27 Fevereiro 2023
Por mais que se queria afastar esse fantasma, estamos perto da alternativa do diabo: a guerra total – e, portanto, nuclear – contra a Rússia ou o gradual abandono da Ucrânia ao seu destino.
O comentário é de Lucio Caracciolo, jornalista e analista geopolítico italiano, diretor da revista Limes, em artigo publicado por La Stampa, 24-02-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O drama da guerra na Ucrânia é que ela só parece destinada a acabar quando um ou ambos os adversários não tiverem mais recursos para continuá-la. Carnificina infinita, que poderia mover a atual linha do front em algumas dezenas de quilômetros e ceifar outras centenas de milhares de vítimas. Um inútil massacre, como Bento XV rotulou desesperadamente a Primeira Guerra Mundial.
Mas é realmente assim? Somos prisioneiros de um destino? Se for possível, deve-se duvidar disso. E é possível, porque há margens para congelar o conflito antes que o inverno atômico o faça. E devemos duvidar disso, porque somos humanos, assim como os adversários – embora nos dois campos haja quem considere o inimigo desumano –, e, por isso, movidos pelo instinto de autopreservação.
Para explorar essa necessidade, é preciso analisar os personagens do embate. Em busca de uma fresta a partir de onde seja possível começar um caminho para sair dele. Premissa: não poderá ser uma verdadeira paz, dados o ódio e os horrores acumulados. Mas um longo período de suspensão já serviria para temperar o clima apocalíptico e preparar, senão a paz, pelo menos a não guerra.
A primeira, direta, é o embate entre o império russo em decadência e a nação ucraniana em formação, hoje unida como nunca pela agressão de Moscou; amanhã veremos. Um jogo que começou há mais de 100 anos, com longas fases pacíficas e várias erupções bélicas, das quais é difícil ver o fim, senão no desaparecimento de um ou de ambos os sujeitos em competição. O que certamente levaria a conflitos maiores e mais vastos.
A segunda questão em jogo, cada vez menos indireta, é entre Rússia e Estados Unidos, ou “Ocidente coletivo”, para usar o jargão de Putin. Está em jogo a fronteira oriental da Otan, que, para Moscou, não deve incluir a Ucrânia. Razão de fundo adotada pelo Kremlin para explicar a “operação militar especial”. Essa dimensão nos afeta diretamente como europeus e italianos, parte do campo ocidental. Sob todos os pontos de vista: de segurança, econômico, cultural, psicológico.
A terceira, ainda fria, enquadra o campo ucraniano de batalha na competição estratégica entre Estados Unidos e China, com a Rússia cada vez mais pressionada por Pequim por falta de alternativas. Os estadunidenses consideram esse jogo como primordial, sendo a Ucrânia um palco importante, mas não decisivo.
Pode-se deduzir disso que a primeira dimensão, a russo-ucraniana, é quase intratável, sob o risco até de produzir um massacre potencialmente infinito, pelo menos enquanto existirem um russo e um ucraniano.
A segunda e a terceira versões, por sua vez, são gerenciáveis. Em outras palavras: serão os Estados Unidos e a Rússia que decidirão o fim ou a continuação do conflito. Com a China em veste de intermediário desonesto (os chineses têm todo o interesse em manter Moscou de pé e enfraquecer Washington) que entrou sensacionalmente no jogo por meio de um projeto de paz acertado em parte com Putin, cujos eventuais efeitos já poderemos medir nos próximos dias.
Algo está se movendo, sutilmente, no triângulo sino-russo-estadunidense. Em particular entre Moscou e Washington. As sondagens secretas até agora não produziram nada de visível, mas o chefe das Forças Armadas dos Estados Unidos, general Mark Milley, ao afirmar que não vê como alguém pode ganhar essa guerra, com pragmatismo militar levantou a urgência de um diálogo concreto sobre qual o compromisso pode interromper as hostilidades.
O raciocínio do Pentágono – contraposto por outros centros de poder, como o Conselho de Segurança Nacional e o Departamento de Estado, com Biden chamado a encontrar um ponto de composição entre os diversos órgãos, inclusive o de inteligência – é o seguinte.
Estamos em uma guerra de atrito. Para vencê-la, é preciso destruir o moral, as infraestruturas e a produção de armas do inimigo. O que os russos estão fazendo metodicamente, a um preço muito alto, que os ucranianos não podem fazer, e que os estadunidenses não querem arriscar, porque seria uma guerra nuclear EUA-Rússia.
Além disso, as ações ocidentais, incluindo as estadunidenses, estão encolhendo perigosamente. O Pentágono lamenta que os fornecimentos de armas destinados a Taiwan e aliados asiáticos estão sendo desviados para a Ucrânia. Para surpresa quase geral, os russos parecem ainda dispor de armazéns ainda semicheios, apesar das enormes perdas sofridas. Acima de tudo, eles produzem novas armas em um ritmo impensável para nós. Por fim, as sanções não afetam a economia russa por enquanto, até porque são frequentemente contornadas pelos países que as decretaram.
Resultado: o establishment militar e parte do establishment político estadunidense apontam para a solução “coreana”. Em algum momento, até o fim do ano, uma linha vai ser traçada no campo, ao longo da qual o conflito será bloqueado. Armistício sem limite de tempo. Com uma ampla zona desmilitarizada para dividir os adversários.
As questões territoriais são encaminhadas para uma futura conferência de paz. Aos ucranianos é oferecida uma garantia internacional de segurança que envolva russos, estadunidenses e outras potências, enquanto os europeus concedem a Kiev um caminho rápido de ingresso na União Europeia e, portanto, acesso a fundos especiais para a reconstrução.
A Ucrânia continua reivindicando o legítimo retorno às fronteiras de 1991; a Rússia, a anexação ilegítima de quatro regiões do Donbass, aliás, não totalmente conquistadas.
Russos e especialmente ucranianos não querem ouvir falar de compromisso por enquanto. Mesmo que sujo.
Esperar, como fazem alguns estadunidenses, que Kiev possa vender um resultado semelhante à sua opinião pública como uma vitória parece realmente demais. Embora alguns em Moscou talvez batessem no ombro de Putin para lhe explicar que é apropriado deixar o leme para outras mãos, dado o desastre produzido pela invasão em termos de segurança e de prestígio da Federação Russa. Os czares não estão no Kremlin para se sujeitarem a Pequim.
Existem alternativas possíveis? Certamente sim. Todas terríveis. A menos que consideremos a vitória militar total da Ucrânia nos termos definidos por Zelensky – equivalentes à capitulação da Rússia – como realizável em modos e em tempos suportáveis. Pelos ucranianos, em primeiro lugar.
Caso contrário, poderemos chegar à catástrofe quase sem perceber. Quanto mais o tempo passa, mais os russos entram com os dois pés na guerra que começou com uma tentativa de golpe de Estado falimentar. Putin fala de cultura de guerra como destino para a Rússia. Embora possamos logo perceber que, sem uma intervenção direta da Otan ou de alguns países do Atlântico – os Estados Unidos, em primeiro lugar – a Ucrânia estará destinada ao colapso.
Por mais que se queria afastar esse fantasma, estamos perto da alternativa do diabo: a guerra total – e, portanto, nuclear – contra a Rússia ou o gradual abandono de Kiev ao seu destino.
O confronto direto com Moscou, no qual a China provavelmente se envolveria, seria a Terceira Guerra Mundial. Da qual dificilmente sairia um vencedor. A ruína da Ucrânia seria insuportável para os ucranianos, vergonhosa para nós, fonte de novos conflitos entre vizinhos interessados nos espólios do vencido.
Alternativa evitável? Sim. Mas o tempo está se esgotando.
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É possível evitar uma Terceira Guerra Mundial? Artigo de Lucio Caracciolo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU