18 Abril 2018
Depois de ter percorrido os dois primeiros capítulos do livro Hoc facite, de Zeno Carra, nos posts anteriores (leia aqui, aqui e aqui), o teólogo italiano Andrea Grillo prossegue, neste texto, examinando o terceiro capítulo (pp. 217-265), com uma apresentação sintética das consequências sistemáticas dessa ampla leitura. Elas dizem respeito, acima de tudo, à mudança de modelo (em nível teológico-fundamental) e, depois, também, a uma nova visão dos “nós” fundamentais da doutrina eucarística.
O artigo foi publicado por Come Se Non, 07-04-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
a) Quanto ao modelo (teologia fundamental)
No plano de uma compreensão geral da revelação e da fé, a passagem do modelo “tomista-tridentino” ao do século XX implica três passagens muito fecundas:
- a análise da mudança de modelo, com os seus “nós” e os eixos que os unem (Cristo, ser humano, Igreja, rito e objetos envolvidos no rito), permite uma avaliação “sincrônica” e “diacrônica” muito frutuosa, tanto em termos de desenvolvimento da doutrina, quanto em termos de relação entre dogma e heresia;
- vemos ser contestada, assim, uma imagem, bastante usual, que interpreta o desenvolvimento da doutrina nestes termos: “A verdade que move a história se encontra no conteúdo noético escondido sob as formulações verbais dos discursos teológicos” (p. 222). Em vez disso, é preciso reconhecer que “o todo real, nas suas várias funções (palavra, pensamento, prática), é o lugar de inserção da verdade de Deus a nós (portanto, não uma única parte dela, isto é, o pensamento abstrato)” (p. 224).
- daí deriva uma compreensão mais adequada dos dogmas, que “não são o recipiente de um pensamento verdadeiro e absoluto, a fonte da verdade noética dentro da história. Eles são o esforço de resposta operado pela vida crente da Igreja aos movimentos de deformação histórica das formas de fé” (p. 226).
Tudo isso tem consequências muito importantes para o modo de conceber a relação com a verdade: “O verdadeiro não deve ser pensado como a inferência intelectual adequada ao objeto, mas sim como a colocação harmoniosa do sujeito em suas relações com o real” (p. 230). Portanto, o verdadeiro está “nas formas do real” e, em última análise, em uma assunção do estatuto cristológico da verdade (p. 230-231). Isso evidentemente tem repercussões muito fecundas sobre a “doutrina eucarística”.
b) Quanto à doutrina eucarística (teologia dogmático-sacramental)
O caminho percorrido até aqui demonstrou a necessidade de um “novo modelo” de teologia eucarística. E isso por dois motivos:
- o modelo clássico, elaborado entre a Idade Média e a Idade Moderna, tem em si inúmeros desequilíbrios, porque “relega ao segundo plano elementos centrais da tradição quanto ao fato eucarístico” (p. 233). Depois, Carra especifica seu pensamento: são “desequilíbrios nascidos do fato de terem se concentrado em alguns problemas que se tornaram centrais na mudança de época do mundo antigo à Idade Média e de se ter deixado exclusivamente à tutela do princípio de autoridade aqueles componentes que permaneciam fora da sistematização. Pense-se na comunhão dos fiéis: o modelo a torna segunda e secundária em nível teorizado; registra uma efetiva prática de marginalização dela na vida da Igreja; recorre ao nível da parênese de autoridade para tentar mantê-la viva” (p. 233).
- o deslocamento do modelo clássico a um “mundo novo” como o do século XX exige uma nova e profunda calibragem “para restaurar a pertinência sobre o real ao dado da fé eucarístico” (p. 233). Isso não pode ser garantido por “retoques em partes do modelo: operar em alguns de seus nós significa movê-lo estruturalmente em sua inteireza” (p. 234).
Daí emergem os “delineamentos” de um novo modelo, que são expostos de acordo com a sequência: Cristo, sacramento, ontologia.
a) O presentificado (o Cristo) (p. 234-241)
- está presente não o “corpo histórico que ressuscitou”, mas sim “o crucificado ressuscitado”. A Páscoa não é um acidente da presença real;
- está presente a promessa do corpo humano como “cumprimento da sua natureza relacional”;
- presença corpórea e presença pessoal são “corpo pascal”, sem contradição. O lugar histórico dessa corporeidade como “plena relacionalidade” deve ser conatural a ele: “Não, portanto, o espaço estático do ente, mas sim o processo dinâmico de uma estrutura de conexões relacionais: uma forma” (p. 237);
- o cumprimento do em-si de Cristo na morte-ressurreição é antecipado na forma ritual da ceia, que é constituída pela sequência: tomou, abençoou/deu graças, partiu, deu. Essa forma ritual é “forma crucis e forma Christi”.
- “Indicar o lugar da presença sacramental em uma forma relacional diacrônica, em relação a um ente espacialmente considerado, absolutamente não é diminuir ou enfraquecer a presença real, mas sim fundamentá-la na condição gloriosa e cumprida do seu Presentificado” (p. 241).
b) O sacramento (o signum) (p. 241-248)
- “O sacramento, portanto, não tem a sua realização naquilo que acontece com um ente espacialmente considerado na sua inseidade, em torno do qual se desenharia secundária e consequentemente uma forma ritual. O fato do sacramento está justamente na forma ritual agida, dentro da qual os entes (estamos na história e, portanto, podemos considerá-los assim ainda) pão e vinho também são inevitavelmente colocados” (p. 241-242);
- a forma do sacramento não é a ceia propriamente dita, mas “aquele processo em quatro ações que conecta (...) aquele que preside, pão e vinho, discípulos” (p. 242).
- isso significa “indicar na ação litúrgica, que, para a eucaristia, tem-se na ação de tal forma, o nível essencial do sacramento. Não o seu marco cerimonial” (p. 243) É todo o processo ritual que é reconhecido como essencial. Isso implica, em nível dogmático, “a decisiva superação da distinção clássica entre sacramento e uso” (p. 243).
- “O modelo clássico se fundamenta no pensamento espacializante ôntico grego e, por isso, não hesita em encerrar o fato eucarístico na relação de pregação lógico-performativa entre o pronome hoc, a referência ao pão em si e o predicado corpus meum, tudo através da cópula est (e o mesmo para o vinho). Mas um olhar fenomenológico nos mostra que essa é uma abstração filosófica que faz uma certa violência ao texto. Os pronomes demonstrativos (hoc-hic) referem-se a um pão e a um vinho agidos, não a um pão e vinho em si” (p. 245).
- “O modelo da transubstanciação impede que a ratio sacramenti detenha em si a tensão escatológica: quando transubstanciados, pão e vinho consagrados absolutamente não podem ser a antecipação histórica da irrupção progressiva do eskaton: eles não são mais eles mesmos e, portanto, o que ocorre com eles não tem nada a ver com o destino final da criação, em que tudo será cumprido em plenitude e não transubstanciado! O modelo que estamos esboçando, por sua vez, permite a reivindicação escatológica: a presença do Ressuscitado emerge na história na conexão formal-relacional entre os elementos. Estes, portanto, não perdem a si mesmos, mas se cumprem na sua relacionalidade com todo o resto, precisamente por serem assumidos na posição da forma sacramental” (p. 247).
c) A ontologia (a res) (p. 248-257)
Ainda é preciso se perguntar, porém, se o advérbio substantialiter, que caracterizou a tradição eucarística dos últimos 500 anos, pode ser reduzido a essa interpretação negativa – diríamos não ocasionalista da eucaristia – e privado de “conteúdo positivo”. Para responder a essa objeção e elaborar uma “ontologia eucarística”, é necessário que Carra prossiga em diversos planos:
- “A pergunta, portanto, deve ser posta dentro do modelo que a reflexão teológica fornece. O que acontece com este pão e este vinho liturgicamente agidos?” (p. 249).
- Mas, se o acesso ao Cristo ressuscitado é dado “em uma forma relacional dinâmica, em vez de em uma inseidade ôntica substancial, então os pontos de conexão da forma, os elementos nela envolvidos, sobre os quais ela estende o seu conjunto processual, orgânico e coeso de vetores conectivos, são todos intrínsecos à própria forma (...) A forma se cumpre na manducação sacramental, porque ela é sua parte estrutural (...) A manducação é essencial ao sacramento e, portanto, à presença” (p. 251).
- “A Igreja também, na sua relação com a eucaristia, é, em pleno direito, corpus Christi: porque ela é parte intrínseca da forma sacramental da Sua presentificação. A comunhão dos fiéis do único pão tomado, eucaristizado, partido e dado é partícipe da forma presentificante. E, portanto, o elemento fiéis-Igreja, que tal vetor da forma conecta, faz parte da única presença corpórea do Cristo pascal” (p. 251-252).
Daí também deriva, por fim, uma afiada releitura da SC 7 sobre a presença de Cristo: “Portanto, não vários modos justapostos (e não mais teorizáveis) da presença real de Cristo (modo eucarístico, modo eclesial, modo daquele que preside...), mas sim diversos polos intrínsecos à única forma orgânica de presentificação real, corpórea e não ocasional (portanto, “substancial”) do próprio Cristo crucificado ressuscitado” (p. 252)
* * *
Com esta última parte, conclui-se a resenha do texto de Zeno Carra. O autor, a meu pedido, escreveu um texto de apresentação sintética do seu pensamento, que vou publicar em diversos posts, nos próximos dias, como enriquecimento ao debate sobre a “nova teologia eucarística”.
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Nova teologia eucarística: ''Hoc facite'', linhas sistemáticas do novo modelo. Artigo de Andrea Grillo (última parte) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU