“Não precisamos de uma geopolítica, mas de uma psicopatologia ou de uma psicopolítica”. Entrevista com Franco Berardi

Fonte: PxHere

14 Abril 2022

 

"A histeria de toda a modernidade é a identificação entre liberdade e poder, a ideia de que o poder se manifesta no interior da dimensão da liberdade e esta é ilimitada", constata Franco ‘Bifo’ Berardi  ao falar sobre a pandemia e a guerra. O escritor e filósofo italiano conclui afirmando que a única vacina eficaz contra o pânico é o pensamento coletivo.

 

A entrevista é de Amador Fernández-Savater, publicada por Ctxt, 10-04-2022. A tradução é do Cepat.

 

O que aconteceu com o desejo – íntimo e social – durante a pandemia? A visão política tradicional da esquerda, que relega tudo o que diz respeito à subjetividade à esfera privada, não se faz a pergunta. É então a extrema direita que canaliza os desconfortos que hoje atravessam os corpos.

 

A pandemia provocou um fenômeno generalizado de apagão libidinal, uma retirada do desejo dos lugares, objetos, atividades em que estava presente. Essa retirada é ambivalente: por um lado, falta de disposição, desânimo, depressão. Mas também fuga da competitividade, da busca do sucesso e do consumo. Essa ambivalência atravessa eventos como a “ grande demissão”, o êxodo das grandes cidades ou o que se esconde sob o rótulo midiático da “síndrome da cabana” [medo de sair de casa].

 

Não estamos diante de movimentos políticos óbvios, como a fuga do trabalho alienado durante os anos sessenta e setenta. Seremos capazes de escutar esses fenômenos impuros e ambivalentes? É a aposta do pensador italiano Franco Berardi (Bifo) em seu último livro, El tercer inconsciente: la psicoesfera en la época viral (O terceiro inconsciente: a psicosfera na era viral).

 

Isso exige que mudemos a nossa perspectiva: passar dos conhecimentos dominantes da sociologia ou da geopolítica para uma psicopatologia ou psicopolítica, ou seja, construir uma nova razão sensível capaz de se sintonizar com as correntes de desejo que atravessam a sociedade.

 

Apocalipse, pandemia e guerra

 

Franco Berardi: Eu queria dizer duas palavras sobre o livro e seu contexto, para começar. Em setembro de 2020, li uma declaração da diretora da Agência de Saúde do Canadá que dizia: “Skip kisses” (Evite os beijos), “ in any case you have sexual relations don´t forget to wear sanitary mask” (no caso de ter relações sexuais, não se esqueça de usar a máscara sanitária), “anyway in the present condition the best is going solo” (de qualquer forma, na condição atual, o melhor é ir sozinho), uma expressão que eu nunca tinha ouvido antes.

 

Ao ler essas palavras, dei-me conta de que estava ocorrendo uma mutação que afetaria a vida social comunitária em um nível muito profundo, que modificará a percepção do corpo do outro, da pele do outro, dos lábios do outro; os lábios não são apenas um lugar de acesso ao prazer, mas também onde o sentido, o significado, é produzido e comunicado.

 

 

O velho hippie que sou teve, primeiro, uma reação de preocupação e pessimismo. Mas depois disse a mim mesmo: tentemos não julgar, não tirar conclusões precipitadas, mas viver esse processo, essa passagem, o que eu vislumbrei como um limiar, um longo limiar de transformação, tentemos vê-lo como a passagem para um terreno desconhecido.

 

Durante os dois anos da pandemia, minha principal atividade foi tentar entender as mutações psíquicas, as mutações da subjetividade social; especialmente da geração que está crescendo agora, que está descobrindo o mundo, que está descobrindo o corpo do outro. Nesta pesquisa me senti acompanhado por um grupo que se reúne duas vezes por semana desde o início de abril de 2020, o Grupo Intercontinental de Pesquisa sobre a Pandemia, um grupo de amigos e amigas, a maioria psiquiatras e psicanalistas, mas também profissionais da saúde e psicoterapeutas.

 

Tentei responder a essa pergunta com a imagem do “terceiro inconsciente”, a ideia de que estamos entrando na era do terceiro inconsciente. Quem lida seriamente com essas coisas pode rir de minhas palavras, porque o terceiro inconsciente não significa nada. Não há um primeiro inconsciente, um segundo inconsciente; o inconsciente não tem história. Mas existem psicosferas diferentes, campos de interseção entre o social e a psique.

 

Uma primeira psicosfera é o inconsciente de que fala Freud, quando diz que o inconsciente é efeito de uma repressão e que se manifesta por meio de um mal-estar do tipo neurótico. Uma segunda psicosfera seria o produto inconsciente neoliberal fruto da extrema aceleração do universo econômico, social, linguístico, comunicativo e, principalmente, do universo dos estímulos informativos e psíquicos. Aí passamos da neurose à psicose como manifestação privilegiada do mal-estar.

 

O livro se propõe a discorrer sobre se existe uma terceira psicosfera, o inconsciente da pandemia. Nestes anos a aceleração estancou e ocorreu uma “psicodeflação”: uma diminuição na energia de aceleração que caracterizou os últimos quarenta anos. Quais serão os efeitos dessa psicodeflação? Esta é a questão que exploro no livro.

 

Mas agora, com a permissão do editor, parece-me que este livro já nasce velho, porque cruzamos o limiar em uma nova direção: a guerra. Qual é a relação entre a pandemia e a guerra? Eu entendo a guerra atual como uma reação agressiva à psicodeflação pandêmica, uma resposta à depressão global.

 

 

Amador Fernández-Savater: Queria fazer referência, para começar, a um texto que li recentemente de um autor que não costumo frequentar muito e que é o pensador judeu Emmanuel Lévinas. É um artigo de 1946 onde reflete sobre a experiência dos campos de concentração em que esteve preso durante a guerra. A certa altura ele diz: “Nos campos conhecemos a expectativa do fim do mundo”. Ele não se refere ao fim do mundo físico, mas à explosão das categorias que organizam o sentido de nossa experiência do mundo. E citando o profeta Isaías, afirma: “Esperávamos, para depois da guerra, um novo céu e uma terra desconhecida”. Ele chama isso de “sensibilidade apocalíptica”. A palavra apocalipse tem dois sentidos: fim do mundo e desvelamento ou revelação. A sensibilidade apocalíptica é a sensação de que aquilo que existe não se sustenta mais e é preciso “um novo céu e uma terra desconhecida”.

 

Mas o surpreendente, diz Lévinas, é que depois da guerra voltou a normalidade, o mundo se refez como se nada tivesse acontecido. Não apenas na banalidade cotidiana, mas na repetição do pior: em 1946 ocorre o pogrom antijudaico de Kielce. Lévinas pergunta-se então: “Foi tudo vaidade?” (este é o título do texto).

 

E a resposta dele é não, que é preciso trabalhar para recolher os efeitos do desvelamento, para que não desapareçam e tudo seja vaidade das vaidades. Faz-se necessária uma “ingenuidade superior” para evitar a anulação da experiência e os mortos engrossem simplesmente as estatísticas. Registrar e pensar sobre os efeitos de revelação é trabalho de uma vida inteira.

 

Este livro também nasce de uma sensibilidade apocalíptica. Franco Berardi tem visões no confinamento da pandemia. Ele vê o fim de um mundo e a possibilidade de outro. É um livro cheio de pontos de interrogação. Será a crise do coronavírus a ocasião perfeita para uma melhoria do sistema ou o ponto de partida de uma deriva existencial, cultural, política?

 

O livro do Bifo é um livro ingênuo no melhor dos sentidos possíveis. Vimos os pensadores mais conhecidos nos últimos anos simplesmente reafirmando suas posições anteriores, sem se deixar questionar pelo que estava acontecendo. O caso de Giorgio Agamben é o mais conhecido, mas não o único. Os pensadores geralmente não se atrevem a essa ingenuidade de não saber tudo de antemão.

 

A experiência pela qual passamos ainda está para ser contada e pensada. Isso não aconteceu mais porque, mesmo que não haja mais nenhuma mutação do vírus, deixou marcas profundas em nossos corpos. Marcas de terror, de distanciamento social, de obediência, mas também de desvelamento. Tudo isso é o que Franco Berardi está pensando.

 

Como então não vai ser atual? Não devemos ceder ao tempo da conjuntura; devemos resistir à vaidade das vaidades, registrar os lampejos de revelação, e o livro de Bifo é uma ferramenta maravilhosa para isso.

 

Geopolítica ou psicopatologia?

 

A primeira pergunta que eu queria lhe fazer é uma questão de método ou de perspectiva. Em um artigo recente sobre a guerra na Ucrânia você diz algo que me interessou muito: “Não precisamos de uma geopolítica, mas de uma psicopatologia ou de uma psicopolítica”. Não precisamos tanto de um pensamento das macrodeterminações que nos definem, das determinações sociológicas, políticas, históricas, mas também de um pensamento, de uma sensibilidade, capaz de apreender as flutuações dos desejos, dos estados de ânimo, da produção de subjetividade. Outra forma de pensar. Então, a primeira pergunta seria esta: o que seria uma perspectiva psicopolítica ou psicopatológica?

 

Franco Berardi: Geopolítica ou psicopatologia? Claro que a geopolítica tem um papel na compreensão do mundo contemporâneo, mas o problema é que ela se limita a descrever os efeitos de superfície. Temos que entender o que está acontecendo em um nível muito mais profundo: o nível das inversões de desejo, o nível da mutação psíquica diante de uma aceleração caótica dos processos sociais.

 

 

Para compreender a genealogia do nazismo de Hitler, é preciso compreender o sentimento de humilhação que se espalhou na Alemanha após o Tratado de Versalhes. O medo e a depressão foram compensados por uma reação agressiva exagerada. Há um filme de Ingmar Bergman chamado O ovo da serpente (1977) que narra precisamente a genealogia do nazismo, do ponto de vista de uma situação psicótica cotidiana. No início do filme vemos uma multidão em preto e branco que parece sonolenta e no final essa multidão se transforma em uma massa agressiva e pronta para a guerra.

 

Acho que estamos em uma situação de depressão epidêmica semelhante. Na Itália, entre os 15 e os 30 anos, há uma multiplicação dos suicídios. Há uma predisposição à depressão sobre a qual temos que falar se quisermos entender o que está acontecendo. Não quero dizer que a guerra na Ucrânia possa ser reduzida a uma questão de psicanalistas. Mas a psique dos russos, dos ucranianos, de todo o mundo, está hoje em uma situação de depressão e de possível reação guerreira compensatória. A geopolítica não explica nada disso.

 

O retorno da Terra

 

Amador Fernández-Savater: Eu gostaria de lhe perguntar sobre a distinção que você faz entre Terra e Mundo. O Mundo seria esse “objeto” que a política clássica acreditava dominar de Descartes a Maquiavel. Mas a Terra é algo muito diferente, o indomável. O vírus seria uma manifestação da Terra. Poderia desenvolvê-lo?

 

Franco Berardi: Tomo essa distinção de um pensador japonês chamado Sabu Kohso. Sabu escreveu um livro chamado Radiation and Revolution. É o relato da experiência de um ativista, e ao mesmo tempo filósofo, que viveu a catástrofe de Fukushima trabalhando entre as pessoas atingidas pelo tsunami. Sabu discute a reação após um acontecimento tão horrível e destrutivo. Somos, nesse momento, diz ele, como estranhos em um planeta alheio que não conhecemos e onde tentamos sobreviver.

 

Ele propõe distinguir entre Mundo e Terra. O que é o Mundo? É o produto de nossa atividade linguística, política, econômica, produtiva, a evolução da civilização e daquilo que poderíamos chamar de cultura no sentido filosófico, antropológico. O mundo encontra-se cada vez mais desafiado pela Terra, pelo retorno de forças que não podemos controlar: os incêndios que destroem grandes áreas do planeta, as águas do oceano e tudo o que conhecemos como catástrofe ecológica, um processo acelerado hoje pela guerra. Isso é a Terra, a natureza que hoje retorna, incluindo a natureza humana.

 

 

O neoliberalismo se afirma desde o início como darwinismo social, segundo esse pensamento essencialmente falso e ideológico de que na natureza só sobrevivem os mais fortes e a economia deve ser aceita como natureza onde vencem os mais fortes. Mas há aqui uma mistificação. Se nos definimos como humanos, é porque houve uma ruptura cultural que nos permite considerar a natureza como algo muito bonito e gentil, mas também violento e perigoso. Por isso inventamos coisas como a linguagem, a solidariedade social ou o Estado, que odiamos com razão, mas que nasceu do problema da natureza como um perigo mortal.

 

A agressividade da natureza retornou porque o neoliberalismo nos disse que o mais forte deve vencer. E o mais forte é o vencedor neoliberal, o mais forte é Vladimir Putin; a força dos fortes é a guerra.

 

Psicodeflação

 

Amador Fernández-Savater: Isso me lembra tudo o que Isabelle Stengers fala sobre a “intrusão de Gaia”. Gostaria de passar ao tema do terceiro inconsciente, aquele que causa – acelera, radicaliza, manifesta? – a crise do coronavírus: um apagão libidinal completo, a psicodeflação. O que pode nos dizer sobre esse terceiro inconsciente? Embora ainda seja um território desconhecido, magmático, em ebulição, que tendências detecta? O que pode compartilhar conosco sobre esse trabalho com psicanalistas e terapeutas que você desenvolve há dois anos?

 

Franco Berardi: O terceiro inconsciente é definido em relação à inflação psíquica da era neoliberal: uma aceleração extrema do corpo e da mente coletiva com o objetivo de um aumento contínuo da produtividade, sobretudo a produtividade intelectual, o trabalho cognitivo, uma exaltação da energia como força produtiva e capacidade de dominar a realidade. Obviamente, o vírus rompe com essa corrida, com essa aceleração.

 

O que é o vírus? O vírus é uma concreção material invisível, um retorno da matéria que a abstração do capitalismo financeiro tentou esquecer, suprimir, anular. A matéria retorna e rompe a continuidade das cadeias produtivas, das cadeias de distribuição, provocando o “great supply chain disruption” [a grande ruptura da cadeia de suprimentos], como dizem os americanos, mas também das cadeias afetivas.

 

O efeito dessa desaceleração ou psicodeflação é um efeito que se apresenta como depressivo do ponto de vista psíquico, é a sensação de ter perdido algo. Perdemos, em primeiro lugar, a força política de governo da realidade. O vírus é um caotizador universal, diria Félix Guattari, um produtor de caos em massa. E o que é o caos? O caos não é uma realidade limitada, mas uma relação entre a mente humana e o ambiente, o ambiente físico, comunicativo, linguístico. Há caos quando o cérebro não consegue elaborar uma realidade que se torna mais rápida e complexa do que podemos processar.

 

 

Mas quando entramos em uma dimensão caótica sempre há pessoas estúpidas que declaram “guerra ao caos”: guerra ao vírus, às drogas, ao terrorismo. E o que acontece então? O caos se multiplica por cem: o narcotráfico, as máfias, o terrorismo, as catástrofes. O caos se alimenta da guerra. Guattari sugere que aprendamos a escutar o caos, a escutar a voz do caos, a aprender um ritmo novo, porque isso é o caos, um ritmo novo. A psicodeflação tem sido uma reação saudável, entre aspas, ao caos. Reduzimos o ritmo, desaceleramos.

 

O mundo branco, o mundo cristão, o que chamamos de Ocidente, é muito extenso e inclui a Rússia. A Rússia é Ocidente do ponto de vista cultural. A força que move a história e a cultura russas é a mesma força que move os Estados Unidos e a Europa: a força da dominação agressiva, a força da expansão, a força do futuro. A palavra futuro é central para entender o que estou tentando dizer. Futuro significa expansão no pensamento ocidental, mas o problema é que a expansão se esgotou, hoje se tornou impossível, só podemos expandir através do massacre, em primeiro lugar, da natureza. O crescimento econômico, esse mito total e central do pensamento econômico, compartilhado por todos os políticos da direita e da esquerda, hoje significa apenas catástrofe, destruição e morte.

 

O futuro acabou e estamos ficando velhos. O envelhecimento é um fato absolutamente central no Ocidente (também na China, certamente). O que é o envelhecimento? Uma perda de energia, de poder, de futuro, obviamente. Mas o cérebro ocidental não pode tolerar a ideia do fim da expansão. A nossa civilização sempre reprimiu o envelhecimento e a morte como uma experiência essencial da vida humana, o que no livro chamo de “devir nada”. Temos que falar sobre esse devir nada se quisermos sair da loucura da guerra, da destruição total, da bomba nuclear; porque os velhos preferem levar o mundo inteiro com eles para o inferno a aceitar a morte e o devir nada.

 

 

O que aprendi com a experiência do Grupo Internacional de Pesquisa sobre a Pandemia? Uma coisa fundamental: contra o pânico só existe uma vacina e essa vacina é pensar juntos. Pensar e ainda mais pensar juntos tem um enorme potencial terapêutico e político. A única coisa que podemos fazer neste mundo onde o Mundo se confunde com a Terra, em que não entendemos onde estamos ou como sobreviver, a única coisa que podemos fazer para escapar do pânico e da depressão é pensar juntos.

 

Amador Fernández-Savater: E como é difícil fazer isso quando o encontro entre os órgãos é proibido! A coisa mais difícil de suportar neste tempo foi para mim essa dificuldade de inventar maneiras de pensar juntos. O terror atomiza; e contra Descartes é preciso dizer que não há um eu que pense sem um tu que responda. O campo do pensamento crítico tornou-se muito estreito, qualquer dúvida em relação ao discurso oficial é imediatamente descartada como um delírio negacionista. E agora, na situação de guerra, impera também esse tipo de obrigação de se posicionar em um tabuleiro pré-estabelecido, de ter que escolher entre Putin ou a ideia ocidental de liberdade, que são fundamentalmente a mesma coisa, como você explicou.

 

A resignação contra a abstração

 

Queria voltar à experiência do primeiro confinamento. Uma experiência ambivalente. Por um lado, o terror e o distanciamento social; por outro lado, os aplausos, a solidariedade e a sensação de que o que está aí não se sustenta mais. O mote que circulava então, de sacada em sacada, era que não se devia voltar à normalidade porque a normalidade era o problema. No silêncio, na desaceleração, tivemos lampejos de uma outra vida possível.

 

Mas minha impressão é que não conseguimos prolongar esse momento, abrir essa bifurcação. Ao sair daquele primeiro confinamento, ficamos sem voz. Há um momento no livro em que você diz que se não surgir uma nova subjetividade, o possível se perde, se esvai. É vaidade das vaidades. Mas, de que tipo é essa nova subjetividade? Que tipo de força pode empurrar uma passagem de limiar diferente, prolongar o evento, impedir que suas marcas se desvaneçam, abrir uma bifurcação existencial, outra deriva civilizatória?

 

Franco Berardi: Para mim, o primeiro confinamento foi uma experiência bastante alegre, mas para muitos jovens não foi. A mídia atacou os jovens, disse-lhes de tudo, os desqualificou e os criminalizou por quererem tomar uma cerveja. Mas foram os jovens que pagaram o preço mais alto para salvar os idosos. Como avô, agradeço muito, mas não posso reprová-los por quererem tomar uma cerveja.

 

De repente, o pensamento de uma mudança de paradigma social se disseminou. Na Itália está claro para todos que a catástrofe sanitária foi sobretudo um efeito da destruição neoliberal do sistema público de saúde. Todos pensávamos que iríamos testemunhar um retorno ao keynesianismo, a um pensamento social da economia, mas isso não aconteceu. A ideia de que o capitalismo pode ser racional e humano é uma ilusão. O que aconteceu foi a radicalização do empobrecimento e o enriquecimento privado dos super-ricos.

