24 Fevereiro 2023
"A justificativa do patriarca russo repete a narrativa que também se encontra no discurso oficial apoiado pelo governo russo: a guerra é defensiva contra o Ocidente que busca agressivamente impor seus valores e seu estilo de vida à população ortodoxa da Europa oriental. Como o governo ucraniano atacou a população de língua russa no leste do país a partir 2014, a Rússia teve que defendê-la", escreve Thomas Bremer, professor Emérito de Estudos Ecumênicos, Estudos Eclesiásticos Orientais e Estudos sobre a Paz na Universidade de Münster, Alemanha. A tradução é de Luisa Rabolini.
No verão de 2022, a XI Assembleia do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), o maior e mais importante órgão ecumênico, aconteceu na cidade alemã de Karlsruhe. Em primeiro plano estava a discussão sobre a participação da Igreja Ortodoxa Russa. Esta última tornou-se membro do CMI em 1961 e desde então enviou delegações a todas as Assembleias.
No entanto, a situação no ano passado era diferente: o patriarca Kirill havia apoiado e justificado a guerra na Ucrânia, iniciada pela Rússia em fevereiro de 2022. Muitos cristãos ocidentais e líderes religiosos ficaram chocados com a ausência de qualquer distância crítica por parte da liderança da Igreja Ortodoxa Russa da agressão. Alguns sacerdotes protestaram contra a guerra, mas muitos deles foram sancionados pela Igreja. Dentro da Rússia, nem um único bispo levantou uma voz crítica, apenas alguns bispos no exterior o fizeram, como naturalmente a maioria dos bispos na Ucrânia.
A justificativa do patriarca russo repete a narrativa que também se encontra no discurso oficial apoiado pelo governo russo: a guerra é defensiva contra o Ocidente que busca agressivamente impor seus valores e seu estilo de vida à população ortodoxa da Europa oriental. Como o governo ucraniano atacou a população de língua russa no leste do país a partir 2014, a Rússia teve que defendê-la.
Relacionada a essa visão está uma interpretação da história segundo a qual a Ucrânia não é nem um estado nem uma nação por si própria, e reconhecê-la como tal foi um enorme erro. Russos e ucranianos são nações irmãs, a divisão entre si foi introduzida pelo Ocidente e a "Rus'" medieval ainda tem um significado para a atualidade. Mas quase ninguém no Ocidente acredita nessa narrativa. Mesmo as forças políticas mais favoráveis à Rússia, principalmente de extrema-direita e da extrema-esquerda, geralmente discordam dessa percepção.
No entanto, a Igreja Ortodoxa Russa não estava de forma alguma isolada em Karlsruhe. A delegação cuidadosamente selecionada era chefiada pelo Metropolita Antonij, o novo chefe do Departamento de Relações Exteriores. Ele forneceu instruções a todos os membros da delegação para representar rigorosamente apenas a posição oficial da Igreja Ortodoxa Russa. Antonij se preocupou em se reunir com representantes de alto nível das outras Igrejas e criticou tudo que não estava de acordo com a posição da Igreja Ortodoxa Russa.
Além disso, criticou duramente o discurso de abertura do Presidente Federal alemão e também a declaração da Assembleia sobre a guerra na Ucrânia e sobre a situação na Europa (que falava de uma “invasão russa”). Seu argumento era que esses documentos eram politizados demais. Dado que a Igreja Ortodoxa Russa politizou o trabalho do CMI (e o movimento ecumênico em geral) desde que participou dele, sua afirmação é absurda.
Mas houve Igrejas membros, especialmente no hemisfério sul do mundo, que apoiaram suas teses. Embora não necessariamente aceitando a narrativa russa nos detalhes, mantiveram uma postura crítica em relação aos Estados Unidos (e também a outros países do Norte) que os fazia suspeitar de qualquer causa apoiada pelos estadunidenses.
Nos anos 1960 e 1970, a Igreja Ortodoxa Russa apoiou a luta pela independência e contra o racismo em muitos desses países: isso também não deve ser esquecido. Houve (e ainda há) conflitos na África, mas também em outras partes do mundo, que duraram muitos anos, sem muita atenção dos países ricos do Norte. Agora que há uma guerra na Ucrânia, isso chama a atenção para a Europa novamente.
Além disso, a posição rígida da Igreja Ortodoxa Russa em relação a questões éticas como a homossexualidade também correspondia ao seu pensamento e contribuía a formar uma aliança contra o chamado Ocidente "em declínio".
A liderança do CMI queria que a reunião fosse uma plataforma para o diálogo, mas obviamente falhou no propósito. Houve testemunhas da Ucrânia que puderam falar durante uma sessão, mas não puderam participar da votação (uma vez que nenhuma Igreja ucraniana é membro, uma delegação do Conselho das Igrejas e das comunidades religiosas da Ucrânia foi convidada como observadora). A Igreja Ortodoxa Ucraniana (UOC) era representada por leigos, a Igreja Ortodoxa Ucraniana (OCU) por um bispo que, no entanto, deixou a reunião imediatamente após seu discurso.
Portanto, a representação dos interesses ucranianos foi confiada a alguns jovens com pouca experiência internacional, mas que fizeram um ótimo trabalho. Mesmo a comunicação da liderança do CMI com a Igreja Ortodoxa Russa antes e depois da Assembleia mostrou uma posição muito confusa do CMI, que obviamente não queria prejudicar suas relações com o Patriarcado Russo.
A Igreja Ortodoxa Russa participou dos diálogos ecumênicos por muito tempo. Depois que a Igreja Católica se abriu aos contatos no contexto do Concílio Vaticano II, começou diálogos em vários níveis com ela. Esta última também participou do diálogo oficial entre a Igreja Católica e a ortodoxia mundial.
O empenho ecumênico da Igreja Ortodoxa Russa foi caracterizado por vários fatores: até o final da década de 1980, estava sob o estrito controle do Estado soviético e perseguia objetivos políticos nos contatos inter-religiosos em sintonia com a política soviética, como a já mencionada luta contra racismo.
Após o declínio e o fim do regime comunista, a Igreja Ortodoxa Russa principalmente manifestou em relação à Igreja Católica um papel de vítima, quando perdeu muitas paróquias na Ucrânia ocidental para a Igreja Greco-Católica, que havia sido banida e unida à força com a Igreja Ortodoxa Russa durante o período soviético.
O patriarcado russo viu nesses eventos uma ação deliberada da Igreja Católica com o objetivo de enfraquecer a ortodoxia. Durante esse período, desenvolveu uma atitude marcadamente antiocidental e antimoderna. Após a morte do Papa João Paulo II, a Igreja Ortodoxa Russa tentou estabelecer uma “aliança estratégica” com a Igreja Católica, no sentido de que as duas Igrejas deveriam cooperar na luta contra fenômenos como a homossexualidade ou um papel mais amplo atribuído às mulheres na Igreja; essa cooperação não teria superado as diferenças teológicas entre as Igrejas, mas poderia tê-las ajudado "estrategicamente" a defender sua agenda política.
O revés da medalha dessa atitude foi o rebaixamento da consideração dos diálogos ecumênicos, mesmo os de longa data, a partir do momento em que as igrejas protestantes desenvolveram formas de bênçãos para casais do mesmo sexo ou ordenaram mulheres ao ministério ou ao episcopado.
Assim, a atitude política da Igreja Ortodoxa Russa era muito coerente com aquela do estado russo (ou, antes deste, o soviético). Isso não significa que a Igreja Ortodoxa Russa tenha sido um instrumento do estado, mas indica que suas posições se conformavam àquelas do estado. As homilias do Patriarca Kirill no ano após o ataque contra a Ucrânia o demonstram muito claramente; obviamente não proclama as mensagens que recebe do Kremlin, mas acredita no que diz, e o mesmo acontece na liderança política da Rússia. Vão na mesma direção, embora em campos diferentes.
Assim, as relações ecumênicas da Igreja Ortodoxa Russa foram amplamente determinadas por questões políticas. Na época da Guerra Fria, ela queria que cada diálogo incluísse um tema "socioético", que dizia respeito sobretudo à situação da corrida armamentista. Isso foi claramente induzido por fatores políticos, algo que se tornou evidente quando, após o fim do comunismo, a Igreja Russa não pediu mais que essas questões fossem contempladas.
No entanto, uma crítica deve ser feita à maioria das Igrejas ocidentais que não se posicionaram sobre essa atitude. Elas pensaram que era algo que a Igreja Ortodoxa Russa tinha que fazer para sobreviver no sistema comunista, ou que era a única maneira de manter contato com ela. Mesmo o fato de os dissidentes religiosos não serem protegidos por sua própria Igreja, enquanto eram punidos pelo Estado soviético, não preocupava demais os parceiros ecumênicos ocidentais. Depois de 1990, isso foi discutido no CMI. Mas as outras Igrejas parceiras nunca fizeram uma avaliação crítica de sua posição anterior.
Quando a Igreja Ortodoxa Russa depois da Guerra Fria teve possibilidade de determinar sua própria agenda, concentrou-se em questões antimodernas. As Igrejas ocidentais nem sempre souberam apresentar claramente suas posições. Quando tentavam explicá-las à Igreja Russa, eram recebidas com desconfiança ou incredulidade. A Igreja Católica entendeu que a "aliança estratégica" poderia ser só uma face da moeda, pois tem um espectro muito mais amplo do que uma simples agenda antimoderna e muitos católicos em todo o mundo discordariam dela. Mas isso obviamente não foi tornado evidente para os representantes da Igreja Ortodoxa Russa.
Além disso, desde 2018 há uma divisão na Ortodoxia, causada pela questão ucraniana. Não se vê como esse cisma, que de fato é um cisma, possa ser sanado. As igrejas ortodoxas não conseguiram chegar a um acordo sobre como uma igreja pode obter a autocefalia e não dispõem de um mecanismo para enfrentar ou mesmo apenas discutir a questão.
Ambos os lados em conflito – o Patriarcado Ecumênico de Constantinopla com algumas igrejas gregas e o Patriarcado de Moscou com outras, especialmente sérvias – insistem em suas posições e resistem a qualquer forma de comunicação mútua. O cisma poderia durar muito tempo. Também tem consequências para as outras Igrejas. A maioria dos diálogos ecumênicos multilaterais é afetada, pois a Igreja Russa se recusa a participar de delegações lideradas por um representante do Patriarcado Ecumênico; e isso acontece na maioria dos diálogos.
No entanto, a maioria dos parceiros ecumênicos, e também o Patriarcado Ecumênico, continua como se nada tivesse acontecido. Mas isso é obviamente míope: qualquer sucesso ecumênico que não seja apoiado pela maior Igreja Ortodoxa é uma ilusão e não pode contribuir para a reaproximação das igrejas.
Isso nos leva à questão sobre como proceder. Parece que precisamos repensar radicalmente a nossa metodologia ecumênica. Às vezes, temos excelentes relações interconfessionais no nível de base, independentemente das diferenças oficiais entre as igrejas. Mas este sensus fidelium não é levado em consideração.
Dialogamos sobre as divergências doutrinárias, que poderiam nos levar a um maior entendimento, mas não nos levarão à comunhão eclesial. Poderíamos ir mais além e perguntarmo-nos se o diálogo sobre questões doutrinais é um bom caminho para superar as diferenças entre as Igrejas. A Igreja Católica teve diálogos bilaterais por quase 60 anos, mas, exceto um melhor clima entre as Igrejas (o que é certamente significativo), quase nunca houve sucessos.
Os consensos alcançados podem ser contados em milhares de páginas, mas será que realmente fizemos progressos? Assumimos como certo que as Igrejas Católica e Ortodoxa são tão próximas, mas esquecemos que não existe a Igreja Católica nem a Igreja Ortodoxa.
Em ambas encontramos numerosos grupos de pessoas influentes que veem a necessidade de enfrentar os desafios da modernidade com uma mente aberta e numerosos grupos de pessoas influentes que dizem que cerrar fileiras é a resposta certa para a modernidade.
Para um verdadeiro diálogo teológico com a Igreja Ortodoxa Russa, é necessário ter boas ideias sobre uma nova metodologia. Antes que o diálogo possa ser retomado, a Igreja Ortodoxa Russa terá que mudar radicalmente sua atitude e entender que suas ações não são cristãs, mas sim um apoio político para um autocrata e um criminoso de guerra.
Será impossível discutir com a liderança da Igreja Russa sobre questões relativas ao primado ou à Eucaristia enquanto ela permanecer nessas posições. Por enquanto, não mostra interesse em aprofundar seus vínculos teológicos com outras igrejas. Aqui será necessário um novo começo, que depende mais da Igreja Ortodoxa Russa do que das Igrejas Ocidentais.
O diálogo político com a Igreja Russa nunca cessou. O metropolita Antonij compareceu ao funeral de Bento XVI, o Papa Francisco ainda espera um encontro com o Patriarca Kirill, e a Igreja Ortodoxa Russa continua como se nada tivesse acontecido. A posição da Igreja Católica era pouco clara; só recentemente o papa e outros altos funcionários começaram a ser um pouco mais explícitos. A ideia de manter as portas abertas a todas as partes obviamente falhou.
A Igreja Católica deveria reconsiderar seriamente sua posição. Em uma situação em que a questão da culpa e da responsabilidade é muito clara, permanecer neutro significa, em última análise, ficar do lado do agressor. E infelizmente essa é a imagem que a Igreja Católica agora está transmitindo.
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Em guerra. Igreja russa e ecumenismo. Artigo de Thomas Bremer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU