13 Fevereiro 2023
"Por que esquecestes a verdade de Deus?", escreve Sergei Chapnin, ex-diretor da revista do Patriarcado de Moscou e pesquisador no Orthodox Christian Studies Center da Fordham University, de Nova York, em carta aberta aos bispos ortodoxos russos, publicada por Settimana News, 10-02-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
23 de janeiro a 5 de fevereiro de 2023 – Sinaxe dos novos mártires e confessores do século XX
Eminências,
minha carta é dirigida aos bispos ortodoxos na Rússia. Não recolhi intencionalmente assinaturas nem envolvi estruturas eclesiásticas ou organismos públicos, porque não me dirijo ao corpo episcopal, nem aos líderes do Patriarcado de Moscou, mas a cada um de vós pessoalmente.
O destinatário da minha carta é um cristão ortodoxo que fez os santos votos batismais e monásticos, foi elevado à dignidade de bispo e que, em seu coração, reconhece que é impossível governar a Igreja sem se esforçar para amar a Cristo, para buscar a sua verdade e para servi-lo e não a César.
Nessas circunstâncias, sinto-me compelido a violar a etiqueta da Igreja ao não pedir a vossa bênção. Isso soaria desafinado no início de nossa conversa. Minhas palavras poderiam provocar antagonismo, irritação e até raiva de vossa parte.
Estando ciente disso, não posso esperar bênção sincera para esta conversa, e pouco significa uma bênção ritual apenas para demonstrar o poder episcopal. Se vós concordardes que esta conversa é significativa, simplesmente orem por mim e escrevam pelo menos algumas linhas em resposta. Eu também rezo por vós, mesmo que hoje seja difícil e doloroso.
Mas acredito profundamente que exista uma bênção do alto sobre esta conversa, que somos chamados a falar da única coisa necessária (Lc 10,42, KJV), da nossa fé, do amor de Cristo que é impensável sem observar os seus mandamentos: "se alguém me ama, guardará as minhas palavras" (Jo 14,23, KJV).
Não é segredo que o vosso ofício episcopal é temporário. O amor a Cristo, o esforço de seguir a sua Palavra, de lhe ser fiel e grato na alegria como na dor: isso o que pertence à eternidade. Pode-se colocar paramentos de brocado e uma panágia cara em um caixão, mas não se pode carregar consigo uma posição e um título. Muito menos é possível defender-se com graus e títulos na hora do Juízo Final.
Dirijo-me a vós porque me sinto exausto pela longa e atormentadora espera da vossa sincera palavra pastoral, exausto pelo vosso infinito silêncio sobre as coisas mais importantes. E, por favor, peço-vos para considerar o que estou prestes a dizer como palavras ditas de uma posição de fraqueza e enfermidade, não de força e segurança.
Entendo perfeitamente que o episcopado da Igreja Ortodoxa Russa seja um corpo grande e complexo. Conheço muitos de vós pessoalmente, oramos juntos, trabalhamos juntos. Houve um tempo em que podíamos falar com confiança mútua. Houve um tempo em que nos ouvimos e entendemos mutuamente. Ou era uma ilusão?
Agora, durante o ataque militar da Rússia à Ucrânia, parei completamente de nos entender. Eu só vos ouço falar clichês de propaganda do estado, disfarçados de palavras piedosas da mensagem da Igreja, e fórmulas teológicas duvidosas que levam a vós e ao seu rebanho para longe do evangelho – em direção a um culto pagão imperial centrado no poder, na riqueza e na violência.
Acredito que a culpa seja também vossa. Vejo que para muitos de vós é uma escolha consciente.
Talvez sejais movidos pelo medo do patriarca, cujo sonho era se tornar o duplo eclesiástico de Putin, o único soberano da Igreja Ortodoxa Russa – e conseguiu alcançar esse objetivo. Falta de escrúpulos, astúcia, crueldade - imagino que tenhais visto o Patriarca Kirill manifestar essas qualidades no mais alto grau mais de uma vez.
Talvez sejais movidos pelo medo dos serviços de segurança. Conheceis bem o sistema de poder na Rússia e como é perigoso se opor aos serviços de segurança. Tenho certeza de que seus agentes vos visitam regularmente, conversam e vos instruem.
