06 Dezembro 2022
Maurizio Lazzarato está tão interessado no que acontece no Sul global quanto em renegar o eurocentrismo que obscurece as maiorias na Itália, onde nasceu, 67 anos atrás, ou na França, onde se exilou, no final dos anos 1970, para escapar da perseguição contra militantes da Autonomia Operária, em Pádua. Por que essa visão diferente?
“As revoluções do século XX ocorreram nas margens do capitalismo ou no Sul. Meu interesse é saber por que as revoluções ocorreram no Sul e não no Norte, onde havia maior desenvolvimento capitalista e, segundo Marx, deveriam ter ocorrido. Contudo, ocorreu em um país como a Rússia, onde a força produtiva não era grande. Depois, em países como China, Vietnã e Cuba. As forças revolucionárias vinham do Sul”, dirá ao jornal Tiempo Argentino, antes de pegar o voo de retorno à capital francesa, onde é pesquisador do grupo Matisse/CNRS (Universidade de Paris I), e faz parte do Colégio Internacional de Filosofia.
Um esclarecimento pertinente: para Lazzarato, o Sul é um conceito que inclui os países que foram colônias do centro capitalista. Outro esclarecimento: esse capitalismo não poderia ter se desenvolvido sem a periferia que forneceu mão de obra escrava a baixo custo e matérias-primas praticamente gratuitas.
Sociólogo e filósofo, Lazzarato veio apresentar seu livro Guerra o revolución, publicado em Buenos Aires pela editora Tinta Limón. Outra editora local, Eterna Cadencia, publicou El Capital odia a todo el mundo e ¿Te acuerdas de la Revolución?.
Aqui, sente-se bem porque pode falar livremente. Na Europa, aponta, uma visão como a sua está censurada. “Esta guerra foi um desastre do ponto de vista ideológico. Não é mais permitido falar”, acrescenta.
A entrevista é de Alberto López Giron, publicada por Tiempo Argentino, 04-12-2022. A tradução é do Cepat.
O que é tão censurável para o pensamento oficial atual? Talvez coisas como estas.
Esta não é uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia, é uma guerra pela reorganização da ordem mundial, contra a mundialização que começou nos anos 1970 e está em crise desde 2008. É a crise do imperialismo do dólar. Os estadunidenses construíram um sistema de organização do poder global fundado sobre o dólar e o uso da força que lhes permitiu absorver parte da riqueza mundial.
Hoje, esse sistema está em crise porque existem outras potências econômicas que fundam outros imperialismos locais, como o russo e o chinês. São emergentes porque não têm a moeda que lhes permitiria ser globais.
A base de um imperialismo é a moeda?
A base do imperialismo estadunidense, sim. O imperialismo clássico era um imperialismo como o de Lenin, de (Rosa) Luxemburgo, de ocupação do solo e de exportações de capitais. O imperialismo contemporâneo foi construído a partir de 1971, quando os Estados Unidos declararam a inconversibilidade do dólar em ouro. O resultado é uma moeda política e os estadunidenses se beneficiam em usar o dólar como moeda internacional para financiar o déficit, através da concorrência de todo o mundo.
Os chineses buscam um imperialismo semelhante?
Não se sabe. Fizeram muitos investimentos em grande parte do mundo: na África, na Europa e na América Latina, mas não possuem uma moeda que lhes permita controlar a economia mundial. No momento, é um imperialismo um pouco fraco para poder substituir os Estados Unidos.
Em setembro, na reunião de Samarkand (cúpula da Organização para Cooperação de Xangai, China, Índia, Cazaquistão, Quirguistão, Rússia, Paquistão, Tajiquistão e Uzbequistão), buscaram imaginar um sistema financeiro alternativo, o que é muito difícil ou impossível, mas só a ideia já é uma declaração de guerra aos Estados Unidos.
A Rússia ainda parece um imperialismo de segundo nível.
Sim, é um imperialismo local. Defende-se e ataca, mas não tem o poder econômico, nem demográfico, de quem pretende ser o motor de uma guerra maior. A China, ao contrário, sim, mas primeiro tem que se tornar forte. Enquanto isso, deve-se observar. Mas estamos diante do fim da mundialização como a conhecemos.
Está havendo uma reorganização do apoio entre os Estados que são aliados. Estão aplicando sanções contra a Rússia, mas também contra a China. Acabam de proibir cinco empresas chinesas que operavam em solo estadunidense e também estão atacando a Europa. A primeira parte derrotada neste conflito é a Europa.
Dá a impressão de que a Europa se suicidou.
É o segundo suicídio.
Qual foi o primeiro?
A Primeira Guerra Mundial. Contudo, este foi um suicídio incompreensível. A Europa não tem uma política autônoma porque durante a Guerra Fria seguiu uma política subordinada à estadunidense. Não há nenhum homem político, tipo (Charles) De Gaulle que lidere contra isto, apenas um pouco (Angela) Merkel. Todos se curvam ao poder estadunidense.
A Europa terá problemas econômicos no próximo ano, com a recessão que começará neste inverno. O Parlamento Europeu acaba de assinar um documento que classifica a Rússia como um país terrorista. Estão loucos. País terrorista são os Estados Unidos, que travaram tantas guerras. Não raciocinam, não se sabe o motivo, é misterioso.
Aqui, no Sul, não se entende.
No Norte também não, pois maquinam contra seus próprios interesses, dão um tiro no próprio pé.
A guerra é contra a Europa ou contra a Alemanha?
Contra a Alemanha. O problema para os Estados Unidos é que a Alemanha construiu a Ostpolitik para as relações com o Leste. O modelo europeu é o modelo alemão baseado na energia russa a baixo custo e nas exportações. Este modelo estava na mira dos Estados Unidos e estava claro que queriam destruí-lo, por isso sabotaram o Nord Stream. Os Estados Unidos querem criar uma economia de guerra e a economia que está em maiores dificuldades é a europeia.
Os Estados Unidos aumentaram os preços da energia que devemos comprar deles com o objetivo de colocar em dificuldades a economia alemã, a que mais exportava para a Rússia e a China, embora (o primeiro-ministro Olaf) Scholz esteja tratando da venda de uma parte do Porto de Hamburgo para a China.
Os mais estúpidos são os Verdes, que não entendem nada, porque são uns ineptos. O ministro da Economia é um Verde (Robert Habeck) e não entende nada, apesar de se tratar da guerra na Ucrânia e estão fazendo uma confusão (nem é preciso dizer como é o gesto com as duas mãos).
São atlantistas.
Sim, atlantistas, mas suicidas. Os Estados Unidos continuam uma política de protecionismo que começou com (Donald) Trump. Os únicos estados neoliberais são os europeus, os norte-americanos são neoliberais para os outros, mas não para eles.
A Europa e a Alemanha devem pensar em sua economia porque estão praticamente bloqueadas, coisa que os Estados Unidos já fizeram com os japoneses. Os Estados Unidos sempre buscaram fazer com que nenhum de seus aliados fossem muito potentes.
Nestas circunstâncias, o que devemos esperar no Sul?
Não que a coisa seja muito complicada, porque é um choque entre diversas formas de capitalismo. Acontece que pela primeira vez o Sul tem poder econômico suficiente para se recusar a ser subordinado à economia estadunidense. Tem poder para isto, embora os Estados Unidos estejam dispostos a usar métodos duros, não apenas econômicos.
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“Não é uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia, é uma guerra pela reorganização da ordem mundial”. Entrevista com Maurizio Lazzarato - Instituto Humanitas Unisinos - IHU