13 Dezembro 2022
“A globalização desfaz-se, balcaniza-se. A globalização, como a conhecemos nos últimos quarenta anos, acabou”, sentencia de Paris, onde mora, o filósofo e sociólogo italiano Maurizio Lazzarato, cuja obra se tornou uma das referências centrais, das últimas décadas, que reflete sobre questões como como o capitalismo cognitivo, a dívida, o trabalho imaterial, a biopolítica e a guerra. Para ele, o ciclo global não começou com a queda do Muro, mas com o golpe contra Salvador Allende.
Lazzarato se situa conscientemente na tradição de pensamento de 68, retomando perspectivas e conceitos de Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guattari e Jacques Derrida, em uma perspectiva crítica não isenta de fortes questionamentos e mesmo de rupturas com o que esta linhagem busca articular. Em vez de uma visão micropolítica ou microfísica, propõe um projeto macropolítico e revolucionário de influência marxista, que a seu ver foi deixado de lado por esses autores.
No marco de sua passagem pela América Latina, quando participou de encontros e conferências na Argentina, Uruguai e Chile, apresentando seu novo livro Guerra o revolución (Editora Tinta Limón), o autor respondeu questões da revista Ñ, por e-mail, dias antes de retornar, abordando temas de sua obra, no calor da situação da guerra na Ucrânia.
“Hoje, a guerra torna evidente, para quem quiser ver, a estrutura do poder capitalista, que não se reduz à “produção”, mas envolve a relação do capital com o Estado e o conflito bélico”, avalia, nesta entrevista, Lazzarato.
A entrevista é de Luis Diego Fernández, publicada por Clarín-Revista Ñ, 09-12-2022. A tradução é do Cepat.
Seu último livro, “Guerra o revolución”, começa com uma análise da guerra na Ucrânia. Nele, ressalta a existência de dois imperialismos: o estadunidense e o russo. Por que considera que não só Putin, mas também Biden deve ser repudiado?
A origem da guerra na Ucrânia se deve à impossibilidade de reproduzir a ordem mundial construída após o colapso da União Soviética. O imperialismo estadunidense, organizado por meio da gestão do dólar, das finanças e do poder militar, está sendo questionado pelos países do “grande sul” que, após a crise de 2008, perceberam que estavam pagando por esta crise provocada pela especulação financeira dos Estados Unidos e que não podiam mais se beneficiar da globalização.
Trata-se de uma luta pela divisão do mercado mundial entre potências econômicas e políticas que são todas “capitalistas”, embora o capitalismo chinês seja diferente do estadunidense. Contudo, sem dúvida, o imperialismo mais perigoso é o estadunidense, que almeja continuar impondo unilateralmente sua supremacia no planeta. A situação é semelhante à de um século atrás, quando a Alemanha desafiou a hegemonia dos impérios coloniais inglês e francês.
No entanto, há uma novidade absoluta: o capitalismo, desde a conquista da América, baseou sua acumulação na exploração do Sul global. Agora, este último se recusa a permanecer subordinado ao Norte, a lhe proporcionar trabalho gratuito ou mal remunerado e matérias-primas baratas. Deste ponto de vista, a grande diferença em relação a um século atrás é a incapacidade dos oprimidos de se envolver nessa luta entre imperialismos, conforme tinha acontecido com a revolução soviética.
Por que afirma que o pensamento de 68 (Foucault, Deleuze, Guattari, entre outros) pacificou o capitalismo?
A teoria crítica dos anos 1970 e, mais ainda, a que se desenvolveu posteriormente, eliminou as categorias “guerra” e “revolução”, pacificando assim o capitalismo, reduzido a uma simples economia de organização da produção, do mercado e da concorrência. Ao contrário, o que chamam de neoliberalismo teve seu primeiro laboratório no Chile, onde foi implantado após o golpe de Estado de Augusto Pinochet, fortalecido e apoiado pelos estadunidenses. Os neoliberais chegaram com suas teorias depois da destruição do “experimento Allende”.
Só o terror fascista conseguiu criar as condições para que o neoliberalismo florescesse na América Latina. Michel Foucault, por exemplo, analisa o neoliberalismo sem nunca mencionar essa condição extraeconômica e, portanto, não vê a hierarquia que existe entre o imperialismo e o neoliberalismo. Mesmo no Norte, o novo capitalismo só se impôs após a derrota do movimento operário, ainda que não utilizasse os métodos sangrentos do fascismo e o golpe de Estado.
Se partimos deste ponto de vista, podemos dizer que o ciclo econômico começa com a guerra da conquista que obriga a população a se submeter ao mercado, à dívida e à concorrência, e termina, como hoje, com a guerra entre Estados. Outras teorias críticas ressaltam a centralidade dos afetos e o desejo para entender o funcionamento do capitalismo.
Isto é verdade, mas com a condição de que a ação dos afetos só é eficaz porque atua sobre uma subjetividade derrotada e vencida, que não tem alternativa a não ser sucumbir, adaptar-se e aceitar as novas relações de poder. As forças afetivas não atuam sobre uma subjetividade virgem.
Do ponto de vista filosófico, ao eliminar a guerra e a revolução, as teorias críticas apagaram a categoria do “negativo”. Tudo se tornou positivo: o poder não é repressão, mas produz, inventa, aumenta o poder das forças produtivas e dos sujeitos que domina. O antagonismo de classe também é produtivo, criativo, constitutivo.
Eliminam o negativo de ambos os lados da relação de poder: do lado daqueles que o exercem e do lado daqueles que o sofrem e querem derrubá-lo. Ao contrário, a guerra nos mostra que o negativo está sempre presente, que, de fato, manifesta um poder destrutivo mais intenso do que antes. Destruição não só econômica, mas também das condições de habitabilidade do planeta.
O que a guerra na Ucrânia nos diz sobre a globalização? Por que avalia que este conflito mostra que o Estado, a guerra e o capital estão unidos?
A globalização se desfaz, balcaniza-se. A globalização, como a conhecemos nos últimos quarenta anos, acabou. Tem se desenvolvido sobre assimetrias cada vez maiores e mais profundas, contradições que só podem ser resolvidas com a guerra. Quanto mais a guerra durar, mais claros ficarão seus motivos e o que está em jogo.
No dia 7 de outubro de 2022, justamente antes do Congresso do Partido Comunista da China, a lenta, mas decisiva implosão da globalização ultrapassou outro limiar. Os produtos que os Estados Unidos proíbem exportar para a China anunciam uma piora nas relações entre os dois países. Enquanto a China busca evitar o confronto, consciente de sua inferioridade militar, os Estados Unidos o buscam por todos os meios, conscientes de que não podem postergá-lo muito, sob pena de se depararem com uma situação desfavorável.
O capitalismo não deve ser lido estaticamente, mas como um ciclo evolutivo. Começa com a guerra que estabelece quem manda e quem deve obedecer, ou seja, impõe as diferenças entre classes, as assimetrias entre Estados, entre o Norte e o Sul. Inicialmente, parecem poder coexistir harmoniosamente (fase ascendente do ciclo da globalização), para depois se tornarem contraditórios (fase descendente do ciclo). As enormes assimetrias de renda e, sobretudo, de riqueza, a financeirização e a privatização conduzem, como há um século, à guerra.
O capital, o Estado e a guerra sempre tiveram uma relação muito estreita, que se consolidou ainda mais no final do século XIX e na Primeira Guerra Mundial. Esta é a matriz do capitalismo contemporâneo, que perdeu qualquer função “revolucionária”, se é que alguma vez a teve. Hoje, a guerra torna evidente, para quem quiser ver, a estrutura do poder capitalista, que não se reduz à “produção”, mas envolve a relação do capital com o Estado e o conflito bélico.
Concorda com o rótulo “populismo de direita” aplicado aos governos de Trump, Bolsonaro, Orbán e Meloni? Enxerga algo de interessante, por oposição, nos “populismos de esquerda”?
Estou convencido de que a categoria “populismo” não pode nos ajudar a interpretar a situação atual. O que se impõe são novas formas de fascismo, uma gestão autoritária da sociedade, um esgotamento da democracia. Assim como entre as duas guerras mundiais, com as devidas diferenças, a guerra atual exige novas formas de “governamentabilidade” que não me parecem lembrar o populismo.
Giorgia Meloni não é populista, é “fascista”. Trump e Bolsonaro não são populistas, mas formas inéditas de política de extrema direita. São manifestações de uma guerra civil progressiva que percorre todas as sociedades, com maior ou menor intensidade.
Em Laclau, por exemplo, não há teoria da guerra, nem da guerra civil, porque não há teoria do capitalismo, mas classes reduzidas a simples “demandas” por renda, direitos e salários. A multiplicidade de movimentos não pode ser reduzida a “demandas” por poder. O populismo teve uma existência curta, superada pela radicalização das guerras de classe, civis e entre Estados. Não acredito que tenha futuro dentro da nova fase política de guerra declarada.
Em seus livros recentes, particularmente de “Guerras e capital” (coescrito com Éric Alliez) a “Guerra o revolución”, faz diversas críticas a Michel Foucault. Considera que Foucault se tornou um liberal, no final dos anos 1970, ou ao menos que defendeu posições afins às liberais?
Não sei se é possível dizer que Foucault flertou com o neoliberalismo. O que considero é que sua descrição do capitalismo como neoliberalismo é falsa. O capitalismo contemporâneo não se reduz ao neoliberalismo com suas categorias de mercado, livre concorrência, luta contra os monopólios, iniciativa individual e empresário de si mesmo. Há um poder do qual nunca fala que decide o destino do neoliberalismo e que eu chamo de “imperialismo do dólar”.
Os Estados Unidos, a partir de 1971, ao declararem a inconversibilidade do dólar em ouro, construíram um sistema, centrado no dólar, que lhes permite comandar a economia mundial e capturar, graças também ao seu poder militar, enormes riquezas do resto do mundo que não produzem, mas que se apropriam gratuitamente. O imperialismo e o neoliberalismo não são a mesma coisa. O imperialismo manda no neoliberalismo.
Assim como, há um século, o liberalismo clássico foi usado e depois abandonado pelo capitalismo, o neoliberalismo administrou e aprofundou as enormes assimetrias produzidas pelo sistema de exploração financeira do dólar, na fase descendente do ciclo de acumulação, e agora é deixado de lado pela lógica da guerra. O “regime da verdade” do neoliberalismo não é o mercado, mas a guerra que revela o que Foucault não vê: o poder que comanda e decide e que se desfaz do liberalismo quando não é mais necessário, pois não pode governar uma situação de guerra. Apesar da visão neoliberal e a de Foucault, não se vence pela concorrência econômica, pelo mercado, mas pelos canhões.
Pode nos adiantar algumas ideias que encontraremos no segundo volume de “Guerras e capital”, seu projeto intelectual com Éric Alliez?
As lutas dos anos 1960 e 1970 afirmaram a existência de uma multiplicidade de movimentos políticos, uma pluralidade de subjetividades irredutíveis ao sujeito histórico da revolução. Ao mesmo tempo, houve uma politização que não se limitou à fábrica, mas invadiu esferas que até então não eram definidas como políticas (sobretudo, a relação de poder homem/mulher).
A microfísica do poder apreendeu perfeitamente esta nova situação e falou de uma “revolução micropolítica”. Descuidou-se, por outro lado, da definição de uma macropolítica que corresponda às grandes mudanças produzidas na época. Não se tentou definir as modalidades de um novo processo revolucionário, mas, ao contrário, houve uma ruptura com a tradição revolucionária do século XX. Certamente, muitas críticas podem ser feitas a esta tradição, mas os movimentos que se desenvolveram, após 1968, atuam como se estas revoluções nunca tivessem existido.
Você ressalta a importância, a partir de 2011, dos movimentos de protesto no Sul e especialmente na América Latina. Quais são os elementos mais interessantes e fortes destes movimentos?
Após a crise financeira de 2008, eu estava convencido de que não só reapareceria a possibilidade de uma guerra, mas também de rupturas políticas “revolucionárias”. O século XX foi o século das revoluções. Nunca houve tantas na história como no século anterior. No entanto, ao contrário do que Marx pensava, ocorreram principalmente no Sul e só aqui conseguiram se impor.
O século XX não é apenas a matriz do capitalismo contemporâneo onde a ação da guerra, do capital e do Estado se entrelaçam, mas também de um novo e eventual processo revolucionário que se desenvolve não onde o capitalismo é mais avançado, mas onde os processos de objetivação são mais fortes e autônomos. Após 2008, tais rupturas ocorreram no Irã, Egito e Chile. Agora, não se trata apenas de afirmar a importância desses movimentos, mas de começar a refletir sobre suas dificuldades e fracassos.
Penso que deveríamos abrir um debate sobre os grandes sucessos dessas verdadeiras insurreições, mas também sobre seus impasses. O processo revolucionário não pode repetir a forma leninista, mas ainda não parece capaz de se opor a uma contrarrevolução que recupera rapidamente as rédeas do poder. Repensar a forma do processo revolucionário, a emergência da multiplicidade como sujeito das rupturas, parece-me uma tarefa urgente.
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“Hoje, a guerra torna evidente a estrutura do poder capitalista”. Entrevista com Maurizio Lazzarato - Instituto Humanitas Unisinos - IHU