03 Fevereiro 2018
“A lei recém-aprovada pelo Parlamento polonês é, ao mesmo tempo, escandalosa e coerente: a ‘demissão’ da Shoá, o fato de renegá-la como parte do passado polonês, é o último ato daquele secular e não raramente violento senso de estranheza que o país manifestou para com os ‘seus’ judeus.”
O comentário é da escritora italiana Elena Löwenthal, estudiosa do judaísmo, em artigo publicado por La Stampa, 02-02-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, cerca de 3,5 milhões de judeus viviam na Polônia, compondo, grosso modo, 11% da população total. Em 1945, havia 200 mil, e é terrivelmente fácil de fazer as contas: 90% foram exterminados. Em 2010, eram pouco mais de 3.000. Quer queira ou não, a Polônia é, ao mesmo tempo, o símbolo e a essência do extermínio, com o vazio absurdo que é reencontrado.
A lei recém-aprovada pelo Parlamento polonês é, ao mesmo tempo, escandalosa e coerente: a “demissão” da Shoá, o fato de renegá-la como parte do passado polonês, é o último ato daquele secular e não raramente violento senso de estranheza que o país manifestou para com os “seus” judeus.
Basta pensar que, mais de um ano após o fim da guerra, e precisamente no dia 4 de julho de 1946, com a cinza residual dos fornos crematórios ainda fertilizando o terreno dos campos, em uma cidadezinha polonesa chamada Kielce, 40 judeus foram assassinados, e mais de 80 ficaram feridos durante um verdadeiro pogrom desencadeado pela boataria de que alguns deles haviam sequestrado um menino para usar seu sangue – de acordo com o roteiro mais clássico e absurdo da violência antijudaica, desde a Idade Média.
No auge da guerra, no dia 10 de julho de 1941, sob as ordens dos Einsatzgruppen – os grupos especiais do Exército alemão ativos nos territórios ocupados – os civis poloneses do lugar massacraram dezenas de judeus na praça da cidadezinha de Jedwabne. Mais de 10 mil judeus foram mortos pelos alemães, mas sobretudo pelo diligente pessoal auxiliar polonês, durante as operações de deportação no gueto de Varsóvia.
Para resumir a cumplicidade polonesa no extermínio dos judeus por parte dos nazistas, o historiador Havi Dreyfuss, chefe do Centro de Pesquisas sobre o Holocausto na Polônia, do Yad Vashem de Jerusalém, cita um dado: “Entre os 250 mil judeus poloneses que tentaram se refugiar na zona rural polonesa, menos de 10% sobreviveram, porque a grande maioria foi entregue pela população local aos alemães”.
A grande história do judaísmo polonês, com seus grandes números, começou em torno do fim do século XVIII, quando o Império Russo estabeleceu a chamada “zona de residência” nas suas margens ocidentais – de fato expulsando todos os judeus do resto do território e confinando-os naquela faixa de fronteira que incluía grande parte das atuais Bielorrússia, Lituânia, Bessarábia, Ucrânia e Polônia.
Aqui ganhou vida aquele mundo judaico mítico, mas verdadeiro, feito de shtetl, pequenos burgos, e de populosos bairros urbanos, de devoção religiosa, grande literatura, insignes mestres da tradição, mas também leiteiros e mendigos. Sempre mantidos às margens e não apenas geográficas, porque os judeus na Polônia sempre foram considerados estrangeiros: vinham de longe, quer fosse a Jerusalém onde, de acordo com o catolicismo mais estrito, mataram Jesus, quer fosse a Rússia czarista, que era dominadora estrangeira e que os havia jogado ali.
Certamente, a Shoá foi concebida e levada em frente pela Alemanha nazista. Quem enfatizou isso, justamente nestes dias, de Jerusalém, foi aquele que talvez seja o seu maior historiador vivo, Yehuda Bauer: “É óbvio que os campos de extermínio eram campos alemães no solo da Polônia. Mas a insistência com que o governo polonês repete o que todos os centros de pesquisa e os memoriais da Shoá dão por certo parece esconder a verdadeira intenção da lei em questão...”.
Não é questão de culpas, mas sim de uma responsabilidade histórica (aliás, no centro da Conferência Internacional sobre o Antissemitismo, realizada há alguns dias no Ministério do Exterior italiano) que não pode ser compartilhada por toda a Europa.
É verdade, houve quem se rebelasse. É verdade que, se um judeu sobreviveu à Shoá, ele deve à coragem e ao senso de justiça daqueles que não aceitaram. Também na Polônia, é claro. Como a família Ulm, que pagou com a vida e à qual é dedicado o “Museum of Polish Saving Jews”, em Markowa. Mas a mensagem global do museu que apresenta os poloneses como uma nação de salvadores, “é uma mentira descarada”, escreve ainda Bauer.
Dos cerca de 21 milhões de poloneses, os historiadores estimam que cerca de 20 mil pessoas se esforçaram ativamente para proteger os judeus – “dos alemães, mas sobretudo dos seus vizinhos poloneses”. Que, não raramente, na zona rural, iam à caça dos judeus, armados com foices, para depois os entregarem aos alemães, explica Bauer, segundo o qual o procedimento atual é um duro golpe principalmente contra a pesquisa historiográfica. Que, a partir de agora, na Polônia, em nome de uma tão abstrata quanto insidiosa “honra nacional”, será pesadamente freada por uma autocensura de proteção, para evitar sanções.
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Polônia, terra esvaziada dos ''seus'' judeus, símbolo do extermínio. Artigo de Elena Loewenthal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU