20 Dezembro 2017
A virada do papa Francisco conclui o segundo milênio cristão superando as perdas culturais e evangélicas que tinham danificado as relações internas da Igreja e sua relação com mundo.
O artigo é de Daniele Menozzi, professor de história contemporânea na Normale de Pisa, estudioso do papado moderno e contemporâneo, publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 12-12-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
1. As intervenções do Papa Francisco propõem, desde o início de seu pontificado, uma reorientação das atitudes e orientações que se instalaram na Igreja Católica ao longo de dois mil anos de história. É uma solicitação para medir comportamentos individuais e coletivos herdados do passado à luz do princípio fundamental da misericórdia que é identificada como o núcleo central da mensagem evangélica. É evidente que essa óptica envolve uma revisão abrangente da qual bem poucos aspectos da vida do crente podem escapar. É, portanto, inevitavelmente arbitrário escolher na longa história da Igreja católica algum elemento em relação ao qual o ensinamento papal marca um distanciamento, uma diferenciação ou um rompimento. No entanto vou tentar identificar no segundo milênio da história cristã - ou seja, no âmbito cronológico que eu abordei em meus estudos - alguns momentos que me parecem que ter determinado na comunidade eclesial efeitos significativos e duradouros sobre os quais as indicações de Francisco comportam em uma transformação tal que pode prospectar o início de uma nova jornada.
Antes de abordar esse tema parece-me oportuno recordar um fato que, aparentemente secundário, eu acredito, ao contrário, seja decisivo para apreciar a novidade do Papa Francisco. No início do século XX a condenação ao modernismo de Pio X tinha comportado, dentro da Igreja católica, a rígida subordinação da pesquisa nos campos exegético, teológico, e histórico-religioso à autoridade eclesiástica. De fato, a liberdade de investigação científica - que é um dos pressupostos fundamentais da pesquisa - tinha sido submetida ao controle de quem na Igreja detinha, mesmo sem nunca ter praticado, a responsabilidade de governo. Para além das acusações e das repressões que envenenaram o clima eclesial da época, censura e a autocensura foram sua óbvia consequência. Os atrasos culturais e pastorais causados por essa situação estavam bem presentes aos padres do Concílio Vaticano II que procuraram na constituição Gaudium et Spes encontrar algum remédio. Reconheceram, de fato, que era preciso abandonar as posições daqueles que no passado não haviam aceitado a legítima autonomia da ciência. Tratava-se, como muitas vezes acontece nos documentos do Concílio, de uma mudança significativa, mas ainda assim parcial e limitada: a justaposição do adjetivo "legítima" ao substantivo "autonomia" deixou aberto o caminho para um controle eclesiástico sobre as atividades científicas.
Acredito que seja bem conhecido por todos que, especialmente depois do pontificado de Paulo VI, tal caminho foi amplamente frequentado pelos dicastérios vaticanos, em especial, pela Congregação para a Doutrina da Fé e que foi colocada em prática também por meio de intervenções episcopais que, apesar de serem frequentemente informais, incidiam com igual ênfase sobre a vida das comunidades eclesiais. Essas eram, de fato, privadas da confrontação com os desenvolvimentos da moderna cultura religiosa. Com o advento ao papado de Francisco registrou-se uma mudança não só nas práticas de governança eclesiástica, mas também nas abordagens sugeridas para a comunidade eclesial. A liberdade da investigação foi reconhecida como um fator positivo, aliás, decisivo, para a identificação das modalidades com que as Igrejas podem ler, nos contextos específicos em que vivem, o significado da mensagem evangélica e transmiti-lo aos próprios contemporâneos.
Em especial no que diz respeito à pesquisa histórica, Bergoglio aproveitou a oportunidade de rememoração da atitude católica sobre o Holocausto para proclamar sua plena autonomia. Não só. Na mesma circunstância ele dissolveu um mal-entendido, herdado da contraditória época eclesial liderada pelo Papa Wojtyla. João Paulo II não havia deixado de lembrar que a Igreja reconhecia plena liberdade às pesquisas sobre o passado, mas ele também havia acrescentado que cabia à autoridade eclesiástica, em qualquer caso, um juízo moral final sobre os eventos confirmados pelos estudos. Na visão de Francisco juízo moral e juízo histórico têm seus próprios âmbitos, fruto do reconhecimento da respectiva independência dos percursos.
Naturalmente com isso não quero dizer que Francisco tenha realizado o milagre de emancipar a história da Igreja dos condicionamentos apologéticos ou polêmicos que a acompanharam desde a sua institucionalização profissional dentro dos quadros formais do saber histórico nas últimas décadas do século XIX. Parece-me, porém, que um clima secular, resultante da repressão modernista do início do século XX, tenha mudado. Agora cabe aos estudiosos da disciplina, e só a eles - após a libertação, na medida em que forem capazes, do peso de seus preconceitos - reconstruírem o passado conforme ele realmente foi. E tal resultado pode ser proposto para a livre discussão de todos, e particularmente da comunidade eclesial, sem a preocupação de uma intervenção repressiva de uma autoridade externa aos critérios do trabalho científico.
Dito isto, acho que considero pertinente para mostrar uma primeira e significativa descontinuidade, quero me deter em três momentos importantes do passado eclesial em relação aos quais o papado de Bergoglio marca uma clara mudança de orientação.
2. O primeiro momento que irei abordar diz respeito à reforma gregoriana do século XI e, em especial, ao seu mais famoso documento, o Dictatus papae, presente na coleção oficial dos documentos do Papa Hildebrando, sob o título "Qual é o poder do pontífice romano". Naturalmente não é aqui o lugar para retomar as discussões que há décadas vêm acompanhando o estudo em relação ao autor, à datação, à tipologia de documento do texto e às intenções que orientaram a sua elaboração. Na presente análise, só me limitarei a uma notação. Das vinte e sete proposições que o compõem apenas quatro - ou talvez cinco, se for feita uma leitura mais ampla da décima nona – dizem respeito às relações do papado com os poderes temporais, enquanto todas as restantes são de natureza eclesiológica. Portanto, trata-se de um texto que, embora aborde o tema que tem atraído prioritariamente a atenção, - ou seja, a proclamação da supremacia papal sobre as autoridades civis - entende primeiramente afirmar, articulando a questão de forma analítica e sob uma pluralidade de perfis, a monarquia papal sobre todas as expressões da comunidade eclesial, e em especial sobre os bispos.
Como foi oportunamente ressaltado, cada uma das proposições individuais do Dictatus papae pode encontrar paralelo em trechos da literatura cristã anterior a ele, a partir da Sagrada Escritura e dos Santos Padres até os cânones das Epístolas Decretais; mas, considerado em seu conjunto, o documento expressa através uma síntese coerente e sistemática uma configuração totalmente nova do poder do papa sobre a Igreja. Marca assim uma ruptura com a história anterior, iniciando uma temporada eclesial completamente diferente em relação ao primeiro milênio. De forma sintética pode-se dizer que apresenta o papa como senhor da Igreja, sobre a qual ele exerce um poder pessoal, absoluto, ilimitado e universal. A motivação reside no argumento de que a autoridade conferida por Cristo a Pedro passa dele, em virtude de um princípio divino e um direito hereditário, a todos aqueles que o sucedem na cátedra romana até o fim dos tempos. Agora, desfrutando Pedro de uma primazia sobre todos os outros apóstolos, os pontífices sucessores de Pedro, desfrutam de uma autoridade plena e pessoal sobre todos os bispos, embora reunidos em um colegiado. Além disso, uma vez que Cristo prometeu a Pedro a assistência divina, cada ato do papa é ditado pelo Espírito Santo, portanto ele não erra e jamais poderá errar, julga a todos e jamais poderá ser julgado por ninguém, suas decisões são irreformáveis e inquestionáveis.
O Dictatus papae representava um projeto de transformação centralizadora da estrutura eclesiástica que, embora legitimada por um inquestionável prestígio moral – de fato, representava o instrumento para a realização de uma reforma que permitiria ao catolicismo retornar à ecclesiae primitivae forma - Gregório VII nunca conseguiu levar à concreta realização. No entanto, ele permanecerá como um objetivo programático buscado com tenacidade pela Santa Sé, apesar dos períodos, como o conciliarista, em que a crise do papado parecia conduzir a incluir a instância de uma reforma evangélica da Igreja com a introdução de uma estrutura sinodal de governança para cada nível de articulação da comunidade eclesial. Finalmente, na época contemporânea, a convicção da necessidade de uma liderança unitária, com condições de dar uma resposta adequada à apostasia do mundo moderno iria conduzir para as deliberações do Concílio Vaticano I, que, através da proclamação da infalibilidade e da primazia do papa, faziam das instâncias nascidas na época de Hildebrando uma peça constituinte da ortodoxia doutrinária católica. O delineamento da figura papal no Codex Juris Canonici de 1917 sancionava, inclusive no plano jurídico, que ser católicos significa aceitar a monarquia papal sobre a Igreja.
Além de sua formalização, relativamente recente, trata-se ainda de uma concepção eclesiológica profundamente sedimentada nas práticas organizacionais e na mentalidade do mundo católico que não tardaram em traduzi-la em formas de papolatria propriamente dita. A dificuldade para colocá-la de lado é bem demonstrada pelo episódio da introdução da Nota praevia explicativa alla Lumen Gentium, a constituição sobre a Igreja do Vaticano II: a aposição de um esclarecimento interpretativo preliminar para o documento votado pela assembleia conciliar queria deixar bem claro que a colegialidade episcopal como forma de governar da Igreja universal é exercida apenas em casos excepcionais e, de toda forma, exclusivamente sub Petro. No entanto, também ficou claro que alguns aspectos do governo do papa Francisco começam a erodir essa impostação. Limito-me a mencionar dois aspectos.
Na exortação apostólica Evangelii gaudium, com que delineava em 2013 as diretrizes de seu governo, o Papa, no contexto da constatação de que a centralização romana no governo da Igreja universal constituía um obstáculo na dinâmica missionária da Igreja, observava que a necessária conversão das estruturas centrais da Igreja deviam seguir no sentido daquela colegialidade episcopal que o Vaticano II havia indicado, mas que nunca havia sido concretizada. E, nesse sentido, ele apontava para um objetivo que certamente não estava presente nos documentos conciliares: a atribuição às conferências episcopais de uma "autêntica autoridade doutrinária". É também verdade que desde a enunciação dessa perspectiva, em 2013, até hoje a sua tradução concreta na vida da comunidade eclesial não mostrou grandes desenvolvimentos; mas também é verdade que sobre um tema tão sensível para a prática religiosa do povo cristão, como o da liturgia, Bergoglio repetidamente tem afirmado a competência dos episcopados para adaptar os textos às situações concretos de suas populações. Em setembro passado, o motu proprio Magnum principium, mesmo reservado para Roma a confirmatio final das traduções de tais textos, efetivamente sancionava essa orientação.
Mas existe um segundo aspecto que vale a pena recordar. Acredito que não seja necessário insistir sobre o significado efetivo que na Igreja pós-conciliar assumiu a instituição do Sínodo dos Bispos instaurado pelo Papa Paulo VI em 1965. Foi a criação de um órgão que, reduzido a meras tarefas consultivas e controlado em seu funcionamento pela cúria, reafirmava o poder supremo da Santa Sé no governo da Igreja universal através de uma aparência de realização da instância da colegialidade apresentada pelo Vaticano II. As modalidades dos dois sínodos sobre a família convocados por Francisco - o extraordinário de 2014 e o ordinário de 2015 - não registraram relevantes alterações nesse quadro, exceto em um ponto, aliás, de grande importância: o envolvimento dos fiéis através de um questionário enviado a todas as paróquias. As problemáticas modalidades de transformação desse processo em uma forma efetiva de participação nas decisões e a prudência com que a Secretaria geral do Sínodo já começou uma reflexão sobre a estabilização dessa experiência, não podem obscurecer o sinal que ele representa: o início de um processo em que a eclesiologia ‘verticalista’ originada pela reforma gregoriana cede o lugar a uma eclesiologia de comunhão em que todos os membros do povo de Deus, incluindo os leigos, participam na tomada de decisões.
