21 Julho 2022
"Este é o legado do Papa Francisco. Objetar, rebelar-se, resistir. Mas não por uma transgressão, mas por uma obediência superior. A Itália foi mais longe que os outros nesse caminho, e se a Costa Rica, na América Latina, é o primeiro país a abolir o exército, a Itália é o primeiro país em todo o Ocidente com todas as suas Constituições que chamou a objeção de consciência de 'obediência à consciência'", escreve Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por seu blog, 19-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Draghi foi avisado: Zelensky não gosta que uma crise do governo na Itália perturbe o incessante fluxo de armas para a Ucrânia nem, como diz seu conselheiro Podolyak, "a tradicional luta política interna nos países ocidentais" (ou seja, a democracia) "deve minar a unidade nas questões fundamentais da luta entre o bem e o mal", ou seja, questionar o mencionado "fornecimento de armas à Ucrânia". E Johnson também deixa a desejar. Portanto, devemos esperar até amanhã que o destino do governo Draghi seja decidido não em nossas colinas fatais, mas onde está em jogo o destino de nossas Constituições democráticas e da própria paz do mundo, já que o colocamos nas mãos das atuais trágicas estrelas da guerra e do poder.
No entanto, esperar não significa obedecer. Portanto, é bom estar ciente de outro aviso “muito, muito importante”, como escreve Enrico Peyretti. “Pela primeira vez, um papa convida a recusar ir à guerra por razões morais, de consciência. Não só condena a guerra ('massacre inútil'), mas pede - não aos governantes, mas aos soldados - que não a façam, que desobedeçam! A revolução de Francisco contra a política, inclusive democrática, que tem o assassinato em massa entre seus meios regulares. Ele pede aos jovens que boicotem, desobedeçam, façam fracassarem os governos de guerra.”
É realmente uma novidade? Se for, é pelo fato de ter sido dita por um papa, não por estar inscrita no Evangelho há séculos, e ainda hoje cumprida. E precisamente nessa mensagem dirigida em 6 de julho à Conferência Europeia dos Jovens que se reuniu em Praga, o Papa Francisco tomou como exemplo a objeção de consciência feita em 1943 por um jovem austríaco, cuja memória ainda é muito viva no Alto Adige, à qual o nosso Francesco Comina dedicou um belo livro publicado pela EMI, “Solo contro Hitler. Franz Jägerstätter. Il primato della coscienza” (Sozinho contra Hitler. Franz Jägerstätter. O primado da consciência, em tradução livre).
O Papa escreveu: "Gostaria de convidá-los a conhecer uma figura extraordinária de um jovem objetor, um jovem europeu de 'olhos grandes', que lutou contra o nazismo durante a Segunda Guerra Mundial, Franz Jägerstätter, proclamado 'beato' pelo Papa Bento XVI. Franz era um jovem camponês austríaco que, por causa de sua fé católica, fez objeção de consciência diante da injunção de jurar fidelidade a Hitler e ir à guerra. Franz era um jovem alegre, simpático e despreocupado que, crescendo, graças também à esposa Francisca, com quem teve três filhos, mudou sua vida e amadureceu profundas convicções."
"Quando foi chamado às armas, recusou, porque considerava injusto matar vidas inocentes. Essa decisão desencadeou reações duras contra ele de parte de sua comunidade, do prefeito, até mesmo de familiares. Um padre tentou dissuadi-lo por causa de sua família. Todos estavam contra ele, exceto sua esposa Francisca, que, apesar de conhecer os terríveis perigos, sempre esteve do lado do marido e o apoiou até o fim. Apesar das lisonjas e torturas, Franz preferiu ser morto a matar. Ele considerava a guerra totalmente injustificada. Se todos os jovens convocados às armas tivessem feito como ele, Hitler não teria conseguido realizar seus planos diabólicos. Para vencer, o mal precisa de cúmplices. Franz Jägerstätter foi morto na prisão onde também estava preso seu contemporâneo Dietrich Bonhoeffer, um jovem teólogo luterano alemão, antinazista, que também teve o mesmo fim trágico.”
Não é coincidência que o Papa Francisco tenha inserido essa lembrança na série das guerras mundiais travadas na Europa, incluindo a atual, que se soma "aos numerosos conflitos que ocorrem em várias regiões do mundo". "Caros jovens" - escreveu - "enquanto vocês estão realizando a vossa Conferência, na Ucrânia - que não é UE, mas é Europa - uma guerra absurda está sendo travada ... A ideia de uma Europa unida surgiu de um forte desejo de paz depois de tantas guerras travadas no continente, e levou a um período de paz que durou setenta anos. Agora todos devemos nos empenhar a pôr fim a esse massacre da guerra, onde, como sempre, poucos poderosos decidem e enviam milhares de jovens para lutar e morrer. Em casos como esse é legítimo se rebelar!"
Rebelar-se, mas com a força de qual cultura? Ao dirigir este convite aos jovens para se rebelar e resistir, o Papa Francisco referiu-se ao “Pacto Educativo” que, como disse, é “uma aliança lançada em setembro de 2019 entre educadores de todo o mundo para educar as jovens gerações à fraternidade”. Diante do curso atual dos eventos, Francisco, como se estivesse em uma crise de esperança histórica (certamente não daquela teologal), apelou, portanto, à educação, à construção de um pensamento; parece dizer aos jovens: se vocês não mudarem a cultura, se vocês não colocarem em jogo as categorias políticas, antropológicas, sociais que nos trouxeram até aqui, se vocês não refundarem o direito, se vocês não mudarem as visões do mundo que o pensam como fragmentado, dividido e inimigo, se não derrubarem a hegemonia da guerra, se não forem à escola da justiça e da fraternidade, ficarão à mercê da mentira e da violência , vocês serão presas de regimes impiedosos, de pulsões de guerra e de domínio, vocês não poderão construir o futuro que vocês sonham, vocês não terão futuro.
E acrescenta que é preciso educar todos para uma vida mais fraterna, baseada não na competitividade, mas na solidariedade, mudar o sistema: "A vossa maior aspiração, caros jovens, não deve ser entrar nos ambientes de formação da elite, onde podem ingressar apenas aqueles que têm muito dinheiro. Essas instituições muitas vezes têm interesse em manter o status quo, em formar pessoas que garantam o funcionamento do sistema como ele é. Em vez disso, devem ser apreciadas aquelas realidades que unem a qualidade da formação com o serviço ao próximo, sabendo que a finalidade da educação é o crescimento da pessoa orientada para o bem comum. Serão essas experiências solidárias que mudarão o mundo, não aquelas “exclusivas” (e excludentes) das escolas de elite. Excelência sim, mas para todos, não apenas para alguns”.
Este é o legado do Papa Francisco. Objetar, rebelar-se, resistir. Mas não por uma transgressão, mas por uma obediência superior. A Itália foi mais longe que os outros nesse caminho, e se a Costa Rica, na América Latina, é o primeiro país a abolir o exército, a Itália é o primeiro país em todo o Ocidente com todas as suas Constituições que chamou a objeção de consciência de "obediência à consciência".
Assim está definida de fato na lei de 8 de Julho de 1998 sobre a reforma da objeção de consciência que diz, no seu primeiro artigo: "Os cidadãos que, por obediência à consciência, (...), opondo-se ao uso de armas, não aceitam alistar-se nas Forças Armadas e nos Corpos Armados do Estado, podem cumprir as suas obrigações de serviço militar prestando, em substituição ao serviço militar, um serviço civil, diferente por natureza e autônomo do serviço militar, mas como este em resposta ao dever constitucional de defesa da Pátria e ordenado para os fins previstos nos Princípios Fundamentais da Constituição”.
Quando em janeiro de 1992 conseguimos introduzir essa formulação na nova lei da objeção de consciência, o fato pareceu tão escandaloso que o Presidente da República Cossiga recusou-se a assiná-la e a devolveu às Câmaras, que dissolveu logo em seguida; foi apenas três legislaturas depois, na décima terceira, que naquela idêntica formulação a lei foi novamente aprovada e promulgada; e foi para exorcizar aquele primado da consciência sobre a obediência pronta a matar que, em 2005, o poder militar e o governo Berlusconi aboliram a própria obrigação do serviço militar, não para dispensar a guerra, mas para protegê-la de recusas e críticas, para torná-la inquestionável. O que significa que a cultura funciona, a educação pode quebrar o conformismo, a força das ideias pode mudar a política.
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Rebelar-se é justo. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU