23 Janeiro 2018
"A migração descontrolada pode levar à intolerância; acabará sobrando para nós também, e talvez em primeiro lugar. Eu não gostaria que tudo acabasse em outra Auschwitz".
A entrevista é de Aldo Cazzullo, publicada por Corriere della Sera, 21-01-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Rabino Di Segni | Foto: Reprodução Twitter
Rabino Di Segni, há 17 anos você é líder religioso da mais antiga comunidade judaica na diáspora, a de Roma. Como era o gueto quando você era pequeno, logo após a guerra?
Cheio de crianças. Papai era pediatra. Queríamos recomeçar, mas as feridas do Holocausto eram terríveis. O massacre de 16 de outubro de 1943 foi obra dos alemães. Mas depois foram os italianos que deportaram mais de mil judeus.
Como sobreviveu a sua família?
Muitos se sentiram seguros depois de ter entregado ouro aos nazistas. Meu pai Mosé sofreu uma busca em sua casa. Ligou por um telefone público para um amigo jornalista que o colocou em alerta. Ele não voltou para o gueto, fugiu com a minha mãe Pina para Serripola, um vilarejo de San Severino Marche.
Sua mãe era filha de um rabino.
Vovô foi o rabino de Ruse, a cidade de Elias Canetti, no Danúbio. Ele foi salvo pelo rei Boris, que disse a Hitler: os judeus búlgaros não se tocam. Ele morreu envenenado, talvez pelos nazistas. Resistir, no entanto, era possível.
O que você acha do retorno dos restos mortais de Vittorio Emanuele III?
Era melhor que ficasse onde estava.
E a beatificação de Pio XII?
Eu estudei sua história, e tenho que reiterar um juízo severo. Ele não fez nada para evitar a deportação. É verdade que depois ofereceu abrigo para muitos perseguidos.
Seu pai foi da resistência.
Medalha de prata. Ele lutou na batalha mais dura de 24 de março de 1944, enquanto seu primo Armando foi morto nas Fossas Ardeatinas. Outros primos morreram em Auschwitz. Mamãe estava escondida em um celeiro com meu irmão Elio e minha irmã Frida. Estava chegando uma equipe de rastreamento fascista e o padre foi avisar o grupo do meu pai, que chegou bem a tempo. Os fascistas fugiram.
Por que os judeus são o povo mais antigo do mundo? Por que eles foram perseguidos em toda parte e por todos?
É uma escolha do Todo-Poderoso: ele nos expôs a todo risco, e continua a fazê-lo; e ao mesmo tempo tem um compromisso com a gente para a nossa sobrevivência. Não sou eu que digo isso, são os profetas.
Vocês são o povo escolhido?
Não no sentido de uma suposta superioridade. A eleição é um desafio. É um processo que nos testa continuamente. Para nós não são permitidas coisas que são permitidas a uma pessoa comum. Somos chamados a respeitar uma disciplina específica, com todos os riscos que isso comporta.
Marx, Freud, Einstein, qual é o segredo da inteligência dos judeus?
Quando você é considerado diferente, você acaba se comportando de maneira diferente, mesmo não sendo religioso; e a evolução nasce da diferença. Somos um povo rico de excessos, tanto positivos quanto negativos: existem judeus muito inteligentes, e outros que não o são.
É verdade que São Francisco tinha origem judaica?
Um livro afirma isso, mas não tenho muita certeza. Sem fazer comparações, era judeu Dom Lorenzo Milani.
Você declarou: "Sempre inventamos coisas que nos foram levadas". O que quis dizer?
As revoluções do começo de 1900 foram feitas por judeus, depois eliminados cientificamente um por um, começando por Trotsky. Na Itália tivemos Modigliani e Treves, que fez o duelo com o Duce. Já dizia Malaparte: um judeu pode fazer uma revolução, não comandá-la.
Você criticou a Itália por ter votado contra o reconhecimento de Jerusalém como a capital de Israel. Por quê?
Porque é o reflexo da típica posição cristã e ainda mais muçulmana segundo a qual os judeus podem ser subjugados ou tolerados, jamais soberanos, nem mesmo em sua casa.
Jerusalém é também o lar dos palestinos.
Eu sei disso. Mas Jerusalém capital não é uma invenção de Trump. É uma questão política que remonta a 1948. É uma questão religiosa milenar. Não se esqueça que os cristãos fizeram as Cruzadas, e não foi para levar de volta os judeus para Jerusalém; nos lugares aonde chegavam os cruzados, destruíam as comunidades judaicas.
O que você acha da política de Netanyahu?
Não falo sobre política. Nem de Israel, nem italiana.
Há ainda antissemitismo na Itália?
Sempre houve, ainda existe e, ocasionalmente, ressurge de várias formas. Há a ideia religiosa que o povo judeu tenha cumprido a sua função, e deva vagar errante e disperso entre os povos como castigo por não ter acolhido a verdade. E há as curvas dos estádios que deformam símbolos para transformá-los em ofensas, sem percebê-lo; ou percebendo isso perfeitamente. É surpreendente que não haja mais nenhuma inibição para declarar simpatias fascistas.
Existe também um antissemitismo de esquerda?
Claro que sim.
O que você acha de Lotito (rumoroso caso de antissemismo no futebol, ndt)?
Desculpe-me, mas você e eu estamos nos encontrando aqui na sinagoga de Roma, em uma bela manhã ensolarada, para falar sobre Lotito?
E do Papa Francisco?
Ele é um Papa que sabe ouvir. Pedi-lhe para não mencionar mais os fariseus como um paradigma negativo, visto que o judaísmo rabínico descende deles; e ele fez isso. Pedi-lhe para não cair no marcionismo, e acredito que está sendo cuidadoso.
O que marcionismo?
A ideia – tão cara para o herege Marcião e ainda generalizada entre os leigos que pouco sabem sobre religião, como Eugenio Scalfari- que exista um Deus do Antigo Testamento, severo e vingativo, e um Deus do Novo, bom e amoroso. Mas Deus é um só. E é ao mesmo tempo Deus do amor e Deus da justiça. O Deus que perdoa, e o Deus dos exércitos.
Primo Levi criticou Israel depois de Sabra e Shatila.
É verdade, mesmo que a culpa foi pela falta de vigilância, não foram os israelenses que massacraram os palestinos. Enfim, Se non ora quando é um livro muito sionista. Até demais, quando se compraz pelos judeus com armas.
Você não tem divergências com o Papa Francisco?
Tenho muitas. Por exemplo, a papa apresenta o domingo como uma invenção cristã; mas se vocês têm o domingo, é porque nós temos o sábado. Quando Francisco veio aqui na sinagoga queria discutir teologia. Eu lhe respondi que não: cada um tem sua própria teologia, e não a muda; discutimos de outras coisas.
De migrantes?
Sobre os problemas da migração, nós judeus temos muitas feridas. A fuga, o exílio, o acolhimento fazem parte da nossa história e da nossa natureza. Mas eu me pergunto: todos os muçulmanos que chegam aqui pretendem respeitar os nossos direitos e valores? E o Estado italiano tem o poder de fazer com que sejam respeitados?
Você responde.
Infelizmente eu tenho que responder não, duas vezes. É por isso que estou preocupado. A Europa nasceu depois de Auschwitz; eu não gostaria que tudo acabasse em outra Auschwitz. Eu não sei quem seriam as vítimas desta vez. Só que a migração descontrolada pode levar à intolerância; acabará sobrando para nós também, e talvez em primeiro lugar.
A chegada de milhares de imigrantes muçulmanos é um problema para os judeus?
Não apenas para os judeus; para todos.
Você foi para a mesquita de Roma, mas o Imã não veio à sinagoga. Como assim?
A relação com o Islã é muito complexa. Nós estamos trabalhando. Na passeata do mês passado em Milão ouviram-se slogans em árabe louvando a Khaybar, o massacre de judeus feito por Maomé. Recebi cartas pessoais de desculpas por parte das organizações islâmicas; não ouvi nenhuma palavra pública.
O que é para você o Dia da Memória? (Nota de IHU On-Line: Dia Internacional da Lembrança do Holocausto é um dia internacional da lembrança das vítimas do Holocausto, o genocídio cometido pelos nazistas e seus adeptos que ceifou a vida de milhões de judeus durante a II Guerra Mundial. Ele foi designado ao dia 27 de janeiro, pela resolução 60/7 da Assembleia Geral das Nações Unidas em 1 de novembro de 2005, durante a 42ª sessão plenária desta organização).
Uma data necessária. Com riscos a evitar: a habituação, o tédio e, com o passar do tempo, a rejeição daqueles que dizem: ‘Não aguento mais essas pessoas que só ficam chorando.
Quem é Jesus para você?
Primeiro de tudo, um judeu. Ele conhecia a tradição judaica, pregou ensinamentos morais em grande parte compartilhados pela tradição, e em parte "heterodoxos". Mas para vocês é o Messias, o Filho de Deus; para nós não é.
Um falso Messias?
Eu não quero usar esta expressão. Para nós não é o Messias.
O que você acha das leis sobre uniões civis e o fim da vida?
O Estado faz as leis que considera necessárias; os crentes fazem o que acreditam, muitas vezes depois de ter-se aconselhado com a gente. A sedação profunda não é um problema; mas a hidratação e a nutrição não devem ser interrompidas. Nunca.
Vocês rabinos podem se casar.
Não podemos; devemos. Em nossa visão, um homem que não se casa não é plenamente realizado.
Como você imagina a vida após a morte?
Não é o centro das minhas preocupações. Acreditamos que a vida não termina aqui, neste mundo, nesta dimensão. Quanto ao resto, temos poucas informações, mas confusas.
Nós, cristãos, acreditamos na ressurreição da carne.
É um conceito judaico, você o tiraram de nós. Mas nós temos um sistema de pós-vida definido como o vosso, com Paraíso, Purgatório e Inferno. Há a ideia de punição e da recompensa; no mais, estamos discutindo há milênios. Vocês pensam nos judeus como um monólito; mas desde sempre nada mais fazemos que brigar.
Portanto, o lobby judeu não existe?
"Na Itália ‘lobby’ tem uma conotação negativa, nos Estados Unidos não: é um grupo que defende valores e interesses. E nós temos valores e interesses a defender".
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Memória do Holocausto - Dia Internacional. “Eu não gostaria que tudo acabasse em outra Auschwitz”. Entrevista com Di Segni, rabino da sinagoga de Roma - Instituto Humanitas Unisinos - IHU