3. O segundo momento sobre o qual apresentarei algumas reflexões é um aspecto da Igreja Católica que surgiu na segunda metade do século XVI, no Concílio de Trento e da firme ancoragem às suas decisões dos papas que sucederam a longa temporada contrarreformista. Trata-se de um dos episódios da era moderna que, a partir do segundo pós-guerra até o presente, mais tem atraído a atenção dos estudiosos. Eles têm amplamente mostrado como até o Vaticano II a estruturação eclesial era em grande parte determinada pelas escolhas realizadas naquela época. Para citar algumas, é possível lembrar a ênfase dada às obras – em especial, às práticas sacramentais e à adoração das imagens - como um caminho para a salvação; a liturgia em latim; as formas individualistas de piedade; a separação da formação sacerdotal do mundo circunstante; o clericalismo da pastoral; a gestão dos bens eclesiásticos direcionada para a promoção da pompa exterior; as barreiras ao acesso direto dos fiéis à Escritura. Esse conjunto de elementos - e outros que poderiam ser adicionados - foram emblematicamente representados como características constituintes da identidade católica através da fórmula pela qual se fechavam os decretos do Tridentino: anathema sit para aqueles que não aderissem às opiniões neles expressas.
Dessa forma era sancionada uma ruptura radical: aqueles que interpretavam a fé cristã de uma maneira diferente daquela estabelecida por Roma não só eram excluídos da comunhão eclesial, mas também eram considerados portadores de uma alteridade religiosa considerada perigosa, como capaz de desagregar as bases da única verdadeira Igreja. Nessa perspectiva, a relação com eles só poderia ser conflituosa. A diferença deveria ser reabsorvida e os caminhos não eram muitos: conversão ou remoção. Depois de séculos de embate, inclusive armado, foi somente com a segunda guerra mundial que dentro do catolicismo romano começou a encontrar espaço a perspectiva de substituir o conflito pela busca da unidade através do diálogo ecumênico entre os cristãos. Como é sabido, o decreto Unitatis redintegratio do Concílio Vaticano II reconhece formalmente tal perspectiva e começa o período de reuniões, conferências e acordos bilaterais e multilaterais teológicas.
Na base do documento conciliar estava a indicação de que era necessário remover os preconceitos negativos contra as igrejas separadas, reconhecendo lealmente que nelas se encontravam valores autenticamente cristãos. Foi o ponto de partida para um diálogo que levaria a um melhor e mais correto conhecimento das respectivas concepções. Nas deliberações do Vaticano II surgia, de fato, também uma linha diferente: a afirmação de que a Igreja de Cristo subsiste na Igreja católica apostólica romana deixava aberta a porta para evitar uma plena e total identificação entre a comunidade eclesial quista por Cristo e as Igrejas cristãs historicamente existentes. No entanto, tal interpretação foi rejeitada pelo papado pós-conciliar que considerou a palavra "subsiste" como uma modalidade do verbo "ser": a Igreja instituída por Cristo, como quer o documento Dominus Iesus da Congregação para a Doutrina da Fé publicado em 2000, existe plenamente só na Igreja católica governada pelo sucessor de Pedro e pelos bispos em comunhão com ele.
Parece-me que o Papa Francisco, sem entrar diretamente no debate eclesiológico que se abriu sobre essas questões, reabra em novos termos a questão da relação com as diferenças entre cristãos, herdada da Contrarreforma e deixada sem solução pelo processo ecumênico. Por um lado, ressalta que a diversidade não é uma limitação, mas uma riqueza: cada cultura humana, perseguindo a sua própria maneira específica de aproximação ao divino, pode falar algo sobre Deus que escapa às outras e, assim, contribuir para o seu melhor conhecimento. Por outro lado, observa que todas as igrejas são chamadas a um contínuo processo de reforma, a fim de tentar adequar sua configuração à mensagem de Cristo, da qual ninguém pode arrogar-se o direito de ter um entendimento pleno, mas que cada uma pode ajudar a compreender melhor. Nessa perspectiva as relações entre cristãos mudam: ao passado conflituoso substitui-se uma busca comum por uma verdade da qual ninguém pode se considerar depositário exclusivo, mas para cuja identificação cada um, com suas próprias especificidades, pode contribuir através da disponibilidade para a reforma da Igreja de filiação.
Mas a saída da era contrarreformista comporta pelo menos outro aspecto que eu gostaria de lembrar. O objetivo de eliminar a alteridade religiosa, que se originou a partir da ruptura protestante, comportava uma retomada de uma relação de tipo constantiniano entre religião e política. De fato, a autoridade eclesiástica apoiava-se na força do aparelho organizacional construído pelo Estado moderno, a fim de usar seus novos instrumentos de coerção para eliminar uma diferença percebida como ameaça letal para sua própria existência. Por sua parte, a autoridade civil se apoiava na Igreja para conseguir aquela unidade religiosa da população que considerava uma condição essencial do consenso político do Estado moderno em construção. Nesse renovado enredo, que obviamente era posto em prática não só pelo lado católico, mas também pelo protestante, encontram-se as raízes daquelas guerras religiosas que ensanguentaram a Europa por várias décadas. Embora a manipulação do fator religioso pelos governos envolvidos nesses conflitos seja inegável, ainda assim é verdade que a violência bélica era na época justificada publicamente, e às vezes também recomendada, em nome de Deus. Não era uma novidade: a época das cruzadas atesta que não foi alheia à história cristã a prática da guerra santa. Mas estamos aqui diante de mais um passo: a legitimidade religiosa do conflito armado entre cristãos para resolver as diferenças doutrinárias e diferenças confessionais.
Parece-se que nesse ponto se situe outra característica marcante da reavaliação do passado que Francesco opera sobre a herança da Igreja contrarreformista. A sua afirmação parece ser nítida, reiterada e até mesmo enfática quando declara que nunca pode haver qualquer tipo de violência cometido em nome de Deus. Em várias ocasiões, o Papa reiterou que nenhuma guerra pode ser santa, porque ela só comporta destruição e morte, elementos que estão em radical contraste com o amor que Deus tem para o homem. Sem dúvida, essa afirmação tem uma referência imediata para um aspecto dramático do mundo atual: constitui uma denúncia do caráter ideológico do terrorismo islâmico cujo proselitismo baseia-se também na legitimação divina da morte dada aos infiéis e aceitada como martírio. Mas, como é bem ilustrado por suas intervenções diretas às igrejas saídas da Reforma, é também evidente que o discurso papal pretende promover a seu respeito uma reconciliação, que assume um valor geral, porque parte do reconhecimento de que o uso anterior da religião para justificar a violência bélica no confronto interconfessional representava um desvio da mensagem do Evangelho, do qual os próprios cristãos assumem a responsabilidade.
É, portanto, pela admissão das próprias culpas passadas que os cristãos, e, obviamente, em primeiro lugar os católicos, podem hoje, com alguma credibilidade, propor ao mundo contemporâneo a ideia de uma antítese intransponível entre violência bélica e fé em Deus. Pode-se observar que essas posições de Bergoglio não constituem uma novidade, uma vez que estão na raiz das orientações já promovidas durante o pontificado de João Paulo II: basta pensar no grande Jubileu do ano 2000. Mas, independente das flutuações e incertezas com as quais foram expressas naquela ocasião, completamente nova é a indicação da atitude que, positivamente, o crente deve tomar em relação à guerra. Como Francisco afirmou claramente em sua mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2017, o testemunho cristão diante de um conflito expressa-se na adoção do método da não-violência. Aqui estamos realmente diante de uma mudança radical. O magistério renuncia ao projeto, a longo perseguido, de expressar a rejeição cristã da guerra restringindo os critérios que a tornariam justa. A perspectiva de uma possível moralização da violência bélica está agora completamente abandonada: a renúncia à violência parece ser a via concreta para cumprir a instância evangélica de assumir o papel de operadores da paz.
4. O terceiro momento que eu gostaria de considerar é o aumento na Igreja católica daquela cultura intransigente que, nascida como resposta ao choque representado pela Revolução Francesa, entrou como um elemento constitutivo do magistério papal de Pio IX, em meados do século XIX. Desde então tornou-se o principal ponto de referência para o papado romano até o governo de Pio XII e desde então tem sido eventualmente retomada sob novas formas, após os esforços para abandoná-la no início da segunda metade do século XX que foram registrados nas épocas de João e conciliar. É uma cultura articulada e complexa, que no decurso da época contemporânea tem mantido um caráter hegemônico no mundo católico, graças à sua capacidade de se adaptar às diferentes circunstâncias, mesmo mantendo firmes alguns de seus pontos básicos. Entre estes tem um papel central a proclamação de uma irreconciliável contradição entre o catolicismo e um pressuposto estruturante do mundo moderno.
Para o ‘intransigentismo’(movimento católico italiano da segunda metade do séc. XIX, ndt) a modernidade apresentava, de fato, um elemento específico e constitutivo: a vontade do homem de autodeterminar as formas de organização da vida coletiva. A partir dessa premissa, os intransigentes derivavam uma consequência específica: para realizar sua aspiração básica o homem moderno retira a sociedade civil da direção eclesiástica. Aos seus olhos, somente a subordinação à autoridade papal havia assegurado para a convivência humana a paz, a ordem e a prosperidade. Citava-se, como testemunho histórico incontestável de tal pressuposto, o período do cristianismo medieval, que era mitificado como um paradigma ideal, sem levar em consideração os seus reais desdobramentos históricos. Por essa ótica, a condenação do mundo moderno tornava-se a pedra angular para definir a relação da Igreja nos confrontos do desenrolar-se de uma história por ela interpretada como uma concatenação de erros cada vez mais grave. Os esforços dos homens para construir, ao longo do tempo, formas gradualmente mais aceitáveis de convivência civil foram lidos como uma empresa que, por ser desprovida do supremo aval eclesiástico, estava condenada a um inevitável fracasso.
Por mais que o mundo moderno certamente não tenha sido poupado de tragédias dramáticas - principalmente o uso de armas, tornadas cada vez mais destrutivas pelos avanços da técnica, como meio de resolução de conflitos entre os povos - a passagem das décadas, no entanto, acabou revelando que o abismo para o qual deveria ter afundado uma história deixada nas mãos do homem não se escancarava. Mesmo sem abandonar a demanda por autonomia da tutela eclesiástica, aliás, estendendo-a a campos cada vez mais amplos na estruturação normativa da sociedade civil, o homem moderno teve, de fato, que aprender com os erros que foram pagos a alto custo. Chegou-se assim, embora laboriosa e dolorosamente, a alguns resultados no estabelecimento de instituições que podem permitir melhores condições de vida para o maior número de pessoas possível. O reconhecimento dessa realidade induziu os mais ferrenhos expoentes do intransigentismo católico a repensar a tese que colocava o catolicismo em uma contraposição radical ao mundo moderno.
Nos círculos intransigentes difundiu-se a crença generalizada de que, para inserir com alguma eficácia a mensagem cristã na história, era essencial a abertura para algumas aquisições da modernidade. Resultou um ajuste na atitude católica que poderíamos chamar de uma modernização: a projeção da nova cristandade profana dos movimentos católicos vinculados no segundo pós-guerra à filosofia política maritainiana é um dos exemplos mais significativos. Mas é preciso ressalvar que esses ajustes não comportaram no abandono de um pressuposto essencial da cultura intransigente.
Poderiam ser aceitos os meios, os instrumentos, as técnicas e até mesmo algum princípio (por exemplo, a liberdade religiosa) do mundo moderno desde que não fosse abandonado o ponto julgado crucial: apenas a submissão à verdade política e social mantida pela autoridade eclesiástica podia restituir à sociedade civil aquele arranjo feliz de que a sociedade tinha desfrutado quando o papa regulamentava de forma absoluta, como nos bons velhos tempos da hierocracia medieval, as relações entre os indivíduos e os povos.
É no panorama desse contexto histórico, aqui apresentado muito brevemente e esquematicamente, que me parece possa ser encontrada uma plena compreensão, com todo seu alcance inovador, da linha emergente de algumas intervenções do Papa Francisco. Sem dúvida, em seus discursos, podem ser encontrados elementos que poderíamos relacionar com a tradicional perspectiva da modernização. Pode-se, por exemplo, recordar a solicitação insistente relativa a um uso adequado dos meios de comunicação de massa de acordo com o atual desenvolvimento técnico, a fim de tornar mais eficaz a capacidade pastoral e apostólica da Igreja. Estamos diante da retomada de uma linha que, começando com a fundação da Rádio Vaticano por Pio XI, tem sido constantemente atualizada por todos os pontífices do século XX. Também poderiam ser citados outros exemplos de relevo, em especial a continuidade de Francisco com os antecessores na introdução de medidas de racionalização, tanto na administração do Estado da Cidade do Vaticano, como no aparato da Santa Sé como órgão de governo da Igreja universal.
Mas não é esse certamente o ponto decisivo nas orientações expressas por Bergoglio. De fato, intervenções de racionalização modernizadora na condução da Igreja pertencem a pleno título até ao governo de pontífices fundamentalistas, como Pio X. O que caracteriza a orientação de Francisco é o enquadramento dessas medidas numa abordagem total muito diferente dentro da relação entre Igreja e modernidade. De fato, à persuasão de uma posse exclusiva de verdades políticas e sociais - projetada como o único remédio para os males de um mundo em que a pretensão de emancipação do homem de proteção eclesiástica leva à sua ruína - o papa argentino substitui a enunciação de uma perspectiva diferente. Na organização da vida coletiva, a Igreja coloca-se agora em relação com os homens, não para apontar o único caminho que os conduz à salvação eterna e à felicidade temporal, mas para procurar com eles soluções que melhor atendam as exigências dos tempos. Essa indicação tem como óbvio pressuposto que, na definição das regras da sociedade humana, ninguém possa pretender ser o único depositário da verdade e seu único intérprete. Em vez disso, é através da livre contribuição de todos que vai se tornar possível identificá-la.
Certamente, nessa pesquisa conjunta, a contribuição da Igreja tem imprescindíveis pontos de referência. Mas sobre esse aspecto a convicção de Francesco comporta uma inovação decisiva. Em sua opinião a convocação não se dirige para a lei natural na qual a Igreja proclama-se a única porta-voz autêntica, mas ao Evangelho. Também é clara a indicação de que o significado da mensagem do Evangelho não pode ser devidamente entendido fora do tempo, uma vez que sua interpretação só pode acontecer na história, e na lúcida consciência das transformações que o seu futuro implica. Acredito que Francisco reporte-se aqui a uma expressão à qual está ligada, na memória eclesial do século XX, a manifestação de um dos seus pontos mais altos - não surpreendentemente datado do final de um pontificado que tinha amadurecido, em seu decurso, orientações diferentes daquelas inicialmente assumidas – a atualização promovida pelo Papa João. Foi exatamente Roncalli que reiterava que a leitura do Evangelho na história não implica mudá-lo, mas sim chegar a uma melhor compreensão do seu significado.
O jesuíta que chegou a Roma do fim do mundo para desempenhar o ministério petrino repropõe esse critério como caminho com que a Igreja, nas difíceis condições impostas à vida coletiva pela era da globalização do mercado e da violência fundamentalista, pode apoiar o homem em sua livre busca por uma melhor forma de vida social. À vontade do homem contemporâneo de construir sua história em completa autonomia, a Igreja já não contrapõe mais o pedido de subordinação às regras corretas de convivência elaboradas por ela; em vez disso, oferece ajuda contra os males, às feridas e às dores que ele encontra em seu livre percurso. Lido à luz dos sinais do tempo presente, o Evangelho, de fato, indica na misericórdia a resposta às profundas necessidades de escuta, apoio, perdão, reconciliação e fraternidade que emergem da sociedade de hoje.
A apresentação da Igreja como um hospital de campo imerso no devir doloroso da história substitui assim a imagem da Igreja como uma cidadela sitiada pela modernidade. Parece-me que nenhuma imagem possa melhor representar o distanciamento de Francisco da relação entre Igreja e sociedade herdada pela cultura intransigente que por mais de dois séculos teve uma hegemonia dentro da cultura católica.
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Depois de qual história da Igreja. Artigo de Daniele Menozzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU