Encerrando o Ciclo de Estudos “A Opção Francisco. A Igreja e a mudança epocal”, Raniero La Valle abordará os rumos que o pontífice tem adotado neste contexto de guerra e de conturbada geopolítica
Houve um tempo em que defender a cristandade era sinônimo de união em torno do ideal de Jesus de Cristo. Mais do que um só povo ou um Estado moderno, esta seria uma grande nação global em que todos falariam a mesma língua. Falariam, porque não foi isso que aconteceu. Num rápido sobrevoo sobre a história da Igreja colecionamos contendas, crismas e disputas que quase sempre acabavam em sangue. No Medievo, uma das mais tristes marcas foram as Cruzadas, e sangue de inocentes e daqueles que se opunham ao ideal eram derramados com muita violência. Por óbvio, essa linguagem em nada imita a do Cristo, que busca uma unidade na paz, alcançada essencialmente pelo amor.
Também devemos nos afastar de flertes apologéticos, para o bem e para o mal, e compreendermos que nem tudo se reduz à Igreja. No entanto, é bem verdade que diante de grandes problemas do mundo no passado sua resposta não foi aquela que sempre se imaginou como gênese de um humanismo cristão. Talvez, seja por isso que muitos ainda torcem o nariz quando se fala em cristandade, evocando um pensamento medieval de um único Deus em uma única religião a ditar regras políticas e espirituais no mundo. Neste sentido, é sim de se celebrar um fim da cristandade e uma abertura à multiplicidade do mundo. Mas e nós? Por que falar ou pensar em cristandade enquanto somos soterrados por outros problemas? Bem, quem enseja um caminho para uma resposta é Raniero La Valle, jornalista e pensador italiano, em artigo reproduzido pelo IHU em setembro de 2021.
“Quanto a nós, pensamos que devem ser experimentadas todas as possibilidades da política e acreditamos no humanismo das religiões e na sua capacidade de atualizar a sua mensagem em fidelidade às suas próprias premissas. Existe um estereótipo que faz das crenças religiosas o reino do imutável, mas, como diz a experiência, elas são capazes de mudar a si mesmas para responder a problemas novos”.
Neste texto, La Valle refletia sobre o lugar da religião no mundo secularizado de hoje. Ou melhor, das religiões, pois ele tratava acerca de conflitos justamente a partir de pontos de dissonância entre os credos, especialmente a partir do judaísmo e da relação triádica com o islamismo e o catolicismo, ao olhar para o Estado de Israel no mundo atual. O caso é curioso, pois naquele chão que pisam e onde germinaram as três maiores religiões monoteístas, nunca reinou a paz. Nem mesmo a pax romana, em que todas as ações eram controladas e até suprimidas em nome de um ideal de paz – que valia só para alguns – chegou mesmo a fazer aquela uma terra de paz. E, hoje, como lembra o Papa Francisco, vivem-se ainda por lá tempos de violência inadmissível.
La Valle, e pouca gente no mundo, supunha que o ano de 2022 abriria com uma guerra entre Rússia e Ucrânia que deixou até hoje o mundo em suspenso, sem respirar e imobilizado pelo medo. “Esta guerra não é uma parte da ‘guerra mundial aos pedaços’, mas já representa toda a guerra mundial. Resta a grande incógnita sobre o papel que as armas nucleares desempenhariam”, definiu La Valle em artigo publicado em maio de 2023.
No centro desta guerra, estão em jogo disputas por territórios, incidência do Ocidente norte-americanizado sobre o Oriente, a velha disputa entre polos geográficos tendo como protagonista, além de Estados Unidos, as velhas nações europeias diante da China e da Rússia. Um jogo que impacta o mundo todo – incluindo o Brasil, destaca-se.
Olhando a fundo este tabuleiro, percebemos que tem outros elementos que fazem mover as peças neste jogo de morte entre Rússia e Ucrânia. E a religião, novamente, tem seu espaço político – embora baseado na fé – muito bem demarcado.
“Compreende-se melhor o sentido do passeio pelas Sete Igrejas que o presidente Zelensky fez, da Polônia a Roma, Vaticano, Berlim, Paris, Londres e Bruxelas. Seus objetivos eram três: a confirmação do apoio político de seus aliados e a garantia de que seria mantido mesmo que a contraofensiva anunciada durasse muito tempo; o pedido de mais armas, e sobretudo caças para a guerra aérea com a Rússia, porque uma guerra não pode ser vencida sem o domínio dos céus; puxar o Papa para seu lado, fazê-lo comprometer sua imparcialidade e seu papel de mediador, adicioná-lo também à cruzada ocidental contra a Rússia, dissuadi-lo de querer falar com Putin”, observa La Valle no mesmo texto.
Para alguns pode parecer surpresa, afinal, que importância tem "puxar um Papa pro seu lado"? Mas numa guerra em que não há mocinhos e ambos os lados fazem uso dos elementos ligados à religião, mesmo vivendo numa pós-cristandade e num mundo secularizado este jogo também é jogado. Para compreender melhor, podemos nos ater no estilo que Francisco adota nesta geopolítica de tempos de guerra, sempre muito destacado por La Valle. O jornalista, em entrevista concedida ao IHU em 2018, sinalizou que Francisco se anunciava como um único e atual líder mundial. Não porque trazia uma ideia de cristandade ou de uma piedosa unidade cristã, mas porque só ele se pautava pelo bem comum.
“Parecia que tínhamos começado a fazer isso [construção global do bem comum] em 1945, após a tragédia da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto, quando foram fundadas as Nações Unidas, dando-lhes uma constituição democrática, e foi pensada a construção de uma comunidade internacional de direito, para repudiar a guerra e colocar no centro de todos os direitos e de todos os Estados a dignidade e a igualdade de todas as pessoas. Mas depois foi acontecendo uma grande restauração, um retorno à idade da barbárie; a fome de milhões de pessoas é decidida com um clique e é possível matar à distância com os drones”, diz nesta entrevista.
Só que mais de um ano já passou, drones já foram usados e agora usam-se bombas de dispersão que matam sem qualquer distinção e a guerra parece não arrefecer. Que caminhos adotar para a efetivação da paz neste complicado contexto? Em que medida as opções de Francisco podem ser luz num caminho sombrio? E qual sua incidência num mundo pós-cristandade?
Questões que requerem respostas complexas e que devem estar presentes em mais uma conferência de Raniero La Valle, promovida pelo IHU, dentro do Ciclo de Estudos "A Opção Francisco. A Igreja e a mudança epocal". A atividade ocorre por videoconferência, nesta quinta-feira, 17-08-2023, a partir das 10h, com transmissão ao vivo pelos canais do IHU nas redes sociais.
Raniero La Valle considera Francisco um grande mediador geopolítico, mas não somente pelas ações do presente. Jornalista “das antigas”, como se diz no jargão da área, ele dirigiu L'Avvenire d'Italia. Esta publicação foi um jornal italiano, fundado em Bolonha, com inspiração católica, que circulou de 1896 a 1968. Depois, fundiu-se com o L'Italia para formar o novo jornal católico Avvenire, publicado até hoje. Entre as tantas coberturas que La Valle e seu jornal estiveram à frente está a do Concílio Vaticano II, de 1962 a 1965.
A extensa cobertura diária fez do jornalista um profundo conhecedor do que até hoje conhecemos como o “espírito do Concílio”, ou seja, uma linha de pensamento – e até de visão de mundo – que inspira as decisões e a escrita dos documentos conciliares. Na época o Papa Francisco, então ainda Jorge Mario Bergoglio, trabalhava e estava mergulhado no Vaticano II. É por isso que seu pontificado é verdadeiramente o primeiro fruto deste Concílio.
Para compreender o protagonismo de Francisco como grande estadista, que chama para si a missão de estabelecer a paz, como diz o próprio La Valle, é preciso compreender a virada de chave que o Concílio promove. Bergoglio, quando ascende à Cátedra de Pedro deixa de lado o messianismo apologético e faz um outro messianismo, àquele que, para La Valle, diz respeito à missão. “Quando se fala de um pontificado messiânico, fala-se da verdadeira missão (embora raramente cumprida) de um papa cristão”, sintetiza, em entrevista ao IHU.
É possível afirmar que La Valle é um humanista e, por isso, seu olhar para a guerra entre Rússia e Ucrânia passa elementarmente pela necessidade de promoção da paz. Isso o aproxima de Francisco muito menos pelo catolicismo em si e mais pela forma como ambos seguem uma trilha do humanismo cristão, que vê a Igreja no mundo e chama para si o problema do mundo, buscando a mediação segundo a própria experiência de Cristo.
Logo, bem longe da cristandade medieval, como Francisco, La Valle sonha e trabalha pela construção da paz como a única soberana no mundo, regendo todos os povos. “Devemos depor do trono todo pretenso governante universal e tornar a paz soberana. Ela é a mãe e o rei de todas as coisas. É ela que deve se tornar o sujeito constituinte, que deve ser tornada sistema. Cabe à política, interna e internacional, a missão de prover a isso”, defende, em artigo recente publicado no IHU.
Assim, uma opção de Francisco na bélica geopolítica de nosso tempo é a opção pela paz. Como defende La Valle, em conferência realizada na Biblioteca do Senado Italiano:
“Ante a alternativa 'Guerra ou Paz?' é muito importante tentar entender a verdadeira natureza desta guerra. Cada vez mais parece que não se trata de um acontecimento circunscrito, mas de um capítulo de uma guerra constituinte que investe toda a ordem internacional e a estrutura como um sistema de dominação e de guerra, cujos efeitos são imprevisíveis e podem ser devastadores para todos, para a comunidade mundial”. “Como sempre diz o Papa, é a atormentada Ucrânia (além das populações pobres de meio mundo afetadas pela crise alimentar e energética). Mas esta vítima ucraniana foi imolada não por um, mas por muitos oficiantes do sacrifício. Putin foi o primeiro a identificá-lo como o fulcro da contradição e causa da violência e lançou-o na guerra, mas os amigos e aliados da Ucrânia imediatamente o assumiram como uma vítima a ser levantada para uma solução salvadora para a crise, e fizeram de Zelensky o herói sacrificado aos valores e à identidade do Ocidente; Europa, América e OTAN alcançaram magicamente a sua unidade, estabelecendo a sua comunhão nas armas enviadas à vítima e confiando os seus sonhos de glória à sua morte sacrificial, passada como vitória”.
Jornalista, político e intelectual italiano, ocupa o cargo de senador vitalício na Itália. Formado em direito, dedicou-se imediatamente ao jornalismo; em 1976 tornou-se parlamentar da Esquerda Independente e trabalhou nas Comissões de Relações Exteriores e de Defesa das duas Câmaras até 1992. É diretor da Vasti, escola de crítica de antropologia, e atua como palestrante e escritor.
Raniero La Valle (Foto: VaticanMedia)
Em fevereiro de 1961 foi chamado para dirigir L'Avvenire d'Italia. Durante os anos do Concílio Vaticano II, o jornal foi um dos órgãos de informação que mais cobriram o evento. Ele renunciou ao cargo de editor do jornal em 1967. Continua sua atividade jornalística produzindo documentários e reportagens investigativas sobre os assuntos mais quentes da atualidade para a RAI, sempre de olho em questões de paz e justiça internacional (guerra no Vietnã, Camboja, Palestina; ditaduras na América Latina, marcha dos pacifistas em Sarajevo).