06 Julho 2022
“Desde os anos 1950, os Estados Unidos foram frustrados ou derrotados em quase todos os conflitos regionais em que participaram. Mesmo assim, na 'batalha pela Ucrânia', os neoconservadores estavam prontos para provocar um confronto militar com a Rússia”, escreve Jeffrey D. Sachs, professor universitário e diretor do Centro de Desenvolvimento Sustentável, da Universidade Columbia, onde dirigiu o Instituto da Tierra, de 2002 a 2016, em artigo publicado originalmente por Brave News Europe e reproduzido por Ctxt, 05-07-2022. A tradução é do Cepat.
A guerra na Ucrânia é a culminação de um projeto de 30 anos do movimento neoconservador estadunidense. O governo Biden está repleto dos mesmos neoconservadores que defenderam as guerras de escolha dos Estados Unidos na Sérvia (1999), Afeganistão (2001), Iraque (2003), Síria (2011) e Líbia (2011) e que tanto fizeram para provocar a invasão da Ucrânia pela Rússia.
O histórico do movimento é de um desastre absoluto, mas Biden encheu sua equipe de neoconservadores. Como resultado, o presidente estadunidense está levando a Ucrânia, os Estados Unidos e a União Europeia a uma nova debacle geopolítica. Se a Europa for minimamente perspicaz, irá se afastar desses desastres da política externa estadunidense.
O movimento neoconservador surgiu nos anos 1970 em torno de um grupo de intelectuais públicos, vários dos quais influenciados pelo cientista político da Universidade de Chicago, Leo Strauss, e pelo professor de história clássica da Universidade Yale, Donald Kagan. Os líderes neoconservadores incluíam Norman Podhoretz, Irving Kristol, Paul Wolfowitz, Robert Kagan (filho de Donald), Frederick Kagan (filho de Donald), Victoria Nuland (esposa de Robert), Eliott Cohen, Elliott Abrams e Kimberley Allen Kagan (esposa de Frederick).
A principal mensagem dos neoconservadores estadunidenses é que os Estados Unidos devem manter seu predomínio militar mundial e enfrentar as potências regionais emergentes que possam colocar em risco seu domínio global ou regional, especialmente a Rússia e a China. Para isso, a força militar dos Estados Unidos deve ser posicionada em centenas de bases em todo o mundo para estar preparada para iniciar uma guerra de escolha, conforme necessário. A Organização das Nações Unidas deve ser usada pelos Estados Unidos somente quando for conveniente a seus interesses.
Paul Wolfowitz foi o primeiro a explicitar essa abordagem em seu rascunho do documento Orientações da política de defesa (Defense Policy Guidance), escrito para o Departamento de Defesa, em 2002. O rascunho solicitava a ampliação da rede de segurança liderada pelos Estados Unidos para a Europa Central e do Leste, apesar de o ministro das relações exteriores alemão, Hans-Dietrich Genscher, ter prometido expressamente, em 1990, que a unificação alemã não seria seguida por uma ampliação da OTAN para o leste.
Wolfowitz também argumentou a favor das guerras de escolha estadunidenses, defendendo o direito dos Estados Unidos de agir de forma independente, mesmo sozinhos, para responder a crises que concernem ao país. Segundo o general Wesley Clark, já em maio de 1991, Wolfowitz deixou claro que os Estados Unidos liderariam operações de mudança de regimes no Iraque, na Síria e em outros antigos aliados soviéticos.
Os neoconservadores defenderam a ampliação da OTAN para a Ucrânia, mesmo antes de se tornar a política oficial estadunidense com George W. Bush Jr., em 2008. Para eles, a pertença da Ucrânia à OTAN era fundamental para o domínio regional e global dos Estados Unidos. Em abril de 2006, Robert Kagan explicou assim os argumentos neoconservadores para a expansão da OTAN:
Os russos e chineses não veem nada de natural nas “revoluções coloridas” [da antiga União Soviética], apenas golpes de Estado apoiados pelo Ocidente destinados a ampliar sua influência em regiões estratégicas do mundo. Estão tão errados? A liberalização bem-sucedida da Ucrânia, incitada e apoiada pelas democracias ocidentais, não poderia ser o prelúdio da incorporação dessa nação à OTAN e à União Europeia, em resumo, a expansão da hegemonia liberal ocidental?
Kagan reconheceu a terrível consequência da ampliação da OTAN. Cita um especialista dizendo: “O Kremlin está se preparando muito seriamente para a batalha pela Ucrânia.” Os neoconservadores buscaram essa batalha. Após a queda da União Soviética, tanto os Estados Unidos como a Rússia deveriam ter buscado uma Ucrânia neutra, como um amortecedor prudente e uma válvula de segurança. Em vez disso, os neoconservadores quiseram a “hegemonia” dos Estados Unidos, enquanto os russos assumiram a batalha, em parte para se defender e em parte por suas próprias pretensões imperialistas. Sombras da Guerra da Crimeia (1853-1856), quando a Grã-Bretanha e a França tentaram enfraquecer a Rússia no Mar Negro, após as pressões russas sobre o Império Otomano.
Kagan escreveu o artigo como um cidadão particular, enquanto sua esposa, Victoria Nuland, era a embaixadora dos Estados Unidos na OTAN sob o mandato de George W. Bush Jr. Nuland tem sido a agente neoconservadora por excelência. Além de servir como embaixadora de Busch na OTAN, foi secretária de Estado adjunta para Assuntos Europeus e Eurasiáticos, de 2013 a 2017, com Barack Obama, quando participou da derrubada do presidente pró-Rússia da Ucrânia, Viktor Yanukovych, e agora atua como subsecretária de Estado com Biden, guiando a política dos Estados Unidos em face à guerra na Ucrânia.
A perspectiva neoconservadora se baseia em uma falsa premissa predominante: que a superioridade militar, financeira, tecnológica e econômica dos Estados Unidos permite que ditem condições em todas as regiões do mundo. É uma posição de grande arrogância e desprezo pela evidência. Desde os anos 1950, os Estados Unidos foram frustrados ou derrotados em quase todos os conflitos regionais em que participaram. Mesmo assim, na “batalha pela Ucrânia”, os neoconservadores estavam prontos para provocar um confronto militar com a Rússia, expandindo a OTAN apesar das veementes objeções da Rússia, porque acreditam fervorosamente que a Rússia sairá derrotada por suas sanções econômicas e o armamento da organização atlântica.
O Instituto para o Estudo da Guerra, um think tank neoconservador dirigido por Kimberley Allen Kagan (e apoiado por uma série de fornecedores em matéria de defesa como General Dynamics e Raytheon), continua prometendo uma vitória ucraniana. Sobre os avanços da Rússia, o Instituto fez um comentário típico: “Independentemente de qual lado mantém da cidade [de Severodonetsk], é provável que a ofensiva russa tenha atingido seu ápice em termos operacionais e estratégicos, dando à Ucrânia a chance de retomar uma contraofensiva a nível operacional para empurrar as forças russas de volta.”
Os fatos no terreno, não obstante, sugerem o contrário. As sanções econômicas do Ocidente tiveram pouco impacto adverso à Rússia, ao passo que seu efeito bumerangue no resto do mundo foi grande. Além disso, a capacidade dos Estados Unidos de reabastecer a Ucrânia com munição e armamento se viu seriamente obstaculizada por sua limitada capacidade de produção e pelas rupturas nas cadeias de fornecimento. A capacidade industrial da Rússia, é claro, supera a da Ucrânia. O PIB da Rússia era cerca de 10 vezes o da Ucrânia antes da guerra, e a Ucrânia agora perdeu grande parte de sua capacidade industrial na guerra.
O resultado mais provável das batalhas atuais é que a Rússia conquiste uma grande parte do território da Ucrânia, talvez a deixando sem nada ou com muito pouco do litoral. Na Europa e nos Estados Unidos, aumentará a frustração com as perdas militares e as consequências da estagflação da guerra e das sanções. Os efeitos indiretos podem ser devastadores, se um demagogo de direita assumir o poder nos Estados Unidos (ou no caso de Trump, retornar ao poder) prometendo devolver ao país seu desvanecido poder militar por meio de uma escalada perigosa.
Em vez de arriscar este desastre, a verdadeira solução é acabar com as fantasias neoconservadoras dos últimos 30 anos, com a Ucrânia e a Rússia retornando à mesa de negociação e a OTAN se comprometendo a colocar fim ao seu desejo de expansão para a Ucrânia e a Geórgia, em troca de uma paz viável que respeite e proteja a soberania e a integridade territorial da Ucrânia.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Guerra na Ucrânia: o último desastre provocado pelos neoconservadores. Artigo de Jeffrey Sachs - Instituto Humanitas Unisinos - IHU