10 Julho 2020
Redescobrindo a maneira antiga de se unir em oração mesmo quando afastados fisicamente.
O artigo é de Patricia Rumsey, religiosa da Ordem de Santa Clara e mestra e doutora em teologia pela Universidade do País de Gales, em Lampeter, publicado por La Croix International, 09-07-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Quando escreveu a importante obra Liturgia Comparada (Barcelona: Centre de Pastoral Litúrgica, 2005), Anton Baumstark (1872-1948) abriu o texto com a seguinte frase: “Na liturgia, tomamos ciência do coração vivo da Igreja”. Com isso ele destacava a importância da oração pública do Povo de Deus.
A própria palavra “liturgia” indica uma obra (ergon) realizada por ou em nome do laos, o povo, o público em geral. Mas, via de regra, essa não tem sido a experiência do Povo de Deus neste período de confinamento social (lockdown): as igrejas foram fechadas; nenhuma celebração pública poderá ser realizada num futuro próximo; as pessoas foram impossibilitadas de orar e adorar juntas. A “liturgia”, no sentido de “a obra do povo”, aparentemente, deixou de acontecer.
Muitos recorrem às missas transmitidas ao vivo, com graus variados de satisfação. Mas assistir a uma celebração realizada por um padre solitário na tela do computador, provavelmente sem ninguém para dar as respostas, “é ter ciência do coração vivo da Igreja”?
A tradição da Igreja sempre defendeu que o padre, mesmo ao rezar a missa sozinho, deve ter pelo menos um servo, para representar todo o Povo de Deus. Mas, nos últimos tempos, nem sequer isso tem sido possível.
Que inspiração ou iluminação podemos encontrar na história da Igreja?
Sob diversas formas, nesta pandemia nós nos aproximamos, mais do que nunca, dos nossos irmãos e irmãs dos primeiros três séculos. Em vez de igrejas que foram fechadas, eles simplesmente não tinham igreja alguma.
Eles não podiam realizar os cultos juntos, em grupos, por medo de perseguição e até por medo de incorrer em sentença de morte. O cristianismo era religião proibida no Império Romano e adorar o Deus cristão equivalia à traição. O fiel poderia ser punido com uma morte particularmente horrível.
Mas de seus lares solitários, ao longo dos primeiros trezentos anos, talvez eles tenham uma mensagem para nós hoje. Eles não tinham igrejas. Para eles, “a Igreja” queria dizer “as pessoas”.
A palavra ekklesia aparece 114 vezes no Novo Testamento. É traduzida como “igreja” e é sempre usada em referência às pessoas – nunca a um edifício.
A Igreja é feita de pessoas, não de prédios. São as pessoas que foram “chamadas para fora” (ek klesia) para formar o Corpo de Cristo e que tinham ciência da união delas em Cristo.
No entanto, se essa unidade não pudesse ser expressa unindo-se em um só lugar, o que era proibido, eles entenderam que poderiam se unir – e serem unidos – em um momento compartilhado de tempo, e acreditavam que poderiam encontrar a unidade orando simultaneamente, mesmo se estivessem fisicamente separados.
Essa prática já existia no judaísmo, como vemos com frequência no Antigo Testamento e nos salmos: O judeu devoto orava “de tarde, pela manhã e ao meio-dia” e grandes figuras do Antigo Testamento, como Judite e Elias, realizavam suas poderosas ações ao mesmo tempo enquanto o sacrifício da tarde era oferecido no templo.
Isto foi mantido pelos primeiros cristãos, como vemos na Didaquê:
“Também não rezeis como os hipócritas, mas como o Senhor mandou no seu Evangelho: Nosso Pai no Céu, que Vosso Nome seja santificado, que Vosso Reino venha, que Vossa vontade seja feita na Terra, assim como no Céu; dá-nos hoje o pão necessário (cotidiano), perdoa a nossa ofensa assim como nós perdoamos aos que nos têm ofendido e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal, pois Vosso é o Poder e a Glória pelos séculos. Assim rezai três vezes por dia.”
Assim, três vezes por dia – presumivelmente, pela manhã, ao meio-dia e à noite – eles rezavam o Pai-Nosso e se fortaleciam no conhecimento de que os seus companheiros cristãos faziam o mesmo.
Não poderíamos fazer o mesmo? Afinal, a ideia não é de todo estranha.
Neste período de confinamento, milhares de pessoas na Grã-Bretanha realizaram a “liturgia de ação de graças” para os profissionais da saúde e outros trabalhadores, aplaudindo-os às 20 horas de quinta-feira. Na atividade, houve a demonstração de um grande entusiasmo.
Todos conhecemos a liturgia secular do “minuto de silêncio” em tempos de tragédia ou tristeza nacional, quando todos no país fazem uma pausa nos afazeres cotidianos, unidos num momento de reflexão e pesar.
Os três pai-nossos da Didaquê evoluíram gradualmente ao longo dos anos transformando-se na Liturgia das Horas, na Oração da Igreja e no Ofício Divino.
Como era em latim e exigia uma série de livros caros, o Ofício tornou-se a oração dos religiosos “profissionais”: padres, monges e freiras.
Porém, após o Concílio Vaticano II (1962-1965), a Oração da Igreja foi traduzida para as línguas modernas e agora está sendo rezada cada vez mais, às vezes de forma simplificada, por todo o Povo de Deus.
Não poderíamos, enquanto tentamos sair deste período de confinamento social e enquanto e as celebrações religiosas nas igrejas ainda são extremamente limitadas, encontrar o mesmo conforto e a mesma força que os nossos primeiros irmãos e irmãs de fé, sabendo que todos estamos orando juntos, unidos no tempo e compartilhando a Palavra de Deus?
Se esta participação na oração da Liturgia das Horas se tornar uma prática mais aceita na Igreja, talvez o coronavírus (em si, parte da criação de Deus) irá nos ensinar algo.
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A liturgia depois do confinamento: O vírus está nos dizendo algo? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU