24 Fevereiro 2023
"Um retorno à lógica das grandes potências não convém a ninguém. Nem mesmo à Rússia, que acabaria sendo um país satélite da China. Não convém ao mundo. Não convém à paz", escreve Gianfranco Brunelli, jornalista italiano, diretor da revista católica italiana Il Regno, do Centro Editorial Dehoniano de Bolonha, em artigo publicado por Il Regno, 23-02-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
É 24 de fevereiro, um ano depois.
O equilíbrio que havia se formado com o fim da Guerra Fria em 1991 não existe mais. A guerra imperialista de Putin contra a Ucrânia mudou radicalmente o cenário internacional e abriu caminho para uma transição incerta. Tudo depende do resultado do conflito. Que esta seja uma guerra de dimensões mundiais, mesmo que travada em um país, está fora de dúvida; basta fazer uma lista de ditaduras que apoiam abertamente Putin, por um lado, e as democracias que apoiam Zelensky, do outro. Bielorrússia, Coreia do Norte (leia-se China), Irã estão com Putin e fornecem armas para a Rússia; toda a frente das democracias ocidentais está armando a defesa da Ucrânia, a sua liberdade e a sua autodeterminação.
Não há dúvida de que existem muitos outros conflitos locais no mundo. Eles têm natureza e dimensões político-simbólicas diferentes, de área para área. A dor pelo sofrimento, as morte, a pobreza e a destruição são as mesmas, não mudam. E isso é igualmente insuportável.
Mas as consequências geopolíticas, com sua carga de consequências gerais, são diferentes. Algumas respondem a lógicas colonialistas e pós-colonialistas (basta pensar em muitos dos conflitos locais africanos); outras a questões religiosas ou pseudorreligiosas; outras a dinâmicas regionais de longo prazo.
Se olharmos para os dados quantitativos, certamente podemos falar de “uma guerra mundial em pedaços”, como observou o Papa Francisco. Mas a guerra na Ucrânia não faz parte de um desses conflitos. É outra coisa.
Aquela da Ucrânia é em si uma guerra mundial, a terceira depois de 1914, e é uma guerra que Putin declarou contra o Ocidente, especialmente contra a Europa. Dos cerca de cinquenta países que apoiam a Ucrânia, a maioria é europeia.
É uma guerra entre dois modelos opostos de organização social e política, que respondem a valores civilizatórios opostos: o modelo ditatorial, autocrático e totalitário, que atropela todas as formas de liberdade (interna e externa) de um lado, e aquele liberal democrático (mesmo com todas as contradições que as democracias têm) do outro.
De uma forma ou de outra, as consequências desta guerra têm um resultado global. A questão é qual modelo social e político, qual modelo de valores sai vitorioso do resultado desta guerra.
Se a Rússia de Putin se afirmar, então ficará demonstrado que as democracias não contam, que as ditaduras, espicaçando o direito internacional e todas as regras, recorrendo ao uso da força e à destruição em massa contra populações civis como instrumento de guerra, podem afirmar sua vontade de potência.
A vitória de Putin desglobaliza, como a guerra já começou a fazer, a economia global. A desglobalização e o retorno ao esquema nacionalista não irão permitir ao mundo vencer os próximos desafios mundiais: do combate às alterações climáticas às pandemias.
Enquanto no caso de uma vitória das democracias, permanece em aberto a necessidade de corrigir a globalização por meio de uma reorganização do modelo liberal multilateral.
O segundo aspecto diz respeito à Europa, em particular à União Europeia. A guerra de Putin não visa apenas a ocupação direta de uma parte da Ucrânia e a criação de um governo fantoche no resto do país, mas também a divisão e enfraquecimento da Europa. Politicamente dividida, militarmente fraca e subordinada aos EUA, economicamente dependente dos recursos naturais do Oriente, a Europa, seu modelo político e sua cultura desaparecem.
A guerra de Putin mostrou, pelo menos inicialmente, os limites da visão mercantilista da Europa. Depois surgiram algumas respostas unitárias significativas. A ideologia imperialista de Putin que visa reconstruir as fronteiras da URSS e as zonas de influência da Guerra Fria sobre a Europa de Leste exige, como resposta, que a União Europeia tenha uma capacidade autônoma de defesa e de decisão, inclusive financeira, supranacional, ou seja, independente dos Estados membros e de forma a contrabalançar politicamente a força dos Estados Unidos.
Uma maior autonomia militar da União equivale a estabelecer seu maior valor político e naturalmente econômico, reduzindo suas dependências tecnológicas de outros países.
Nem a França nem a Alemanha parecem querer abrir mão de seus respectivos privilégios nacionais. A Itália, depois de Draghi, não parece mais capaz de desempenhar um papel significativo. As recentes declarações de Berlusconi contra Zelensky e a favor de Putin - Berlusconi expressa na aliança de governo o ministro das Relações Exteriores, que também é coordenador de seu partido, - sugerem que a linha pró-europeia e atlântica do governo Meloni é ambígua, oportunista, não confiável.
Se a Europa está no centro da disputa, então é a Europa que deve desempenhar um corajoso protagonismo na busca de uma paz justa. A Europa é a única que pode garantir a paz futura num novo desenho internacional, fortalecendo a si mesma. Assim aparece um desenho retrógrado e carregado de consequências negativas aquele traçado por muitos comentaristas, que esperam uma mesa de negociações onde sejam a China e os Estados Unidos a decidirem o destino da guerra e da paz. Esse esquema prevê uma Europa fraca e subalterna, além de presentear à China uma legitimidade como superpotência que ainda efetivamente não possui.
Um retorno à lógica das grandes potências não convém a ninguém. Nem mesmo à Rússia, que acabaria sendo um país satélite da China.
Não convém ao mundo.
Não convém à paz.
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Europa, Ortodoxia Russa e a situação militar. Artigo de Gianfranco Brunelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU