Por: Wagner Fernandes de Azevedo | 21 Mai 2018
Na sexta-feira, 18-5-2018, o Papa Francisco recebeu das mãos dos 34 bispos chilenos uma declaração de renúncia devido ao escândalo de abuso sexual e encobrimento do padre Fernando Karadima. A investigação que começou no início da década, e ainda em 2011 resultou na condenação do padre, seguiu em pauta pela iniciativa de três leigos abusados: Juan Carlos Cruz, José Andrés Murillo e James Hamilton. Os três utilizaram-se amplamente das mídias digitais para contestar o comportamento dos bispos na cumplicidade, no abuso e encobrimento dos inúmeros casos acontecidos no país. Suas manifestações nas televisões, jornais e redes sociais tomaram destaque, ao ponto de o Papa Francisco ser diretamente acusado de descaso. A apropriação dos leigos na causa que singularmente lhes tocava instiga um debate profundo e necessário: qual o papel dos leigos nos assuntos da Igreja? Como e quando aquilo que lhes toca diretamente e violentamente deve impactar em toda a estrutura?
Todos los obispos de la Conferencia Episcopal de Chile ponen sus cargos en manos de @Pontifex_es pic.twitter.com/PBDbunPvzY
— Conf.Episcopal Chile (@episcopado_cl) 18 de maio de 2018
Vídeo da Conferência Episcopal Chilena explicando sobre a renúncia
Nunca antes houve um Papa com tanta audiência e possibilidade de diálogo aberto e direto a diferentes camadas da sociedade. Pelo mesmo instrumento, os leigos são possibilitados de estar em sintonia com a Igreja mundial. A expansão das redes sociais destaca uma nova possibilidade para a Igreja, a difusão de informações e a comunicação globalizada. Para o professor Cesar Kuzma, em artigo publicado pelo IHU em março de 2018: “Ser sujeito eclesial, hoje, não é ser conflitivo, muito menos combativo, mas é ser testemunha de uma verdade que não está nos manuais de doutrina, mas no encontro vivo com o Ressuscitado. Não é ser divisor, mas promotor de comunhão”.
O Concílio Vaticano II com a abertura e incentivo da Igreja para a sinodalidade e a participação laical. O teólogo Andrea Grillo em entrevista especial ao IHU On-Line, em 2015, aponta a contradição que esses movimentos podem gerar. “Somos tentados a pensar que, para defender a Igreja Católica, é preciso defender a todo o custo a sua postura clerical. E essa atitude distorcida, note-se bem, não diz respeito apenas aos clérigos, mas, infelizmente, contagia também os leigos”, alerta.
Alinhado à compreensão do papel do laicato, Kuzma em entrevista de dezembro de 2017 publicada pelo IHU On-Line defende: “os leigos devem se afastar deste modelo estrutural e buscar novos caminhos, novas maneiras de viver a fé, dentro do chamado que é próprio da sua vocação, que é o mundo secular e as grandes causas da humanidade. Aqui está a vocação e a missão dos leigos!” Esses apontamentos coadunam com a perspectiva de não assumir uma função combativa de defesa apaixonada da Igreja.
O movimento de fiscalização de leigos sobre as ações da Igreja aparece no Brasil muitas vezes justificado na celebração do Ano do Laicato. Essa compreensão é enfatizada pela carta da Assembleia Geral da CNBB ao Povo de Deus: “Neste Ano Nacional do Laicato, conclamamos todos os fiéis a viverem a integralidade da fé, na comunhão eclesial, construindo uma sociedade impregnada dos valores do Reino de Deus. Para isso, a liberdade de expressão e o diálogo responsável são indispensáveis. Devem, porém, ser pautados pela verdade, fortaleza, prudência, reverência e amor ‘para com aqueles que, em razão do seu cargo, representam a pessoa de Cristo’ (Lumen Gentium, 37)”.
O debate em torno das questões eclesiais se amplia com a linha eclesiológica defendida pelo Papa Francisco. Andrea Grillo, na sua entrevista de 2015 ao IHU On-Line, apontava o pontífice como o “filho do Vaticano II”. Três anos mais tarde, a eclesiologia de Bergoglio segue na linha de democratização da instituição. Segundo Massimo Faggioli, em artigo publicado pelo IHU On-Line em abril de 2018, essa sinodalidade chega na Igreja em um período de crise da democracia: “A Igreja Católica está alcançando somente agora a revolução democrática dos séculos XIX e XX, enquanto a democracia representativa está sendo desafiada pelo mundo virtual das mídias sociais e das redes sociais”.
Faggioli refere-se especificamente às discussões emergidas na reunião Pré-Sinodal de março de 2018. Pela primeira vez na história o Papa convocou jovens para discutir diretrizes a serem trabalhadas no Sínodo em outubro de 2018. Além dos 300 jovens de todos os continentes reunidos por uma semana no Vaticano, o trabalho se expandiu com os debates pelas redes sociais, por grupos do facebook e hashtags em diversos sites. O documento final do encontro foi uma síntese das discussões desses ambientes. Alguns grupos contestaram acusando que suas opiniões a favor da missa em latim não foram contempladas.
Estoy bien emocionado con todo esto. Le hace bien a nuestro querido país, a tanta gente q ha sufrido por obispos corruptos y mentirosos, y de paso a todos los sobrevivientes q han sido ninguneados en el mundo entero. Ya no hay pie atrás. La historia cambió. Gracias de verdad.
— Juan Carlos Cruz Ch. (@jccruzchellew) 18 de maio de 2018
Por dignidad, justicia y verdad: váyanse todos los obispos. Delincuentes. No supieron proteger a los más débiles, los expusieron a abusos y luego impidieron justicia. Por eso, solo merecen irse
— José Andrés Murillo (@JosAndrsMurillo) 18 de maio de 2018
Ao mesmo tempo que a abertura democrática da Igreja corre os riscos de dar margem a opiniões autoritárias, é inegável que no caso chileno o protagonismo dos leigos foi essencial para que o caso recebesse o merecido destaque e gerasse profundas transformações na estrutura. Desse modo, a atuação não pode ser apontada meramente como fiscal, mas como sujeitos de incidência na estrutura. Na coletiva de imprensa após se encontrarem com Francisco no Vaticano, no início do mês de maio, disseram que o “papa pediu nossa opinião acerca de aspectos concretos e também teóricos do tema”. E continuaram afirmando suas cobranças de atitudes diretas: “conversamos com o papa acerca do exercício patológico e ilimitado do poder, que é pedra angular do abuso sexual e do encobrimento. Expressamos-lhe que a Igreja tem o dever de se transformar em aliada e guia no mundo em relação à luta contra o abuso e de ser refúgio para as vítimas, algo que não ocorre hoje”.
Em uma história que ainda não terminou, mas que vive seu momento mais conclusivo, o protagonismo foi de leigos que se utilizaram das ferramentas que uma instituição democrática do século XXI deve dispor. Francisco garantiu a participação ativa e direta, com voz e embasamento dos verdadeiros sujeitos e vítimas da política abusiva e violenta praticada pela hierarquia. O "caso particular" ganhou visibilidade e se encaminha para o alcance universal, como apontou Juan Carlos Cruz em entrevista para BBC: "Isso é algo inédito. Nunca antes todos os bispos de um país haviam renunciado assim. E isso é claramente um precedente para outros casos ao redor do mundo" (tradução livre).
Andrea Grillo, Cesar Kuzma e Massimo Faggioli são parte desse grupo de leigos comprometidos com a atuação na estrutura eclesial. Bem como são teólogos e professores, participam ativamente na internet com a publicação de artigos que tangem desde a história da Igreja, a liturgia, doutrina, e a própria vocação leiga.
Os três serão palestrantes do XVIII Simpósio Internacional IHU — A virada profética de Francisco: possibilidades e limites para o futuro da Igreja no mundo contemporâneo, que será realizado de 21 a 24 de maio de 2018, na Unisinos Porto Alegre:
Andrea Grillo é filósofo e teólogo italiano, leigo, especialista em liturgia e pastoral. Doutor em teologia pelo Instituto de Liturgia Pastoral, de Pádua, é professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua.
O professor Grillo ministrará as seguintes conferências:
Cesar Augusto Kuzma é mestre e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio e bacharel em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR. Professor de Teologia Sistemática no Departamento de Teologia da PUC-Rio – Graduação e Pós-Graduação.
O professor Kuzma ministrará o seguinte minicurso:
Massimo Faggioli é doutor em História da Religião e professor de teologia e estudos religiosos da Universidade de Villanova, na Filadélfia, Estados Unidos. Também é editor colaborador da revista Commonweal.
O professor Faggioli ministrará as seguintes conferências:
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O leigo como sujeito ativo da Igreja. O exemplo chileno - Instituto Humanitas Unisinos - IHU