20 Junho 2022
Giovanni Maria Flick, presidente emérito da Consulta, Rocco D'Ambrosio, teólogo e professor da Gregoriana, e Riccardo Cristiano, jornalista vaticanista, discutiram a guerra na Ucrânia com os fiéis da paróquia romana de San Saturnino no dia 8 de junho passado. Eis aqui as impressões de dois dos oradores, Rocco D'Ambrosio e Riccardo Cristiano.
O texto é publicado por Settimana News, 17-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Tínhamos uma ideia, um projeto para discussão? Felizmente não! Se achássemos que estávamos certos, que a verdade era algo estático e que como sempre estaria ali, bem ali mesmo, certamente teríamos seguido a ideia, o projeto. A verdade é a mesma de sempre, hoje só precisa ser explicada nos termos certos para ilustrá-la depois de Kiev. Tanto é a mesma. Nós, juízes eternos fora e além da história, precisamos apenas envolver novos sujeitos em sua apresentação.
Portanto, o encontro teria sido o início de nosso “projeto cultural”, baseado em três relações: “A guerra justa na doutrina da Igreja e na Constituição italiana” de Giovanni Maria Flick; “Doutrina, fio que une a ação dos papas diante dos conflitos” de Rocco D'Ambrosio; "A Ação da Santa Sé após os acontecimentos de 24 de fevereiro de 2022 como serviço para a paz" de Riccardo Cristiano.
Mas como não pensamos assim, precisávamos sair de casa e ir buscá-la, a verdade, sem um projeto. Em certo sentido, sentimos a necessidade de usar o convite da paróquia de San Saturnino para cruzar as competências teológicas de um de nós, Rocco, com as competências jurídicas de outro, Giovanni Maria Flick e com aquelas históricas, de outro de nós, Riccardo, para buscar melhor, com a ética, o direito e a história, quais seriam os sinais que podem nos levar a encontrar a verdade juntos.
Assim nasceu este "nós", que, no entanto, não existe, porque pensávamos que essa busca não fosse entre "nós", mas conosco, ou seja, entre os três que tinham escolhido investigar e os interlocutores chamados pela paróquia para a procurar conosco. Um resultado importante surgiu. Que a guerra, essa guerra, é importante, muito importante, porque tirou de nossos olhos o véu que nos impedia de ver que a guerra está dentro de nós. Também estava entre nós reunidos na paróquia, entre diferentes prioridades pessoais e culturais, muito diferentes:
“Somos chamados a governar o mundo e, portanto, nossos erros são mais graves do que os dos outros. Nossos erros são a causa dos erros dos outros." Ou: “Mas se não queremos ter problemas, é melhor que o problema desapareça. A paz importa mais”.
Este confronto com várias facetas, jurídica, ética, jornalística, deixou claro que a guerra é o ponto que evidencia outra guerra, aquela que acontece dentro de nós. “Preciso de modelos, como posso viver se não tenho mais? É por isso que é preciso oferecer certezas totais, mas sobre quem somos, quem sou eu”.
Isso foi importante para os três, jurista, jornalista e filósofo. Realmente não temos modelos? Então a guerra está em nossa casa. Repudiar a guerra neste caso significa pedir a todos que sejam como cada um de nós para dar um suspiro de alívio e certificar-se de que nosso modelo é universal, não há problema que realmente me preocupe!
Como se pode ver, estar no limiar entre nós e a história é complexo, coloca um problema de identidade. Também surgiu de uma importante reflexão, quando Flick falou de guerras santas. Se está claro que a guerra na Ucrânia é santa para Putin e Kirill, isso ajuda aqueles que se sentem fora de todas as guerras santas a não quererem ajudá-los. Mas a minha guerra contra um mundo corrupto como é? Não é "santa"? É uma guerra "normal" ou tem elementos "santos"?
Aqui surgiram algumas interseções interessantes. Talvez seja por isso que uma intervenção evocou o realismo. Todas as guerras santas são contra a corrupção total e levam a uma corrupção ainda maior, numa corrida desenfreada rumo ao abismo da pureza. Mas por que, afinal, precisamos ser puros? O que é mais puro do que infligir o custo de sua culpa ao culpado?
Dessa forma, misturando direito, história e ética, surgiu justamente que a Ucrânia nos leva para nossa guerra fluida. Estamos sozinhos diante do resto do mundo, nos confrontamos, mas na bolha das mídias sociais, para confirmar que não estamos sozinhos. Portanto, não há mais limites onde se colocar, nossos modelos não podem ser abalados ou desafiados, discutidos ou revistos. Fazer isso seria como mergulhar sem o respirador.
A discussão assim tornou-se verdadeira: tratava-se da guerra interna de um país que se sente Ocidente, isto é, líder do mundo, depositário dos destinos alheios, galardoado por um título mais elevado, mas que perdeu o rumo e não quer admitir não saber mais qual é o norte, qual é o sul, quais injustiças se consomem, onde há mais vítimas e quanta responsabilidade tem “a economia que mata” (Papa Francisco).
Na verdade, enquanto falávamos sobre eles - os ucranianos - falávamos sobre nós. Estamos em guerra, mas sem saber, agora atiramos de todos os prédios mas ninguém o diz, ninguém o sabe. A Ucrânia também é nossa grande metáfora: faz sentido resistir? Ou devemos aceitar que isso é paz?
Aos poucos a assembleia deixou de ser uma assembleia, cada um falando consigo mesmo. Mas isso foi feito em voz alta e isso mudava tudo, porque a verdadeira guerra é aquela de lutar sozinho, com estereótipos aos quais nos prendemos. Flick, certamente um grande jurista, olhou nos olhos a nossa certeza de que repudiar a guerra possa ser feito sozinhos. Está acontecendo aqui? Cruzamos o limiar, pensando nele, ou nos resignamos a pensar apenas por nós mesmos?
Em um sínodo não há maioria nem minoria e, de fato, em San Saturnino, esta noite, não se manifestou o desejo de vencer. Este foi o sucesso da noite. Ao ouvir as muitas necessidades de se expressar, surgiu a verdadeira novidade. Se olharmos para os encontros normais, os oradores falam, mas ninguém apresenta perguntas.
Em San Saturnino a discussão foi mais longa que a apresentação, porém, mais do que perguntas surgiram indagações. Como descobrir que juntos poderíamos talvez não vencer, mas construir a paz - aqui - antes que na Ucrânia.
O sonho desta noite é que este sínodo sobre a guerra dentro de nós à luz da guerra na Ucrânia possa se expandir. Não para vencer: nos sínodos não se vence. Para caminhar juntos em uma sociedade onde todos caminham sozinhos, falando da guerra sem saber de qual guerra realmente se esteja falando.
Seria bom se as paróquias romanas fizessem disso não um projeto, mas um método aberto: a guerra ucraniana está dentro de nós e tem implicações jurídicas, éticas e de atualidade: vamos descobri-las juntos. Por que não?
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Ucrânia: uma guerra reveladora - Instituto Humanitas Unisinos - IHU