 

Por que isso aconteceu? Como podemos evitar as consequências catastróficas que já estão acontecendo? Minha resposta está contida na palavra psicodeflação, mas com uma evolução linguística muito interessante: a palavra “resignação”. Quando pensei nisso pela primeira vez, me pareceu uma blasfêmia. Minha formação materialista e marxista se rebelava contra ela. Mas depois li em um jornal estadunidense a expressão “great resignation” [grande demissão]. Como sabemos, quatro milhões e meio de americanos decidiram não voltar ao trabalho após a pandemia e a mesma coisa acontece na China. Há cada vez mais jovens e não tão jovens que estão se perguntando: por que tenho que trabalhar por um salário de merda, em condições humilhantes, inaceitáveis, idiotas?

 

 

A palavra “resignation” tem dois sentidos. O primeiro é aceitar o inaceitável. Mas o outro é demitir-se, abandonar o campo social, o campo produtivo, sair para sempre. Esse segundo significado me fez pensar em um terceiro: “re-signation”, a ressignificação. Temos que ressignificar a nossa relação com a necessidade, com a natureza, com nossas formas de vida cotidiana, ressignificar a relação entre o concreto, o útil e a produtividade.

 

A primeira página de O Capital explica que o miolo do capitalismo é a abstração, o capitalismo é um processo de acumulação de valor abstrato, o que significa ex-tracto, extraído, o valor que o capital extrai da vida concreta, das necessidades concretas, das potências concretas da humanidade. O retorno do útil e do concreto é o que mais me interessa hoje.

 

A morte como condição de liberdade

 

Amador Fernández-Savater: Uma última pergunta. Há uma famosa frase de Spinoza que diz: “Não há nada que o homem livre pense menos do que na morte”. No entanto, você diz que hoje, para recuperar a liberdade, temos precisamente que fazer amizade com a morte, voltar a pensá-la e tornar-nos amigos do devir nada.

 

Franco Berardi: E se Spinoza estiver errado? Um homem livre não pensa na morte. Bem, mas somos realmente homens livres? E, além disso, o que significa liberdade? A associação entre liberdade e poder termina em formas histéricas do pensamento da política.

 

A histeria de toda a modernidade é a identificação entre liberdade e poder, a ideia de que o poder se manifesta no interior da dimensão da liberdade e esta é ilimitada. Mas não, meus queridos, vocês têm a liberdade de pular do quinto andar, mas se matam. Não é verdade que o poder se manifeste na liberdade, mas o contrário: a liberdade manifesta-se no poder e este não é ilimitado. A morte se coloca então como um problema que tem uma dimensão filosófica, psicanalítica e política muito importante.

 

 

A modernidade branca e imperialista rejeitou o pensamento da morte porque pensou o poder na dimensão da liberdade ilimitada. Essa liberdade ilimitada tem sido a máscara da escravização da maioria da humanidade, da liberdade neoliberal, da liberdade estadunidense, da liberdade da constituição americana, uma constituição escrita por negreiros, por escravistas. Quando a questão da escravidão foi levantada na convenção que redigiu a declaração constitucional americana, decidiu-se adiar o problema da escravidão. Resultado? Hoje o neoliberalismo reproduz um efeito da escravidão generalizada e em massa.

 

Estamos agora à beira da morte da civilização branca. Isso soa como um abismo assustador e catastrófico para nós, mas não é! Porque a morte é uma experiência de vida. Devemos pensar a morte como limite, como condição de liberdade, a libre muerte, a liberdade de morrer. Mas somos fascinados por uma reivindicação histérica romântica e fascista ilimitada de nosso poder. Pensar a morte, ironizar sobre ela, como faz Salman Rushdie em seu último romance, Quixote, é a única maneira de sair da história do Ocidente, da histeria assassina e suicida do Ocidente, da ideia do poder ilimitado.

 

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