a mão de Deus fez.
Ó anjos de faces brilhantes, que guardais as pessoas,
Ó vós, arcanjos, que levais as almas justas para o céu,
E vós, ó virtudes e potências, ó principados,
Dominações e tronos, que sois contados secretamente em cinco,
E vós, querubins e serafins, selo dos segredos de Deus,
Louvados sejais, todos vós, que contemplais o coração do Pai,
E vedes o Ancião dos Dias a brotar na fonte,
E seus íntimos poderes aparecerem de seu coração,
semelhantes a uma face.
Para Pierre Dumoulin, um dos estudiosos da obra de Hildegard, esta doutora da Igreja "nos convida a redescobrir a mensagem divina escondida nessa beleza oferecida a todos. Não é naturalismo; é o espírito Beneditino: cooperar na obra de Deus e cantar suas maravilhas, transformar o universo ao domesticá-lo e deixar às gerações futuras um mundo mais bonito". E acrescenta: "O que encontro de brilhante no trabalho de Hildegard é precisamente sua visão do mundo como o lugar onde se exerce a responsabilidade do homem. Hildegard descreve as consequências da injustiça dos homens até nas transformações do universo. Anuncia os desastres naturais que vemos como fruto da cobiça, do egoísmo, das mentiras e do orgulho humano: estabelece um vínculo moral entre a justiça dos homens e os desastres. Ela não poderia imaginar que o que escreveu há mais de oito séculos sucedesse hoje. Foi inspirada!".