Em suma, estais bem cientes de que na Rússia qualquer dissenso é punível e, muito provavelmente, muitos de vós puniram mais de uma vez membros do clero que se permitiam discordar da imagem do mundo oficialmente prescrita, pensar de forma independente, objetar e não calar. O Patriarcado de Moscou por muito tempo exigiu uma lealdade total e incondicional de seu clero. Essa atmosfera sufocante se tornou uma marca registrada da Igreja Ortodoxa Russa. As raras exceções apenas comprovam a regra.
Esse estado de coisas poderia durar ainda por décadas, não fosse a guerra. Agora, um ano após o início da agressão russa, devo dizer diretamente: o patriarca Kirill é o primeiro entre aqueles que justificam os crimes de guerra. Em seus sermões, proclama a "teologia da guerra", usando argumentos que contradizem flagrantemente o Evangelho e o ensinamento da Igreja. Não falarei sobre isso em detalhes. Certamente os conheceis todos e provavelmente os repetis regularmente.
Mas vamos criar coragem e olhar para o futuro. Os anos do governo do Patriarca Kirill Gundyaev são páginas escuras na história da Igreja. O renascimento da Igreja se interrompeu, e agora seus membros não são pecadores salvos pela graça divina, mas embrutecidos construtores de castelos que engolem um coquetel de mito imperial, ressentimento e uma escatologia incrivelmente primitiva.
Tudo isso é suficiente para se distanciar, mas em muitas fotos estais ali, ao lado do Patriarca, sorrindo, recebendo sua bênção, oferecendo-lhe flores e presentes caros.
Mais uma vez: vós estais do lado de um homem que justifica os crimes de guerra e traiu a Igreja. Repetis suas palavras, contais seus argumentos criminais.
E, mesmo que não digais nada, vosso silêncio pode nos fazer duvidar de que estais do seu lado? Esse vosso silêncio pode ser reconhecido como uma tentativa de resistência? A sangrenta guerra não vos permite essa possibilidade.
Mas lembremos das palavras de São João, o Teólogo: o amor perfeito afasta o medo (1Jo 4,18, KJV). Tendes ainda a oportunidade de ser testemunhas e discípulos de Cristo, que foi condenado sem culpa, padeceu e foi crucificado. Rezo para que pelo menos alguns de vós possam aproveitar dessa oportunidade e retornar aos votos feitos no santo batismo e na tonsura monástica.
Lembro que em tempos relativamente curtos, no final dos anos 1980, era perigoso falar dos novos mártires e só os pregadores mais ousados e destemidos ousavam mencioná-los do ambão. Mas no início dos anos 1990 esse tabu ideológico caiu. Estou certo de que vós também pregais sobre os novos mártires, usando como exemplo sua empreitada de fé, inspirando-vos neles. Agora dizei-me: eram apenas palavras sem conexão com vossas ações? Se assim for, vossa pregação era hipócrita e falsa. Como eu gostaria de estar errado!
Tenho plena consciência de que estou em uma posição fraca e vulnerável. A censura que poderia ser dirigida a mim é óbvia: "Você deixou a Rússia, agora está seguro: você tem o direito moral de pronunciar essas recriminações?".
Mais de uma vez constatei que esse argumento é usado com o único propósito de silenciar o acusador. No entanto, tentarei responder.
Em primeiro lugar, durante meus últimos dez anos na Rússia, falei sobre as mesmas coisas. Falei e falarei, porque para mim as palavras sobre aqueles que têm fome e sede de justiça não são uma frase vazia. A busca da verdade é necessária; o desejo de se proteger da verdade com propaganda ou conversas pietísticas é pernicioso. Nossos meios de comunicação de massa nos permitem ver o mundo com mais clareza e proferir a palavra da verdade mais alto do que nunca. Esse recurso nunca poderá ser tirado.
Em segundo lugar, quem vos impede de ir embora também? Se não estais de acordo, se vedes os riscos e as ameaças ligadas à livre manifestação de vossa posição, ides embora, assim como centenas de milhares de cidadãos russos fizeram. Muitos deles são ortodoxos; eles precisam de sacerdotes e bispos. Esperam por uma pregação livre, um apoio espiritual. Lembrais que, após a Revolução de Outubro, dezenas de bispos deixaram a Rússia e fundaram Igrejas Russas fora da Rússia, enquanto agora nenhum de vós fez o mesmo.
Isso também diz muito sobre o estado da atual Igreja Russa. Claro, é sempre um grande risco deixar o próprio país, mas é inimaginável que as Igrejas locais vos rejeitem, mesmo que nem todas tratem a vossa decisão com respeito e atenção. É doloroso admitir, mas algumas Igrejas Ortodoxas expressam solidariedade com a agressiva retórica antiocidental do Patriarca Kirill e concordam com ela.
Finalmente, em terceiro lugar, espero retornar. Espero que os cristãos ortodoxos na Rússia tenham a possibilidade de construir uma Igreja livre em uma Rússia livre. A grande questão é qual o papel que o atual episcopado será chamado a desempenhar. Neste momento está apenas perdendo autoridade e confiança. Tendes que concordar que a nova Igreja livre provavelmente não precisará de tal episcopado.
As palavras de São Sofrônio de Essex, palavras de grande esperança, não se concretizaram. Ele dizia que "a Igreja Russa experimentou um extraordinário dispêndio de si no sofrimento pelo nome de Cristo" e, portanto, "uma questão de perfeição se coloca diante da Igreja Russa que procede da eterna lei espiritual: a plenitude do próprio dispêndio prefigura a plenitude da perfeição".
Infelizmente, após o seu dispêndio, não chegou uma época de perfeição, mas uma época de saciedade, de conforto e riquezas materiais, uma época de falta de coração, de hipocrisia e de desejo de poder. Hoje a Igreja Russa está mais longe de Cristo do que qualquer um possa imaginar.
Eminências! O silêncio vergonhoso e catastrófico da maioria de vós durante a guerra da Rússia contra a Ucrânia representa uma mancha indelével sobre toda a Igreja Ortodoxa Russa.
Vossa atitude em relação à Igreja Ortodoxa Ucraniana e ao próprio Metropolita Onúfrio pode ser definida outra senão traição? Vós traístes, entregastes à destruição uma parte considerável de vossa própria Igreja. Não confiastes em Onúfrio e confundistes a mentira do Patriarca com a verdade.
Quando as autoridades russas começaram a usar os argumentos da Igreja para sua propaganda, o custo para a Igreja ucraniana foi muito alto: a pressão sobre o Estado ucraniano e grande parte da sociedade ucraniana foi o resultado natural da agressão.
A responsabilidade por isso será compartilhada – talvez não igualmente – não apenas por aqueles que apoiaram publicamente essa agressão, mas também por aqueles que permaneceram em silêncio.
O atual estado russo quer que a economia, a educação e a cultura do país sejam reorientadas para uma linha militar. Mas não só. Até a Igreja, que nos últimos anos se prostrou aos pés das autoridades estatais, deve agora ser serva desta terrível guerra.
Por favor, oponhai-vos ativamente à mentira e à falsidade.
Que se pare de apoiar e justificar a guerra.
Que se pare de abençoar os soldados e as armas.
Que se esclareça que os culpados de crimes militares não podem cruzar a soleira da Igreja sem arrependimento, muito menos participar dos Santos Mistérios.
Que se chame a todos a uma paz justa.
A Igreja Russa terá que aprender novamente a falar de verdade, de compaixão, de pacificação autêntica, de uma paz justa. A Igreja russa terá que ver os sofrimentos do povo pacífico da Ucrânia e os crimes que o exército russo cometeu nos territórios ocupados. Não apenas vê-los, mas reconhecê-los, entendê-los e se arrepender de ter participado disso. Sem isso não haverá futuro.
Fazer justiça e juízo é mais aceitável ao Senhor do que sacrifício (Provérbios 21,3).
Pensais: vossos sacrifícios hoje poderiam não agradar a Deus.
Pensais: em vossas orações hoje não há verdade.
E no final: a quem estais servindo?
E quem precisa de vós assim desse jeito?
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Bispos ortodoxos russos: j’accuse - Instituto Humanitas Unisinos - IHU